segunda-feira, 13 de novembro de 2023

Guerra, democracia e convivência pacífica entre os povos e as pessoas

 

Os bons e os maus


Quem ordena a morte considera que o outro deve morrer. E quem é que deve morrer?


Quantos juízes encontramos hoje à nossa volta, mesmo os mais cristãos, que perante tal pergunta fogem com o rabo à seringa, mas à conversa com os amigos e conhecidos lá vão concordando ou mesmo afirmando que esta ou aquela guerra é inevitável, ou até mesmo desejável?


Quem é que merece morrer? Quem somos nós para nos acharmos no direito de condenar os outros à morte? A nossa lei não condena, mas nós condenamos por ela, para lá dela, por cima dela, pelo lado, contornando-a. Fechamos os olhos à lei quando nos convém, mas logo a temos na ponta da língua quando nos interessa. As convenções de Genebra e os direitos humanos e as nações unidas e as cruzes vermelhas e os corredores humanitários e os capacetes azuis e mais sei lá o quê... lembramo-nos disso tudo quando nos dá jeito.


E o que é que nos dá jeito? Matar os outros? Desde quando é que matar os outros nos dá jeito?... Quem é que nos meteu na cabeça que há guerras que valem a pena, que há vítimas que devem ser protegidas e há mortos que bem o merecem?


Afinal o que é que nos dá jeito? É a arma que nos dá jeito? Os tanques de guerra? Os drones? Os mísseis? Os exércitos? É isso que nos dá jeito? É isso que nos convém?


Eu julgava que aquilo que nos convinha era podermos ser livres de fazer coisas boas, de semear e colher frutos bons, de criar filhos saudáveis, de viver em conjunto com as outras pessoas com quem, sorte de probabilidade ínfima!,  partilhamos o mesmo minúsculo pontinho azul às voltas de um sol qualquer, de uma galáxia qualquer, no mesmo preciso instante, umas décadas numa história universal que se mede em milhares de milhões de anos.


Eu julgava que aquilo que nos convinha era aprendermos a tomarmos as nossas vidas nas nossas próprias mãos, a deixarmos de precisar de alguém que mande em nós, ou sequer que nos ajude paternalmente. Era sermos capazes de construirmos para nós aquilo de que necessitamos, era adquirirmos o conhecimento que nos permitisse isso. Eu julgava que o que nos convinha era conhecermo-nos a nós mesmos e aos outros, aprendendo o quanto todos temos em comum. Era aprendermos o respeito, aprendermos que há muitas formas de olhar o mundo, aprendermos que a nossa maneira é apenas uma entre muitas possíveis, que os outros podem aprender connosco, mas que nós podemos aprender muito com eles. Julgava que nos convinha aprendermos a não explicar os comportamentos dos outros por maldade, mas percebermos que os comportamentos, como tudo no mundo e na vida, têm causas e têm consequências, não surgem do nada, têm uma história. Julgava que nos convinha perceber que nós próprios erramos, que nós próprios causamos danos nos outros, e que tantas vezes isso acontece mesmo quando temos as melhores intenções. Julgava que nos convinha perceber que nós próprios às vezes somos negligentes, às vezes acreditamos em coisas que afinal não são verdadeiras, que às vezes somos levados pelo medo, ou pela raiva... mas que afinal nós só queríamos estar em paz, connosco e com os outros. Julgava que seria bom para nós utilizar esse conhecimento de nós próprios para nos ajudar a interpretar melhor os outros, para não vermos neles os monstros que às vezes vemos, e para percebermos que, afinal, eles são muito mais parecidos connosco do que às vezes supomos, que afinal eles também só querem estar em paz com eles próprios e com os outros, porque afinal eles também só querem criar os seus filhos, semear e colher frutos bons.


Onde é que entra aqui o dizer sim às organizações militares internacionais? Onde é que entra aqui o apoiar o envio de mais armamento para a frente de batalha, esta ou aquela? O aceitar as ordens para matar que nos são dadas por senhores limpinhos e engravatados? Como é que isso nos pode dar jeito?... Onde é que entra aqui o dar-nos jeito cultivar ódios por povos inteiros, como se os povos inteiros fossem inteiramente constituídos por pessoas de um só tipo, e como se esse tipo de pessoas fosse o tipo "mau", precisamente o tipo de pessoa que não quer a paz que nós queremos, que quer a guerra? Onde é que entra aqui o dar-nos jeito sermos ignorantes e toldarmos a vista e a compreensão aceitando narrativas de povos maus? Onde é que entra aqui o dar-nos jeito deixar de entender os acontecimentos como as consequências de longas cadeias históricas e em vez disso explicá-los de forma simplista e errada como o resultado da obra de um ou meia dúzia de loucos?


Sim, sim: a guerra na Ucrânia é obra de um maluco que resolveu, num dia de mau humor, invadir o país do lado! Sim, sim: a guerra em Gaza é obra de um bando de malucos que resolveram, num dia de prisão de ventre, lançar bombas no país do lado! Sim, sim: a segunda grande guerra foi obra de um maluco, que acreditava que existiam pessoas boas e pessoas más no planeta, e decidiu exterminar as más, para criar um paraíso na Terra! Sim, sim... Os acontecimentos deixam de ter um contexto. Deixam de ter antecedentes. Meia dúzia de actores mal humorados passam a ser os únicos protagonistas. Fazem a guerra sozinhos. Sim, sim... E Deus nos livre de malucos como esses!... Por isso mesmo, nós que acreditamos que nós somos os bons, e esses são os maus, vamos tratar de os exterminar o mais depressa possível! Exterminar os maus, pois claro, e todos os outros que estão a seu mando, que imediata e irreflectidamente passam também a ser maus.


Pois eu julgava que era este tipo de cegueira, a cegueira que nos impede de vermos em nós próprios aquilo que criticamos nos outros, que não nos dava jeito nenhum!


Ah, mas na guerra é diferente! – pensamos nós. Se um militar do lado dos maus está prestes a disparar um tiro contra um dos bons, certamente que merece morrer!... Só não nos lembramos que do outro lado, o militar mau está a pensar exactamente o mesmo acerca daquele que consideramos bom. Porque a cegueira dele é igual à nossa. E porque ambos, de um lado ou do outro, estão às ordens de outros igualmente cegos.


E então, tal é a cegueira, chegamos a acreditar que é bom para nós o que afinal é mau para toda a gente.


Alguns apoiam a guerra enquanto ela não lhes bate à porta. Mas quando é o seu próprio filho que vai para a frente de batalha matar ou ser morto, a coisa pode mudar de figura.


Há outros que apoiam a guerra até ao fim. Estão tão certos das suas certezas que acreditam que mais vale morrer do que deixar que o inimigo vença. Afinal, o inimigo é composto por pessoas más, militares maus às ordens de líderes maus, que tentam impor as vontades de povos inteiros que são maus!


Em momentos de clarividência todos defendemos a paz. Mas se os outros nos atacarem, ah!, aí já passamos a acreditar que há guerras que valem a pena!


E as guerras que valem a pena, valem-no exactamente porquê?


-- Ah, porque os outros nos querem matar!


Será?... Será que o objectivo dos outros é mesmo matar-nos a todos, porque nós somos os maus?... Ou será que só nos quererão matar enquanto nós formos obstáculos aos seus outros objectivos? Porque é que nos consideramos tão importantes assim?...
 

 


Os motivos das guerras

 
Haverá porventura guerras entre povos que se querem aniquilar mutuamente. Ambos usam os outros como justificação para o que está mal no mundo e nas suas próprias vidas, e um extra de ignorância e estupidez pode fazê-los acreditar que exterminar o vizinho trará alegria às suas vidas.


A maior parte das guerras, porém, não necessita de doses tão colossais de insensatez. A maior parte das guerras é feita entre os especialistas da guerra de cada um dos lados, os militares, poupando os restantes, os civis, e é feita com o objectivo de conseguir conquistar o poder sobre um determinado território, com tudo o que ele contém, incluindo o seu povo, ou os seus povos. Aliás, isto de os territórios terem os seus povos tem sido uma tremenda chatice, ao longo da história, para os invasores: muitas vezes o seu interesse reside apenas no território e não nos povos que o habitam. Como seria bom para os invasores poderem simplesmente apoderar-se de territórios sem terem de matar ninguém!... Felizmente hoje existem os chamados "meios de comunicação social", que apesar de serem muito associais e nem sempre permitirem uma comunicação bidireccional, permitem espalhar o terror no povo invadido e, numa segunda fase, permitem transmitir que a escapatória com vida reside na oportunidade gentilmente concedida de irem viver para outro canto do planeta. Lembra alguma coisa?


Se formos nós o povo invadido, talvez não tenhamos dúvidas acerca da necessidade de guerrear. Acreditamos então que a guerra vale a pena porque devemos "defender o que é nosso", porque os outros, ao quererem controlar o território onde vivemos, e ao quererem controlar também as nossas vidas, vão condicionar o nosso modo de falar, o nosso modo de vestir, o nosso modo de conseguir dinheiro para poder comprar as coisas de que necessitamos, as próprias coisas que podemos ou não podemos comprar, etc. Acreditamos, no fundo, que os maus que aí vêm nos vão roubar a nossa liberdade de "sermos quem somos" e de fazermos o que queremos e do modo que queremos. É claro que em cima desse arrazoado temos também uma dose enorme de medo.


 
Liberdade, querida liberdade

 
No entanto, a nossa cegueira impede-nos de ver que afinal nunca fomos livres nas nossas próprias vidas, nos nossos próprios territórios, a fazermos aquilo que sempre fizemos. A mesma falta de visão que nos impede de ver os acontecimentos sociais, económicos, políticos, como consequências de um determinado contexto, de uma determinada história, essa mesma falta de visão também nos impede de nos vermos a nós próprios como uma consequência de um determinado contexto, de uma determinada história. Achamos que não somos consequência do que veio de trás, porque afinal somos livres! Fomos nós que decidimos em 1987 ir estudar isto ou aquilo, fomos nós que decidimos vir morar para esta casa e fomos nós que nos candidatámos ao emprego que agora temos. Fomos nós que comprámos as nossas roupas, os nossos carros e os nossos telemóveis. Fomos nós que decidimos ir de férias em Agosto.


A nossa cegueira impede-nos de ver que, afinal, deram-nos a escolher entre o partido assim ou o partido assado, e nós lá fomos alternando entre o assim e o assado até chegarmos à conclusão que tanto dava e então deixámos de votar e então comprovámos que efectivamente não fazia diferença nenhuma. Afinal, comprámos o telemóvel porque houve quem os produzisse e os colocasse no mercado, houve quem os tornasse obsoletos tão depressa e nos obrigasse a estar sempre a comprar um novo, houve quem determinasse que isto, aquilo e mais alguma coisa de agora em diante iriam passar a ser feitas através de uma "app" no dito cujo. Afinal, candidatámo-nos a este emprego porque era o que havia nesta zona para pessoas com o nosso perfil. Afinal, estudámos isto ou aquilo porque era o que no momento adivinhávamos como o mais adequado para o futuro mercado de trabalho. Afinal, milhões e milhões de pessoas, tão livres como nós, fizeram e continuam a fazer exactamente as mesmas coisas que nós, e quando vamos a casa delas descobrimos que têm carros como o nosso, vestem as mesmas roupas que nós, falam a mesma língua que nós, e, como vêm os mesmos programas televisivos que nós, utilizam essa mesma língua para dizer o mesmo que nós. Tudo na maior das liberdades, aparentemente...


A nossa cegueira impede-nos de perceber que afinal a nossa liberdade não acaba quando começa a liberdade do outro, porque a liberdade do outro é como a nossa, e ambas as liberdades acabam quando passamos a porta de entrada da empresa onde trabalhamos. Vestimos a farda, adequamos o falar e o fazer àquilo que nos é permitido e, sendo caso disso, até cantamos o hino! E depois de aturarmos isso o dia inteiro, depois de aturarmos isso anos e vidas inteiras, ainda nos tentamos convencer a nós mesmos que é e sempre foi assim por nossa exclusiva vontade. Pois... custa-nos a admitir a corrosão do nosso próprio carácter, custa-nos o admitir que afinal não temos mão em nada disto, que afinal sempre fizemos o que os outros nos permitiram fazer, conduzimos automóveis porque os outros nos deram isso a comprar, porque os outros construíram estradas por aqui ou por ali, deixámos de escrever o cê de facto porque houve uns iluminados que decidiram que era para nós todos fazermos assim, e nós aceitámos. Disseram-nos que o feriado tal e tal ia deixar de ser. E deixou de ser. E depois disseram-nos que era para ser outra vez. E passou a ser. Resolveram fechar a linha de comboio que passava perto de nossa casa. E fecharam! E depois decidiram fechar a escola. E o centro de saúde. E nós lá tivemos de ir para o hospital mais além, que eles decidiram construir ali. Hoje os médicos fazem greve, porque decidiram pagar-lhes mal e exigir-lhes muito trabalho. A nós também decidiram pagar-nos mal e exigir-nos muito trabalho. Mas o sindicato é para quem tem contrato e nós precisamos do dinheiro, portanto aceitamos. Decidiram que iam mandar dinheiro para a guerra, e que iam tirar dinheiro da "cultura", seja lá o que isso for. A meo e a vodafone decidiram aumentar os preços, e nós pagámos. Agora foi o mesmo com a manteiga.


E nestas vivências muito comuns, muito normais, não somos capazes de ver que afinal vivemos toda a vida numa liberdade muitíssimo condicionada. Não fomos nós que decidimos quais os produtos que iam estar à venda nos supermercados, nem o tamanho dos supermercados, nem os horários de funcionamento. Não fomos nós que decidimos desmantelar os serviços públicos e nunca chegar a construir um serviço de transportes públicos digno desse nome na terra onde vivemos. Não fomos nós que decidimos o local ou o horário de funcionamento da empresa onde trabalhamos. Nem fomos nós que decidimos fazer nesse trabalho aquilo que nos mandaram fazer. Nem decidimos o montante do salário, nem a farda, nem o hino, nem a língua!


Afinal, em todos os processos de decisão que levaram à construção do mundo e do nosso pequeno mundo, houve sempre pessoas com mais poder e pessoas com menos poder. E nós, em vez de percebermos que sempre fizemos e continuamos a fazer parte do grupo dos que não têm poder nenhum, acreditamos que temos poder, porque o tipo que tem poder está do nosso lado! Aliás, quando dizemos "nós", fazemos questão de meter tudo no mesmo saco: o tipo cheio de poder, muita gente como nós que não tem poder nenhum, os que querem assim, os que querem assado...


 
A nossa identidade

 
O que é que nos faz acreditar neste "nós"? A nossa bandeira, claro está! A nossa história, claro está! A nossa identidade cultural! Aquilo que nos une... seja lá o que isso for... Os portugueses... aquilo que nos une... claro!... Claro!... Claro?... É mesmo assim tão claro?...


O que é que une todos os portugueses, afinal? Uns têm a pele escura, outros têm a pele clara, outros assim-assim. Uns dizem soleira, outros dizem poial, uns dizem couro e outros coiro. Muitos dizem água, mas alguns dizem auga, e aos olhos dos senhores que ignoram contínuos linguísticos e gostam de pôr tudo em caixinhas, estes últimos falam mal, mesmo que estejam mais de acordo com as origens da nossa língua... Uns falam duma maneira, outros falam doutra: nem todos falam o mesmo português, alguns não falam de todo, alguns ainda estão a aprender, e outros falam mirandês! Uns são novos, outros são velhos, outros assim-assim. Uns vestem-se bem e os outros vestem-se mal. Uns são vegetarianos e outros gostam do sporting. Enfim... são todos muito catitas e diferentes à sua maneira... mas lá diz o outro: todos diferentes, todos iguais! Porque afinal quando toca o hino todos cantam "às armas, às armas!". E quando joga a selecção todos torcem pela vitória. Ou qualquer coisa assim que achamos que é muito significativa nas nossas vidas... E, claro está, descontando os portugueses que se estão a borrifar para o hino e/ou para a selecção. Mas vá, ensinaram-nos que somos todos portugueses, e estamos todos juntos, e quem somos nós para ir contra a corrente?


Seria talvez um pouco mais consequente dizer que o que une os portugueses é a sua sujeição a um corpo comum de normas legais. São essas normas que estabelecem quanto é que os funcionários públicos ganham ao fim do mês. Todos os portugueses partilham isso, quer queiram quer não, e basta sair para o país do lado para a realidade ser outra.


A nossa cegueira não é tanta que nos impeça de ver que as leis portuguesas nos sujeitam a todos, e que essa sujeição tem repercussões profundas nas nossas vidas, desde aquilo que se aprende nas escolas até ao modo como nos transportamos pelo país, passando pelo que podemos ou não podemos fazer na rua.


A nossa cegueira é no entanto suficiente para nos impedir de ver que, afinal, aquilo que mais une os portugueses não é o caldo verde, mas sim a obediência a um mesmo conjunto de normas, que se traduz, em termos práticos, à obediência ao patrão, ao polícia, ao ministro, ao juiz.


 
Identidade, liberdade e globalização

 
Tal como o caldo verde vai sendo substituído por pizzas e kebabs, também as leis portuguesas vão-se sujeitando cada vez mais ao que vem de fora. Há aquilo que vem de fora e que temos de aceitar, com força de lei, porque a certa altura do campeonato nós todos, como portugueses, mesmo sem termos a mais básica noção disso, transferimos parte da "nossa" soberania para o estrangeiro. Há aquilo que vem de fora e apesar de a lei não nos obrigar a aceitar, nós aceitamos por causa do nosso "posicionamento geoestratégico" ou coisas que tais, conforme nos dizem de fatiota nos noticiários, e que nós aceitamos porque são coisas feitas para nós, pelos "nossos", o nosso grupo de amiguinhos, países amigos, presidentes amigos, instituições amigas.


Nós sujeitamo-nos a isso tudo. E no processo não vemos que afinal quem decide a pizza e o kebab, a localização do supermercado, a construção do hospital, o encerramento da escola, o fabrico de armamento, a criação de guerras e o envio de militares e armamento para lá, são sempre os mesmos: os que têm poder. Não vemos que afinal nós não temos poder nenhum. Não vemos que afinal o "nós" simpático onde nos queremos incluir, como o "nós" dos funcionários públicos, ou dos portugueses, ou dos europeus, é constituído por pessoas com poderes muito diferentes, com interesses diferentes, e sobretudo interesses que muitas vezes são antagónicos aos nossos. Nós aceitamos, tantas vezes sem termos sequer a consciência disso, a subserviência aos senhores que decidem as coisas por nós.


 
A democracia que temos

 
Depois, ao fim do dia, despimos a farda, e voltamos para casa. Acreditamos na nossa democracia, porque nos disseram que democracia era sinónimo de ir colocar um papel numa urna de tantos em tantos anos. Entretanto já nos esquecemos que democracia devia significar o poder do povo, e já nem sequer suspeitamos que esse poder do povo deve ser repartido por todas as pessoas de igual modo: uma pessoa, um voto. Aceitamos que existam pessoas cujo voto valha tanto como o de milhões e milhões de pessoas como nós. São os génios como o Bezos, o Gates, o Musk, ou outros que tais. Não nos ocorre julgar que a riqueza destas pessoas resulta do trabalho de milhões de pessoas... mas sobretudo não nos ocorre julgar que nas nossas supostas democracias, estes tipos têm muitíssimo mais poder do que nós para decidir tudo aquilo que diz respeito às nossas vidas, inclusivamente o que diz respeito à língua que falamos, óraite? Nas nossas cabeças juntamos, porque nos instruíram a juntar, democracia e economia de mercado, como se uma coisa implicasse a outra, e assim fossem equivalentes, esquecendo totalmente que numa delas dá-se um voto a cada pessoa, na outra dá-se um voto a cada euro, e as pessoas não têm todas a mesma quantidade de euros.


De resto, aceitamos como justo que haja uns espertos que, porque são espertos, têm mais dinheiro do que os outros, e logo têm mais poder. Às vezes há quem se engane dizendo que são ricos porque trabalharam muito... mas nós sabemos que se trabalhar muito fosse um caminho certo para a riqueza, haveria neste momento milhares de milhões de ricos no mundo. Não... eles são ricos é mesmo porque são espertos!... E nós bajulamo-los por isso mesmo, por serem espertos e ricos. E gostaríamos de ser como eles!...


 
O inimigo no espelho

 
E não percebemos que, nesse processo, estamos a construir na nossa cabeça o mesmo edifício que permitiu ao tal maluco da segunda guerra mundial justificar o extermínio de milhões de pessoas. Porque, efectivamente, o que estamos a fazer é a aceitar como certo que democracias implicam economias de mercado, e que nesse contexto as pessoas mais espertas fazem mais dinheiro, e mais dinheiro dá-lhes mais poder. Ou seja, aceitamos que os mais ricos tenham o poder de decidir a vida dos menos ricos. Ou seja, aceitamos a violência exercida por uns sobre os outros com base, neste caso, na dita esperteza, ou genialidade, ou seja o que for.


Ou seja o que for!


Porque o que está na base do edifício fascista é esta distinção entre pessoas boas e más com base num qualquer seja o que for: ou é a cor da pele, ou o tamanho do nariz, ou da testa, ou da pila, ou da conta bancária.


-- Ah, mas e se a triagem das pessoas for feita com base em critérios sólidos e inquestionáveis como a inteligência e o conhecimento?...


Sim, então o quê?... Então somos apologistas de que os direitos à liberdade, à dignidade, ao sustento, ao descanso, devem ser geridos por um grupo de iluminados à revelia da vontade dos demais?


Quão profundo pode ser o nosso pensamento fascista?

 

 
A democracia que não temos

 
A democracia que não temos, e devíamos ter, considera as pessoas todas de igual modo. Nela, têm o mesmo poder de voto os mais e os menos inteligentes, os mais ricos e os mais pobres. Mas... será isso bom?


As visões aristocráticas preferem deixar o poder nas mãos dos melhores. Naturalmente os melhores é que decidem o que significa ser melhor, e naturalmente isso coloca logo à partida um problema irresolúvel.


Em boa verdade, todos os sistemas são bons quando as pessoas são boas. Até uma ditadura pode ser a melhor forma de governar uma sociedade se o ditador for bom. Talvez possamos também estar de acordo que uma ditadura pode ser a pior forma de governar se o ditador for mau. E não tenhamos ilusões: todos os sistemas são maus quando as pessoas são más.


É neste contexto que se afirma que a democracia é o pior de todos os sistemas, com excepção de todos os outros. Talvez não seja o ideal ter uma maioria de pessoas menos inteligentes ou menos sensíveis ou menos bondosas a decidir questões que afectam a todos. Mas não só não existe um melhor sistema, como o sistema que atribui a todas as pessoas um voto de igual valor é o único que dá um efectivo incentivo à construção de uma sociedade onde todos sejam conhecedores, inteligentes, conscienciosos, benevolentes... todas aquelas coisas que considerávamos virtudes antes de passarmos a acreditar que a existência de virtudes cheira a moral e a moral cheira mal.


 
De volta à democracia que temos, à globalização e à identidade

 
Mas isso é a democracia que não temos. A que temos é aquela em que os do costume mandam em nós e nós gostamos. O que mais une os portugueses é isto: é o sujeitarmo-nos a esse poder dos do costume: os Belmiros, os Champôlimão, os presidentes, e todos os antecedentes e sucedâneos, como os tipos a quem se erigiram bustos que foram colocados em locais públicos lá da aldeia para adulação perene do povo.


Na medida em que a globalização funde mercados e produz uns cada vez menos e outros cada vez mais poderosos, também o que une os portugueses se dilui cada vez mais com o que une os espanhóis e os outros povos. Paulatinamente vamos obedecendo cada vez mais a cada vez menos senhores: aos mesmos senhores. Lentamente vamos integrando os mesmos neologismos nas nossas línguas, cada vez mais falamos das mesmas coisas e nos entretemos em lineares dos mesmos supermercados, a apreciar as mesmas flutuações de preços dos mesmos produtos. As directivas europeias, a NATO, os carros eléctricos e o youtube impõe-se-nos de igual modo.


Se hoje fôssemos invadidos pelos espanhóis, o que seria de nós? Talvez sentíssemos estranhas pressões para abrir as vogais... talvez pudéssemos comprar a gasolina mais barata e talvez tivéssemos salários um pouco maiores. O sol continuaria a nascer e a pôr-se todos os dias, e continuaria a chover do mesmo modo. Os carros continuariam a circular nas mesmas estradas, e as normas europeias garantiriam que continuaríamos a usar a mesma moeda e a obedecer às mesmas "leis" do mercado.


Para lá e acima disso tudo, os portugueses continuariam a partilhar com os espanhóis a sua essência mais profunda, a mesma que une toda a humanidade: continuaríamos a querer viver em paz, a semear e a colher bons frutos.


Se hoje fôssemos invadidos pelos espanhóis, pegaríamos em armas para os ir matar?


Porque haveríamos nós de ir guerrear os outros iguais a nós, para depois nos sujeitarmos às vontades dos mesmos poderosos?


Mas, e se fôssemos invadidos por chineses?


Porque haveríamos nós de ir guerrear os chineses, que também são iguais a nós, para podermos continuar a servir os poderosos de cá, em vez de servir os poderosos de lá?


É nos nossos trabalhos diários que quase todos nós perdemos a nossa liberdade e a nossa democracia. O nosso tempo é tomado pelo relógio de ponto, e as nossas vontades são substituídas pelas de alguém mais poderoso que nós. No final, recompensam-nos com um sofá e netflix.


E se nós não pegamos em armas para combater quem nos rouba a nossa própria vida, todos os dias, aqui mesmo, no lugar onde vivemos, porque razão havemos nós de ir deitar bombas nos nossos vizinhos e matá-los para impedir que venham outros roubar-nos o tempo da mesmíssima forma? Que tipo de paz é que pensamos ser capazes de atingir por essa via?


Vale a pena matar ou morrer para estar às ordens de um ou de outro manda chuva?


 
A paz

 
Só há uma forma de conseguir a paz: combatendo a guerra.


Mas a guerra não se combate com mais guerra. Toda a história da humanidade nos demonstra que esse nunca foi e não é o caminho.


Só há uma forma de combater a guerra: retirando-lhe os meios e os propósitos.


É nisso que nos temos de concentrar todos: retirar os meios e os propósitos à guerra.


Quais são os meios das guerras? São as armas e são as pessoas que as empunham.


Logo há que desmantelar as armas e os exércitos.


Quais são os propósitos da guerra?


A tentativa de expansão do poder de alguns sobre novos territórios, novas povos, novos negócios, e o ódio instrumental que por eles nos foi incutido.


O ódio é o produto do medo. O medo é o produto da ignorância. Há que combater a ignorância. E isso não se faz com diplomas ou certificados. Faz-se com conhecimento útil, conhecimento contextualizado, significante. Há que identificar e rejeitar as fontes que nos enchem de conhecimento descontextualizado, ao género do homem que mordeu o cão, e por isso mesmo inútil.


As tentativas de expansão do poder só existem enquanto existirem instituições (na sociedade, na política, na economia) que atribuem desigual poder às pessoas. Há que combater as desigualdades na distribuição do poder. E isso faz-se através da promoção da democracia. Não uma democracia fantástica, fingida e mentirosa como a que hoje temos, mas uma democracia que atribui um voto a cada pessoa, seja ela pobre ou rica, em todas as circunstâncias das nossas vidas, a começar por aquilo onde gastamos a maior parte do nosso tempo: o nosso trabalho.


 

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