Com o advento do automóvel, e através das décadas, as ruas foram sendo transformadas em canais para o transporte de veículos, uma espécie de tubos onde se entra para se sair do outro lado, na casa de alguém ou no shopping. Em consequência as ruas foram progressivamente desprovidas de uma série de outras valências. Os passeios foram estreitados, as árvores removidas e as faixas de circulação multiplicaram-se. As ruas deixaram de ser o ponto de encontro entre as pessoas, o sítio onde podemos conhecer e reconhecer os nossos vizinhos e nós mesmos.
É urgente inverter esta tendência!
Algum trabalho tem sido feito nos últimos anos nesse sentido, mas muito incipiente. A dificuldade geralmente prende-se com o conflito entre a mobilidade automóvel e as restantes potenciais utilizações desse espaço público que são as ruas.
Se não existissem automóveis…
Em Sydney, Paris, Londres e Nova Iorque, e muito provavelmente também nas nossas cidades e no Porto, a proporção da área da cidade ocupada pelas ruas é superior a 20 por cento. Se não existissem automóveis, o que se poderia fazer com esse espaço?…
É certo que abandonar o uso dos automóveis, mesmo podendo ser um objectivo desejável, não será fácil ou rapidamente alcançável. Mas é preciso trabalhar nesse sentido, uma vez que os custos do transporte automóvel são simplesmente demasiados: não apenas o problema energético, que não se extingue com o uso de veículos eléctricos, mas também o ruído, a indústria de produção associada, a construção das vias, o aparelhamento com sinais de trânsito, a fiscalização, a segurança de quem conduz, mas sobretudo dos peões e, claro, a ocupação de espaço, quer quando estão em circulação, quer quando estão parados.
A reafectação do espaço público que são as ruas, devolvendo-as às pessoas, não passará contudo apenas pela diminuição do uso dos automóveis.
Para que servem as ruas?
Quando um portuense sai à rua fá-lo como um meio para atingir um fim, e não como um fim em si mesmo. A rua está lá para se levar o cão a passear, mas sobretudo, lá está, como canal por onde se circula para poder chegar ao outro lado.
É preciso aproximar esse «outro lado» da casa de cada um. O shopping deve ser diluído pelas ruas. O parque deve ser diluído pelas ruas. E seria positivo que os amigos pudessem viver mais próximo de nós – não que seja de promover uma reafectação das casas pelas famílias, antes será de promover uma convivência de maior qualidade com os nossos vizinhos.
A rua deve passar a ser o fim em si. Deve ser o parque. Deve ser a loja. Deve ser o café. Deve ser o convívio, o exercício, o descanso, o livro que se lê, que se vê e que se vive.
Nisto, como em tudo o mais, as coisas andam de mãos dadas: na medida em que a rua e o mais próximo se transformar no fim em si, também a necessidade de transportes rápidos e constantes para todo o lado diminui.
Tantas medidas a abordar!
Que medidas políticas podem contribuir nesse sentido? Tantas!… As políticas de penalização do uso de transporte automóvel pessoal são certamente abordadas em inúmeros documentos. Muitos outros abordarão o uso de transportes alternativos, entre os quais os transportes públicos colectivos, os transportes públicos individuais, as bicicletas, as trotinetas, os patins e o que seja.
Haveria que juntar a isso as políticas de reordenamento do espaço das ruas, planeando para o silêncio, integrando o arvoredo, promovendo a instalação de bancos e espaços de convívio, incluíndo espaços de jogos colectivos e zonas preparadas para o dizer, o tocar, o cantar, instalando equipamento desportivo, subsidiando eventos culturais ao ar livre… e, claro está, impedindo a proliferação dos grandes centros comerciais e apoiando, ao invés, o pequeno comércio local.
É urgente trazer pessoas para a rua e, já agora, que não apenas em calções e com máquina fotográfica.
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