quarta-feira, 10 de outubro de 2018

Porque é que as pessoas com gripe não devem ir aos hospitais?



Qualquer pessoa responderá alegre e afirmativamente à questão "acha que é bom aumentar a produtividade?". Logo a seguir responderá afirmativamente e com ainda mais alegria à questão "quer ter mais férias?". Talvez se perguntarmos à pessoa como é que se mede a produtividade a sua alegria comece a diminuir um pouco... E este é um método simples para detectar a presença de ideologias nas cabeças das pessoas, que passam despercebidas aos respectivos hospedeiros.

Aumentar a produtividade é uma batalha sem fim que resulta em mais serviços e produtos (às vezes nem sequer de melhor qualidade) e piores pessoas.

Imaginemos que eu consigo fazer o trabalho de que fui incumbido em 8 horas. Imaginemos que desenvolvo e aplico métodos que me permitem efectuar o mesmo trabalho em 4 horas. O que é que acontece às 4 horas restantes?... Se eu for um trabalhador por conta de outrem (ou um falso recibo verde) a trabalhar no sistema nacional de saúde a resposta é muito simples: as restantes 4 horas serão passadas a produzir mais (e não sabemos se melhor). Isso permite-me ganhar mais dinheiro? Não. Permite-me ter mais tempo livre? Não. Isso faz os meus colegas mais felizes? Não. Isso poderia fazer os utentes do serviço ficar mais felizes... por exemplo através de uma redução dos tempos de espera para consultas. Mas a administração dos hospitais é, por motivos que estão muito longe do acaso, dominada por especialistas em finanças, a mando de gente que aparentemente tem no dinheiro o fim último da sua existência. E portanto, se um trabalhador conseguir reduzir o tempo de execução de um trabalho para metade, o que acontece é que a administração irá rapidamente definir isso mesmo como padrão, irá exigir o mesmo comportamento a todos os trabalhadores, e rapidamente irá arranjar maneira de reduzir o pessoal para metade, fazendo o mesmo trabalho que originalmente, mas gastando metade do dinheiro. Tcharan!

Qual é então o incentivo que alguém que trabalha por conta de outrem tem em aumentar a sua produtividade?... Mas as pessoas são parvas?... Sim, são. Seria parvo não o admitir! Mas são menos parvas quando o assunto em causa mexe no seu bolso...

De qualquer modo, só alguém muito desatento é que ainda não percebeu que os serviços públicos que podem dar lucro quando explorados por privados, todos eles, estão a ser convertidos ao longo de vários anos em serviços mínimos: algo que não mate os pobres, porque afinal são precisos "recursos humanos", e que não nos deixe muito envergonhados nas estatísticas (e nesse aspecto ajuda que os outros países sigam trajectórias semelhantes...), mas que por um lado não exija muitos impostos e por outro deixe a porta aberta ao negócio de quem se pode meter nessas andanças.

E para entender porque é que isto é assim, é preciso abrir os olhos, ao ponto de identificar ideologias em cabeça própria, o que é muito difícil, é preciso abandonar um pouco de ingenuidade, e é preciso aprender um pouco acerca de assuntos um pouco chatos.

Quem se contenta com a ideia simples de que "não há dinheiro" não vai entender nada do que eu vou escrever...

Se acreditarmos que efectivamente não há dinheiro, então acreditamos que o governo, coitadinho, está a fazer o que pode, que as administrações hospitalares estão a "racionalizar" o mais que podem, que os trabalhadores devem ter amor à camisola e dar o litro em prol de tudo o que não tem a ver com eles (em prol dos utentes, das estatísticas do serviço de saúde, da pátria, da família, de Deus), que os utentes devem fazer tudo o que está ao seu alcance, seja lá o que isso for...

Uma coisa que se entende que os utentes patriotas e co-responsáveis na árdua tarefa de pagar a dívida pública (e que ainda não perceberam que ela não é para ser paga, porque é uma maravilhosa galinha de ovos de ouro) devem fazer é passar a ser especialista em auto-diagnóstico. De preferência, os utentes devem tratar-se sozinhos e não necessitar sequer de ir aos hospitais. Os utentes devem compreender que os hospitais funcionam muito melhor sem eles e devem colaborar para não pôr lá os pés!

Mas que raio de país é este onde o ministério da saúde age como um ministério da doença, e em vez de promover a saúde, limita-se a aviar enfermos?

Talvez pudessem fazer o mesmo nas escolas!... É que a wikipedia tem lá tudo, e além disso já se sabe, as más companhias... a ignorância apega-se!... Mais vale as escolas funcionarem só com os pobrezinhos que precisam mesmo de aprender a apertar parafusos para conseguirem um emprego no estaleiro do próximo arranha-céus-com-mil-andares. Os que querem mesmo aprender, já se sabe... que com o conhecimento e a formação e a educação não se brinca... portanto nem que custe mil euros por mês... o melhor é ir para o colégio privado. As escolas públicas especializar-se-iam então nos casos da mais aberrante ignorância, e o ministério da educação passaria a chamar-se ministério da ignorância.

E à semelhança dessa nova invenção que é o internamento de doentes nas suas próprias casas (para não entupirem os corredores dos hospitais), também as escolas funcionariam como dispensadores de curtas sessões de esclarecimento de dúvidas, sendo os estudantes encaminhados para estudar em casa. Ah, e claro que iriam pagar taxas inibidoras... ou moderadoras, para garantir que as escolas, tal como os hospitais, ganham o máximo e gastam o mínimo a aturar chatos que vão lá só para saber qual é o diâmetro da Via Láctea ou para saber que é a resposta ao paradoxo de Zenão.



Bom... deixando a ironia, e passando um pouco para o sério, porque a questão é muito séria mesmo.

Este modelo de gestão do serviço nacional de saúde pode chatear muitos trabalhadores, que podem e devem manifestar o seu descontentamento (porque afinal o dinheiro existe... é só preciso descobrir onde), mas tem consequências muito mais graves do que isso: trata mal os utentes. Trata-os mal, ao ponto de os matar precocemente. E isso não é tema para se brincar.

Sim... é claro que num contexto onde é necessário dar mais atenção aos que estão entre a vida e a morte, é preferível que os que têm gripe não chateiem, mesmo que eles próprios, uma vez por outra, também morram. Este é o pensamento da miséria... É mesmo miserável.

Mas o serviço de saúde deve ser um serviço de saúde, e não um serviço de doença. O serviço de saúde deve existir para dar saúde às pessoas, e não apenas para tratar das suas maleitas mais graves. E, para quem já se esqueceu de algumas relações de causa-efeito fundamentais, muitos dos problemas mais graves começam com problemas mais pequenos. Por exemplo, com problemas suficientemente pequenos para serem menosprezados por quem os atende nos hospitais... Mais taxa moderadora, menos taxa moderadora, mais espera, menos fila, com senha ou com telefonema, exame e relatório, sim senhor doutor, não senhora doutora... o tempo corre, e a saúde vai-se... até a mental.

Ninguém nasce ensinado. E convém, num serviço nacional de seja o que for, que os respectivos funcionários cumpram o seu dever de difusão de informação. Se alguém souber o que é a diabetes, deverá também saber como é difícil fazer com que um diabético entenda o que deve alterar no seu modo de vida. E quem lida com velhotes sabe como é difícil simplesmente fazer com que tomem os medicamentos certos às horas certas... Portanto não é razoável esperar que uma campanha com meia dúzia de cartazes ou publicidades fugazes na rádio ou na televisão produza efeitos miraculosos. E portanto, como me parece razoavelmente evidente, é da competência do serviço nacional de saúde apoiar as pessoas na aquisição do conhecimento e na mudança do comportamento face a um estilo de vida mais saudável. Tal como é da competência do serviço nacional de educação apoiar as pessoas na aquisição do conhecimento e na mudança de comportamento face a um estilo de vida mais consciente, onde as pessoas possam ser mais autónomas na aquisição e no julgamento crítico do conhecimento.

Dando um exemplo simples: consultas de dentistas deviam ser ministradas regular e gratuitamente a toda a gente. E é claro que isso devia acontecer mesmo que as pessoas não apresentassem quaisquer sintomas de doença! Esse é, obviamente, o objectivo a alcançar! Só desse modo se conseguem detectar problemas antes que eles se tornem mais graves.

Mas, mas, mas...

O "mas" usual tem a ver com dinheiro. Mas quem é que paga a esses dentistas todos?... A resposta é sempre a mesma: quem tem dinheiro. Era assim que devia ser. E se assim não é, talvez fosse bom começar a investigar porque é que assim não é. Porque é que o Estado nunca tem dinheiro para nada, mas eu nunca vi tantos carrões e tantos hospitais privados à minha volta. E compreender e actuar sobre isso é urgente e é importante. Portanto eu devia começar a acabar as conversas logo que me colocam um "mas" desse tipo, afirmando liminarmente: instrui-te!

O "mas" seguinte poderá ser algo como: pronto, devia ser diferente... mas não é. E neste momento não há dinheiro e portanto como é que se faz?

Mas a verdade é que há gente a passar fome e o problema da pobreza não pode ser resolvido de hoje para amanhã, portanto como é que se faz?...

Volta-se à ironia! Constrói-se um mega banco alimentar, cujos trabalhadores voluntários e crentes num mundo melhor baseado na caridade, se regozijam todos os anos com o aumento da sua actividade, sem que a direcção sequer perca algum tempo a pensar como é que há-de acabar com a fábrica que cria pobres.

Haja pachorra!...

É claro que se encontrar um homem a morrer à fome e tiver comida eu vou partilhar com ele a minha comida! Mas também é claro que vou tentar saber as razões pelas quais ele não tem comida, e actuar sobre elas para impedir que amanhã tudo volte à estaca zero.

Será que perdemos totalmente este discernimento que me parece rudimentar?...

Se o Estado não tem dinheiro, é claro que temos que nos amanhar com o que há, mas devia ser igualmente clara a necessidade de despender algum do nosso tempo a tentar entender porque é que o Estado não tem dinheiro, e a implementar medidas para que amanhã isso não volte a acontecer!

Entretanto os doentes contagiosos deviam ser fechados num bunker... Pois... Talvez fuzilados e cremados de seguida, não?... Poupavam-se tantos recursos!...

É claro que não!

É claro que os hospitais deviam ser centros de saúde, onde qualquer pessoa, a qualquer instante devia poder recorrer para poder ser ainda mais saudável. E é claro que os doentes contagiosos devem ter um tratamento adequado para minorar o risco de contágio a outras pessoas. E é claro que isso requer pessoas, requer equipamentos, requer tempo e requer dinheiro.

E é claro que só gente que se preocupa mais a diminuir o número de trabalhadores nos hospitais, não investir em equipamentos, consumir todo o tempo dos outros e poupar todo o dinheiro próprio é que poderia fomentar campanhas que pretendem criar no cidadão a ideia de que responsabilidade e dever cívico implicam ir ao hospital só se for mesmo algo de muito grave!

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