quarta-feira, 28 de março de 2012

Ain't nobody a stranger to me...

A última hisria recebida do "clube de histórias".



Não há estranhos para mim

Há muito, muito tempo, quando eu era criança, o meu avô levou-me a visitar o seu pomar.

― É o último bocadinho de terra que possuo, desde que vim viver para a cidade ― disse-me, enquanto cumprimentava toda a gente.

― Avô, como fazes para conhecer tanta gente? ― perguntei-lhe, enquanto corria para o acompanhar.

Ele parou para esperar por mim.

― Não os conheço pelo nome, conheço-os pelo coração. Sabes, querida, não há estranhos para mim.

― Porquê? ― perguntei, dando-lhe a mão.

Sorriu alegremente e respondeu:

― Porque eu e o meu coração somos livres.

Depois de caminharmos um pouco, disse:

— Sabias que, nos tempos tristes da escravatura, eu costumava andar com sementes de macieira no bolso, e acreditava que, quando fosse livre, haveria de as plantar no meu próprio pedacinho de terra?

― Não, não sabia.

― Um dia, dei-me conta de que isso só aconteceria quando nós mesmos lutássemos pela liberdade. Então, uma noite, fugimos.

― Quem é “nós”?

― Eu, a tua avó Polly e a tua mãe, que era bebé na altura ― respondeu, acariciando os meus caracóis. ― Tínhamos medo, claro, mas fomos cuidadosos.

Parou de falar, enquanto relembrava aqueles tempos…

― Quando chegámos ao Norte, já tínhamos passado por muitos estranhos e por muitos perigos. Estávamos junto ao rio Ohio e éramos quase livres, quando nos demos conta de que a fome e o cansaço eram demasiado grandes para continuarmos a andar. Então, escondemo-nos num celeiro ali perto. Dormimos toda a noite, como há muito não fazíamos. De madrugada, um homem veio mungir as vacas e a nossa bebé chorou. Ficámos petrificados. O nosso desespero era tanto que nos sentíamos capazes de atravessar o rio a nado, só para sermos livres! Nunca mais voltaríamos para trás!

Passados todos estes anos, o meu avô ainda tremia só de pensar naqueles tempos. Peguei-lhe na mão com força.

― O homem percebeu que não estava sozinho. Mas não olhou para a nossa cor; olhou para a nossa aflição. Era branco, mas ajudou-nos. Nunca me perguntou o nome, embora me dissesse o dele. Chamava-se James Stanton e era membro do Caminho-de-Ferro Clandestino.

― Oh! ― exclamei. ― Aquelas pessoas que ajudavam os escravos a viajar para o Norte?

― Aqueles que nos ajudaram quando mais precisávamos. James e a mulher, Sarah, não viram na tua mãe uma menina negra, apenas um bebé com fome. Deram-nos de comer e ajudaram-nos a atravessar o rio na noite seguinte.

― Isso é que foi sorte, avô! ― alegrei-me, agarrando-lhe a mão com força.

― Não sei se foi sorte, querida. Tínhamos de confiar em Deus. Tínhamos tomado a resolução correcta e nunca nos faltou a ajuda. E conseguimos. Sei o que é precisar de ajuda e recebê-la. Por mim, nenhum estranho ficará caído no chão sem que eu lhe estenda a mão.

Caminhámos em silêncio e o ar primaveril trazia até nós o cheiro fresco e doce das macieiras em flor.

― Quando chegámos ao Norte, a tua avó e eu trabalhámos arduamente para quem nos quisesse contratar. Arámos terra, apanhámos fruta, mungimos vacas, cosemos pão e ferrámos cavalos até termos dinheiro suficiente para comprarmos um pedaço de terra. Este!

E mostrou-me um belo pomar, cheio de macieiras em flor.

― Lembras-te das sementes com que eu andava sempre no bolso? Peguei nelas e plantei-as no nosso pedacinho de terra. De cada vez que plantava uma, lembrava-me de uma pessoa que me tinha ajudado. Olha para todas estas flores!

O meu avô tirou uma maçã de cada bolso.

― Essas vieram da tua cave, avô?

― Vieram. Guardei-as para as comermos juntos.

Sentámo-nos a comer.

― Avô, será que um dia poderei plantar uma semente de memória aqui?

O meu avô sorriu, comovido:

― Podes fazê-lo agora mesmo.

Plantei as sementes da maçã que comera. Enquanto isso, o meu avô observava os meus gestos, relembrando, sem dúvida, o que fizera muito anos atrás.

― Não me esquecerei do que fizeste hoje ― disse o meu avô, levando a mão ao peito.

― E eu não esquecerei o que me contaste, avô.

E nunca esqueci.

― Então agora percebes por que razão não há estranhos para mim ― disse o avô, com uma alegria imensa estampada no rosto, enquanto acenava para o céu.

Ann Grifalconi; Jerry Pinkney

Ain’t nobody a stranger to me

New York, Hyperion Books for Children, 2007

(Tradução e adaptação)

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