terça-feira, 3 de abril de 2018

Capitalismo - um sistema neutro?...




O capitalismo não é mau em si mesmo. Ou será?...

Capitalismo é um nome, mais um acabado em "ismo", mas que para variar se refere a algo bastante concreto: o sistema económico em que muitos de nós gastam as suas vidas. Um sistema económico pode ser entendido como um modo que as pessoas têm de se organizar para exercer as actividades que permitem suprir as suas necessidades, e tudo o que está directamente relacionado com isso, incluindo o modo como os recursos são alocados a essas actividades e como o produto dessas actividades é distribuído por todos.

O capitalismo adquire o seu nome de "capital". No linguajar dos economistas, o capital inclui todos os recursos que podem ser utilizados numa actividade produtiva, ou que podem ser transformados nesses recursos, à excepção do trabalho humano. O capital inclui assim os terrenos, os recursos naturais que neles se encontram, as máquinas, os edifícios, os agrafadores e o dinheiro que permite comprar isto tudo, entre outros. O sistema económico chamado capitalismo distingue-se dos demais pelo modo como o capital é repartido pelas pessoas e alocado às actividades produtivas.

Levanta-se então a questão de saber se este sistema é intrinsecamente mau, ou se, a existir maldade, ela é tão somente o resultado da maldade das pessoas que o integram. Tal como um jogo de futebol onde as regras não contemplassem sanções, e onde os jogadores arrancassem os olhos dos adversários... a maldade estaria apenas nos jogadores, ou poderia ser atribuída ao futebol em si?...

Do meu ponto de vista, o capitalismo é intrinsecamente mau. De seguida vou apresentar quatro características essenciais desse sistema económico. Discutivelmente, o capitalismo não poderia existir se qualquer uma dessas características não existisse. E todas elas, cada uma delas, é aos meus olhos intrinsecamente má.


1 - Propriedade privada ilimitada

Um dos grandes medos que algumas pessoas já tiveram, e talvez ainda tenham, do comunismo (outro "ismo", mas desta vez com as raízes na palavra "comum"), é o da abolição da propriedade privada. Isso significaria que cada um de nós deixaria de poder deter seja o que for... Basicamente seríamos expropriados de tudo aquilo que hoje possuímos, a posse de todos os bens passaria para "o colectivo" (seja lá isso o que for), que também seria responsável pela sua gestão. Compreendo que para algumas pessoas este seja um cenário aterrador.

O capitalismo não inspira semelhantes medos, ao permitir que cada um seja dono e senhor dos seus bens (embora se possa argumentar que sem a propriedade privada permitida pelo capitalismo ninguém teria medo de perder o que possui). Quais bens?... Bom, isso é outra questão. Mas a partir do momento em que fica definido que um bem pertence a uma pessoa, todo o sistema está montado para proteger essa relação e garantir que esse bem continuará a pertencer a essa pessoa, aconteça o que acontecer, a menos que ela decida em contrário.

Isso parece aliciante... no entanto, carrega consigo uma série de problemas. Os capitalistas (arrisco-me a dizer "todos nós") apressam-se a possuir tudo aquilo que possa ser valorizado por outro qualquer capitalista. E é assim que os seres humanos nascem para um mundo onde nada lhes pertence, onde tudo já foi tomado. Se tiverem sorte, herdarão um conjunto razoável de possessões. Se tiverem azar, terão de trabalhar a vida toda apenas para sobreviver. Este é apenas um exemplo dos muitos problemas que podem advir da propriedade privada dos bens, e que em geral é menosprezado pelas pessoas. Muito haveria para dizer acerca disso, mas não é isso que aqui me prende.

O capitalismo não apenas permite e protege a propriedade privada. O capitalismo alimenta-se, de uma forma essencial, da procura individual do aumento da propriedade privada. E por isso mesmo, o capitalismo não impõe limites à quantidade de capital que cada um pode possuir.

Quando, neste último parágrafo, disse "por isso mesmo", estava, em boa verdade, a pressupor aquilo que é uma ingenuidade: que o capitalismo necessita da procura individual do capital e que, portanto, não pode impor limites a essa procura. Como se este sistema económico tivesse sido pensado e implementado originalmente numa sociedade de gente toda ela igualmente pobre... Quando a verdade é bem distinta: o capitalismo em que actualmente vivemos é o resultado de sucessivos aperfeiçoamentos ao longo de séculos, defendidos e fomentados sobretudo por quem, em cada instante, faz parte do grupo dos privilegiados. Ou seja, é porque os privilegiados querem manter os seus privilégios que o capitalismo implica a propriedade privada sem limites.

Possuir bens para lá das necessidades de cada um é, aos meus olhos, algo intrinsecamente mau. E um sistema económico que se baseia na procura disso mesmo, e que sem isso não pode funcionar é, aos meus olhos, intrinsecamente mau.

Poderão aqui esgrimir a relatividade do conceito de necessidade: que o que uns consideram uma necessidade, os outros nem por isso, que o dinheiro da reforma do Cavaco Silva mal dá para as suas necessidades, coitadinho, etc. e tal. Não vou perder tempo a debater isso, porque me parece ignóbil.

Há muitas formas de perceber a maldade que acabei de referir. Deixo ao vosso critério o querer e o tentar encontrar essas várias formas, referindo apenas uma pista para uma delas: será justo possuir-se aquilo que não se produziu? será justo possuir-se aquilo que ninguém produziu, como por exemplo a superfície deste planeta?


2 - Rendimentos de capital

A existência da propriedade privada dos recursos, a sua desigual distribuição pelas pessoas, e a necessidade que elas podem ter de aceder a recursos alheios, origina o empréstimo. A procura incessante do aumento da propriedade privada leva ao estabelecimento de uma remuneração para esse empréstimo. E é assim que surgem os rendimentos de capital: o lucro, quando se emprestam recursos a uma empresa para ela os utilizar na sua actividade produtiva ("ela"?... quem é a empresa?... ela trabalha?...); o juro, quando se empresta dinheiro (que resulta da venda de recursos) a qualquer outra entidade; a renda, quando se empresta um terreno, um edifício, ou outro bem afim.

Hoje em dia, na sociedade em que vivemos, com o sistema económico que temos, lucros, rendas e juros são o pão-nosso-de-cada-dia. É comum as pessoas deterem uma ou outra acção de uma empresa, o que lhes pode (ou não) dar direito a dividendos (outro nome para os lucros que são distribuídos), muitas pessoas pagam rendas pelas casas onde habitam e quase todas as pessoas possuem uma conta à ordem ou a prazo ou outra aplicação financeira qualquer que lhe dá algum pequeno juro. Somos todos capitalistas... uns mais, outros menos.

E neste contexto, poucas pessoas se lembram de questionar a legitimidade da existência destes rendimentos. Quem trabalha, obtém um rendimento do seu trabalho. Isso parece justo. Mas o que é que justifica o rendimento de alguém que apenas emprestou o seu dinheiro?...

Este tema tem sido debatido através dos tempos, embora muito menos do que seria necessário. O capitalismo, conforme já atrás mencionei, é um sistema que foi evoluindo ao longo dos séculos, e que actualmente é muito sofisticado. É apenas natural, portanto, que os seus defensores fossem apresentando através dos tempos todo o tipo de potenciais justificações, mais ou menos rebuscadas, para a existência de rendimentos de capitais. Uns dizem que é o prémio que o emprestador recebe pelo risco de não receber de volta o que emprestou. Mas isso é uma falácia. O sistema legislativo, o sistema executivo e o sistema judicial são os garantes do capitalismo. Não poderiam ser também os garantes de quem empresta?... Outros dizem que é uma compensação pelos ganhos que deixam de obter ao emprestarem o que é seu. Mas isso é outra falácia. Se se estão a referir a perdas causadas por uma subida generalizada dos preços, façam todas as contas em termos reais, fixando taxas de rendimento iguais às taxas de inflação, e está o problema resolvido. Se se estão a referir a custos de oportunidade, então estão apenas a dizer que os rendimentos de capitais se justificam porque... existem outros rendimentos de capitais. Outros dizem outras coisas... mas por muito que digam, a realidade é só uma: os rendimentos de capitais existem porque são uma maneira de quem tem mais se aproveitar desse poder para ganhar mais um pouco sobre os outros. Curto e grosso. E isso é objectivamente mau. E, novamente, se não fosse assim, o capitalismo não poderia existir.

Aliás, é até um exercício bastante interessante o de conceber um sistema económico em tudo semelhante ao capitalismo, mas onde não existissem rendimentos de capitais: em termos reais, taxas de lucro e de juro seriam nulas e as rendas não existiriam. Como seria um mundo assim?... Vale a pena pensar...


Quando eu era pequeno, havia ao fundo da rua uma mercearia, daquelas que vendiam tudo aquilo de que as pessoas precisavam. É interessante pensar como uma loja com uma área de vinte metros quadrados era tão boa a satisfazer as necessidades das pessoas nessa altura, como hoje um hipermercado de dez mil metros quadrados!... E como as pessoas de hoje ficariam tão insatisfeitas com as mercearias dessa altura!... Caso para dizer "bom trabalho, capitalistas!"... Bom... nessa mercearia havia um livro onde o merceeiro anotava os montantes que as pessoas ficavam a dever. As pessoas compravam o que necessitavam e diziam "ponha na conta", e o merceeiro punha. No final do mês, o merceeiro adicionava todas as parcelas e determinava quanto é que cada pessoa lá da rua lhe estava a dever. Claramente este merceeiro não era um bom capitalista, porque se o fosse, em vez dessa tecnologia do livrinho, socorrer-se-ia de um cartão em plástico atribuído aos clientes "especiais" da mercearia, e que permitia a esses clientes o acesso a uma linha de crédito para consumo com juros bonificados!...

Imaginemos agora que não existia o livro da(s) conta(s). Os clientes só poderiam comprar pagando a pronto. Seria possível viver assim?...


3 - Plutocracia

Dito de forma breve: um euro, um voto. No capitalismo quem manda não são as pessoas, são os euros.

Metade das pessoas não votam para a eleição de representantes nos órgãos institucionais que os têm, como a assembleia da república (que devia ser grafada com iniciais maiúsculas). Na sua maioria estarão convencidas que não adianta nada votarem. A outra metade poderia regozijar-se por ter o poder de determinar quem são ou não são esses representantes, embora apenas metade dessa metade o faça, uma vez que apenas esses são os vencedores das eleições. Esses acreditam que estão a determinar as futuras decisões políticas, isto é, as decisões sobre aquilo que é comum à sociedade. Mas será mesmo assim?

Antigamente, e em termos de política económica, os governos podiam socorrer-se de diversos instrumentos. Falava-se de política cambial quando um governo tomava medidas que conduziam a uma valorização ou desvalorização da moeda nacional face às restantes moedas. Falava-se de política monetária quando o governo decidia pela emissão de mais ou menos moeda. Falava-se de política orçamental, quando o governo decidia gastar mais ou menos dinheiro, ou quando alterava os destinos dados a esse dinheiro. Falava-se de política alfandegária quando se negociava com os outros países a imposição de taxas à entrada de produtos estrangeiros no país.

Nos nossos dias, a única coisa que se ouve é "tem de ser", "não há alternativa", "tem de ser", "a restrição orçamental", "não há alternativa", "a política de contenção", "a importância da estabilidade", "tem de ser", "não há alternativa"...

A política cambial já era, a política monetária já foi, a política alfandegária onde é que ela já vai!, a política orçamental... tem de ser... contida... A única coisa que resta aos governos de hoje em dia é decidir se vão afectar os fundos mais para aqui ou mais para acolá. Mas como esses fundos são na verdade muito pouco profundos, e toda a gente anda à míngua, os governos desdobram-se em esforços para conseguir evitar a rebelião e manter o status quo.

Quem é que ordenou a cessação dos antigos instrumentos de política económica?... Para benefício de quem?...

A resposta do consenso capicua: fomos todos nós... para bem de todos nós...

Sim, sim... eu lembro-me muito bem da tia Mariquinhas defender com fundamentos sólidos a entrada de Portugal no euro!... Sim, sim... eu lembro-me muito bem do senhor Anacleto Fagundes a dizer que tínhamos de abolir a emissão de moeda pelos bancos centrais nacionais para impedir os surtos de inflação!... E como eu me lembro de ouvir a minha avó a dizer "meu filho, isto sem livre circulação de capitais não vai lá"!

A verdade evidente é que os governos estão, usando os termos da propaganda do PCP, "ao serviço dos grandes interesses económicos", tal e tal... É claro que estão!... E mesmo que acreditemos que os membros do governo são efectivamente autónomos na sua acção, a verdade é que eles actuam num sistema capitalista. E num sistema capitalista, quem tem o poder de pôr as coisas a mexer é quem detém o capital. E portanto, se um governo quer pôr as coisas a mexer, tem de fazer cócegas ao capital. Não há volta a dar-lhe!...

"Menos Estado e melhor Estado", faz parte da lista de chavões que os defensores do capitalismo utilizam para impregnar as pessoas dessa vontade de expurgar o Estado de tudo aquilo onde as empresas podem ir buscar algum dinheiro. Não que alguém defenda a extinção do Estado (e muito menos do capitalismo, claro!), porque sem o Estado um capitalismo nos moldes actuais dificilmente se aguentaria (quem manteria "forças de segurança" capazes de assegurar tamanhas desigualdades económicas? quem canalizaria tanto dinheiro da "classe média" para o financiamento de actividades arriscadas como a "investigação científica"? quem pagaria a criação de infraestruturas para que as empresas singrassem? quem trataria de produzir um tão grande manancial de pessoas já formadas, formatadas, e ávidas de dar o corpo ao manifesto? quem cederia às empresas terrenos ao preço da chuva, juros bonificados, prémios e todo um chorrilho de incentivos à inovação, à modernização, ao investimento tecnológico, à reconversão, ao desenvolvimento e ao mais sei lá o quê?...).

E é neste contexto, de uma economia dominada por empresas, que a plutocracia vinga. Quem é que manda nas empresas?... Numa assembleia de sócios ou de accionistas, não é uma cabeça um voto, é um euro um voto. E é assim que nos gerimos.

Isso estaria bem se inicialmente (seja lá o que o "início" for) todos tivessem os mesmos euros no bolso. Poderíamos então dizer, talvez de uma forma impiedosa, mas pelo menos com o mínimo de fundamento, que a culpa dos que não têm é deles mesmos, pelos erros que cometeram no passado. Mas não existe "início" que nos valha, momento algum do tempo onde todos possuam o mesmo... Em vez disso, todos nascemos para um mundo completamente desigual.

Distribuir desigualmente o poder de decisão sobre o que é colectivo, fazer esse poder depender da sorte, da vigarice e de tantos outros factores completamente arbitrários aos quais a justiça, o respeito e a dignidade são completamente alheios, parece-me algo que é fundamentalmente mau.

Fazer as pessoas acreditar que isso é normal, ou bom, sem sequer as pôr a pensar no assunto, isso parece-me diabólico. E, novamente, o capitalismo não existiria se o poder não dependesse do capital possuído.


4 - Concorrência

Concorrer... Não deixa de ser muito curioso que o tal dicionário que eu consulto indique, como primeiro sinónimo desta palavra "cooperar". Correr em conjunto, contribuir para alcançar um fim comum...

Mas no sistema capitalista a concorrência não significa cooperação, significa o seu oposto: competição. Talvez as pessoas não se sentissem muito satisfeitas se todos os discursos fossem recheados da palavra "competição"... talvez percebessem e sentissem na pele que estão enfiados num sistema que só funciona com competição e que, ao contrário dos jogos de futebol lá da rua, os que perdem perdem mesmo, sem recurso. Mas as pessoas já não se importam tanto de ouvir falar de competências e de competitividades.

Fala-se de competitividade das empresas... mas no fundo não são as empresas que competem, são as pessoas.

O pensamento dominante na nossa sociedade actual apressa-se a considerar a competição uma coisa boa, desde que respeite alguns limites de decência. Claro está, que esbofetear outros competidores é indecente, mas não partilhar com eles o conhecimento, não os ajudar, e eventualmente lançá-los para uma consequente situação de pobreza, isso já é muito decente! E porquê?... Porque quem não produz, não merece ser recompensado! Segundo este modo de pensar tão impregnado em todos nós, competir é bom porque permite desenvolver as competências que nos permitem vencer na vida e merecer um rendimento elevado.

Quem é hospedeiro de semelhante ideologia já não repara que está a avaliar as pessoas pela quantidade de produtos e serviços que ela é capaz de produzir. Note-se que a palavra "qualidade", neste contexto, já não se refere à distinção, por exemplo, entre a produção de armamento ou de alimentos, refere-se tão somente à homogeneidade das características dos produtos e serviços que são gerados nas linhas de montagem. As pessoas já não são boas por serem verdadeiras, amigas, corajosas ou algum outro valor que aqui se queira considerar, que não o valor do dinheiro. As pessoas são boas se gerarem dinheiro.

E diz-se então, pasme-se!, que as pessoas merecem uma posição mais bem paga quando são capazes de gerar mais dinheiro. Neste sistema, homens e mercadorias confundem-se...

Imbuídas de espírito competitivo, as pessoas esquecem-se que nem todas podem ser ganhadoras. Esquecem-se do outro significado da palavra concorrência. Esquecem-se dos outros valores que não o dinheiro... A concorrência melhora as mercadorias, mas piora os homens. E isso é algo intrinsecamente mau.


-------------

Qualquer sistema é bom se os homens forem bons.
Qualquer sistema é mau se os homens forem maus.

E daqui poderíamos concluir que não é assim tão importante o sistema em que vivemos, não fosse o facto de maldade e bondade coabitarem o interior de cada um de nós. E é por isso que a escolha do sistema económico em que queremos viver é importante. O sistema económico que temos não emana de Deus. O sistema económico liberal e capitalista foi construído a pulso, ao longo dos séculos, por quem dele sempre lucrou, e com recurso às mentes e à propaganda mais bem paga.

Pessoas boas e cultas não deviam nunca aceitar semelhante sistema. E historicamente não aceitaram (analisem-se todos os importantes momentos de luta entre quem possui e quem não possui ao longo da história). O facto de as nossas sociedades serem as mais bem formadas de toda a história, devia dizer-nos algo acerca dessa mesma formação.

Ao menos as pessoas queiram ver...

Sem comentários:

Enviar um comentário