quinta-feira, 22 de fevereiro de 2024

Liberal. A política e a economia.

 

Liberal, talvez. Mas livre? Libertina? Libertária?... Estamos novamente no reino das guerras de palavras. Estes adjectivos partilham a mesma raiz, mas não têm os mesmos significados.

Talvez um melhor entendimento possa ser atingido respondendo à pergunta: livre do quê? Afinal, quando pensamos em liberdade, pensamo-la em oposição a algo que a impede, algo que a aprisiona. Podemos querer libertar um pássaro da sua gaiola, uma pessoa de um peso na consciência, um povo de um ditador, uma língua dos ditames do grupo da academia, os pobres dos ditames dos ricos, os ricos do cheiro dos pobres. Dá para tudo... daí o problema.

O termo liberal, quando aplicado no contexto da economia ou da política, quer geralmente significar com poucas regras.

Será isso uma coisa boa ou uma coisa má? Talvez sintamos que as regras que se aplicam a nós limitam a nossa liberdade, e portanto são uma maçada. Ao invés, quando as regras impedem os outros de fazer coisas que consideramos erradas, já pensamos que são boas. Mas se conseguirmos prevenir os comportamentos desviantes dos outros com menos regras, talvez isso seja preferível... Assim como uma sociedade ideal, onde tudo corre bem sem a necessidade da existência de polícias e leis e tribunais. Apesar disso talvez continuemos a achar que as coisas regradas são melhores que as desregradas. Enfim, confusões palavrescas.

Se me dessem a escolher entre mais regras ou menos regras, mantendo-se tudo o resto igual, eu certamente preferiria menos regras. As regras são uma chatice. Logo à partida torna-se necessário conhecê-las. E depois é necessário cumpri-las. E ainda nos sujeitamos a vir de lá o fiscal carregado de um qualquer poder que nós não temos para nos apontar o dedo aonde nem sequer suspeitávamos!


No entanto, é impossível fugir ao chavão: as regras são necessárias à vida em sociedade. Historicamente, todas as sociedades possuíram os seus articulados normativos, expressos ou tácitos. E não é necessário pensarmos em civilizações como os gregos antigos ou os romanos. Também os "bárbaros" de aldeias comunitárias actuais possuem os seus conjuntos de regras.

As regras existem geralmente para impedir que os espertalhaços se aproveitem dos incautos. Aparentemente Aristóteles terá dito que a amizade é mais importante que a justiça, porque onde houver amizade, não será necessário haver aparelhos de justiça. O problema, claro está, é que numa comunidade de amigos que verdadeiramente se preocupam uns com os outros, ninguém pode prever se e quando vai aparecer um espertalhaço.

Uma sociedade com regras e com um aparelho fiscalizador e sancionatório é uma grande chatice... mas: o que fazer? Todos os sistemas são bons quando as pessoas são boas, mas todos os sistemas são maus quando as pessoas são más. E o problema com os seres humanos é que, infelizmente, há uma tendência muito forte para as pessoas serem simultaneamente boas e más, em proporções variáveis consoante a pessoa e as circunstâncias.

Os partidos liberais batem-se por economias liberais, isto é, com menos regras. Mas será uma economia liberal o mesmo que um "laissez faire", assim uma espécie de "far west" ideal, onde não há regras e cada um está totalmente abandonado à sua sorte, perdão, onde cada um é totalmente livre? Não exactamente.

As economias ditas liberais sempre foram, e continuam a ser, muito pouco liberais. Por exemplo, elas sempre tiveram como pilar o sacrossanto princípio da propriedade privada. Como nós próprios nascemos e vivemos sempre numa economia onde esse princípio prevalece, talvez julguemos que isso é natural, é essencial, é indispensável à vida em sociedade. Mas isso não é verdade. De qualquer modo, se pensarmos um pouco, poderemos sentir que a garantia da propriedade privada é fundamental para a nossa sobrevivência, mas também poderemos descobrir que ela restringe muito significativamente a nossa liberdade. Alternativamente, façamos uma redução ao absurdo: se de repente fosse abolido o princípio da propriedade privada, poderíamos ir às lojas pegar naquilo de que necessitássemos e não necessitaríamos de trabalhar para conseguir o dinheiro para o pagar.

A garantia da propriedade privada não é um princípio tão fácil de implementar na prática quanto se possa pensar. Imaginemos uma comunidade onde todos os seus membros, menos um, possuem uma determinada riqueza, mas esse um possui a mesma riqueza que a soma de todos os outros. Como é que se garante que os outros membros não se apropriam dessa riqueza? Isso implica a existência de normas escritas, de polícias, de tribunais e de cadeias. E qual seria o incentivo dos membros dessa comunidade para implementar tal sistema?...

Os impostos podem ser (ou não!) mecanismos para apaziguar as tensões comunitárias que surjam da desigual repartição da riqueza. Eles são, na verdade, antagónicos ao princípio da propriedade privada. E se a respectiva colecta não servir directamente para a diminuição de desigualdades, servirá para manter as forças policiais bem oleadas.

Os militantes de partidos liberais, defensores de economias liberais, nunca poderão ser contra o Estado ou contra os impostos. Eles usam um chavão que já todos ouvimos: "menos e melhor Estado". Claramente isso não é o mesmo que abolir o Estado. Mas será então necessário perceber o que se entende por menos Estado e o que se entende por melhor Estado.

Vou atalhar um pouco, senão o texto passa de longo a extensíssimo. O que este tipo de liberais defende é a possibilidade e as condições de os mais ricos poderem fazer ainda mais dinheiro. Curto e simples. E nesse processo o Estado desempenha e sempre desempenhou um papel essencial.

Desenganem-se, portanto, os que vão na cantiga propalada acerca dos malefícios do planeamento, e sobretudo do planeamento central na economia, fazendo comparações com a antiga União Soviética. Isso é propaganda. O facto é que os liberais das economias liberais sempre planearam e implementaram os seus planos, cruciais para os seus negócios. A existência de bancos centrais, o banco central europeu, a moeda única, as dívidas públicas, o endividamento público para pagamento dessas dívidas, a importância das "agências de rating", os acordos militares, as regras laborais (que muito mais do que garantir direitos dos empregados, garantem direitos dos empregadores), as regras de concorrência, os offshores, a quase ausência de impostos sobre o património, o sigilo bancário, a preponderância de impostos sobre o consumo (como o IVA), o desinvestimento em todos os serviços públicos que dão bons negócios aos privados, a gestão das fronteiras, os acordos internacionais de tarifas aduaneiras, o fornecimento de energia, a educação - tudo são exemplos de intervenções do Estado nas economias liberais que são fruto de muito planeamento, e que são indispensáveis para os mais ricos continuarem a fazer ainda mais dinheiro.

O que é que isso tem a ver com liberdade? Diz-se que numa democracia é "uma pessoa, um voto". E já sabemos o que se diz acerca disso: é o pior de todos os sistemas, com excepção de todos os outros. Mas numa economia liberal, no capitalismo, é um euro um voto. Isso de facto dá a máxima liberdade aos que mais dinheiro têm, mas também dá a mínima liberdade aos que menos dinheiro têm.

O "liberal" dos partidos e da economia é só isso: a transferência de liberdade de uns para outros. Mais especificamente, o aumento da liberdade em função do dinheiro que se tem. De resto, quem é que defenderia a desregulamentação estando à partida numa situação desfavorável?

Há mais de 30 anos fiz parte de uma espécie de associação de estudantes. No último ano do curso de economia, o liberalismo ganhou. Tínhamos uma determinada quantia de dinheiro que todos os alunos do curso tinham ajudado a angariar ao longo dos anos. O objectivo era o de organizar uma viagem de finalistas e utilizar esse dinheiro para reduzir o custo de todos. No final foi escolhida uma viagem tão cara, que mesmo com ajuda só os mais abastados a poderiam suportar. Então esses acabaram por ir de viagem, e todo o dinheiro reunido por todos ao longo de anos serviu apenas para os mais ricos se divertirem. O argumento aquando da selecção dessa viagem mais cara foi: não podemos limitar a liberdade dos que têm mais dinheiro de escolher a viagem mais cara. Foi sem dúvida um dos momentos mais instrutivos na minha vida!

Há 9 anos escrevi um texto sobre o liberalismo onde se nota ainda alguma ingenuidade acerca do papel que os liberais atribuem ao Estado:
https://irresponsabilidadeilimitada.blogspot.com/2015/03/a-direita-e-as-reformas-estruturais-o.html

Finalmente, uma nota sobre uma publicidade que estava exposta aqui em Angra do Heroísmo (e noutros pontos do país), da iniciativa de um partido que se diz liberal. Dizia em letras garrafais: "nos países liberais os trabalhadores ganham mais". E juntava a imagem em estilo neo-realista de uma multidão manifestando-se de punho erguido, o que não deixa de ser de uma ironia extrema!

Segundo dados do Eurostat para os últimos dois anos, a proporção média dos salários no PIB rondava os trinta e tal por cento para uma série de países europeus.


Remuneração do trabalho / PIB (Eurostat)


Lembremo-nos que na óptica do rendimento o PIB é decomposto na soma dos rendimentos que remuneram o trabalho e o capital. Lembremo-nos que só o trabalho é que produz, inclusivamente só o trabalho produz capital (ao qual os marxistas chamam de "trabalho morto"), e que as remunerações do capital são no fundo a remuneração daqueles que não trabalham, mas em vez disso são os donos do trabalho morto feito no passado, normalmente por outros. E notemos enfim que mais de metade do PIB de todos os países listados em cima vai para remunerar os donos e não os que efectivamente produzem a riqueza.

Numa pesquisa na net por "países liberais" pode encontrar-se logo à cabeça uma lista dos "20 países mais liberais". Essa lista baseia-se na ponderação de três índices: (conforme o original em inglês) Financial Development Index, Economic Freedom Index, and Ease of Doing Business Ranking. Só pelo nome dos índices deve dar para perceber de que tipo de liberdade estamos a falar.

Nos primeiros cinco lugares dessa lista estão três países europeus: Suécia, Dinamarca e Irlanda. Se procurarmos no gráfico em cima a posição desses países na repartição do rendimento perceberemos que a relação entre liberalismo económico e "os trabalhadores ganharem mais" é um pouco ambígua. E se considerarmos os restantes 15 países da lista a conclusão mantém-se. De resto, em todos eles, mais ou menos liberais, o capital é mais remunerado que o trabalho.

É chegado o momento da introspecção. A que grupo sente o leitor pertencer: ao dos grandalhões no ringue de boxe, daqueles que têm muito dinheiro e querem fazer negócio para ganhar mais; ou ao dos que têm menos e precisam que o poder dos primeiros seja limitado?

Ou será que o leitor, pertencendo ao grupo dos que têm menos, acredita que "o que é bom para a economia é bom para si", que só com exploradores de escravos bem anafados é que irá sobrar alguma coisa para os escravos poderem comer sobremesa?

sexta-feira, 2 de fevereiro de 2024

Os partidos que não são de esquerda nem de direita...

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As guerras de palavras

Há em tudo, e desde sempre, uma guerra de palavras. Ou melhor dizendo, uma guerra semântica, sobre o significado das palavras, sobretudo quando estas assumem a função de símbolos. Não pretendo elaborar na semiótica da coisa. Mas todos sabemos da importância dos símbolos na existência e na história dos seres humanos. Para mim, contudo, os símbolos são sempre em parte atalhos do pensamento: permitem-nos saltar logo para conclusões, simplificam, apelam às emoções e evitam o raciocínio. Por isso mesmo eles são tão importantes na agregação dos seres humanos: são atalhos que afastam todas as pequenas ou grandes diferenças entre eles e apelam a um qualquer aspecto em comum. Ou pelo menos é nisso em que as pessoas acreditam, alheias ao facto de que cada símbolo é interpretado de forma única por cada pessoa.

O que é, afinal, o socialismo? Para os partidos de esquerda é uma coisa, para os de direita é outra, e para o partido socialista é ainda uma outra. E na cabeça de cada eleitor essa palavra terá um significado único.

Essa palavra, "socialismo", enquanto símbolo, pode servir para agregar pessoas em torno de uma causa comum. Ora, como com qualquer outro símbolo, por exemplo uma foice e um martelo, ou uma suástica, ou uma pessoa (sobretudo depois de morta!, seja o Che Guevara ou o Jim Morrison), os opositores a essa ideia, ou a esse movimento, vão lançar uma guerra sobre o seu significado. Se o símbolo é uma palavra, dar-se á início a mais uma guerra de palavras.

A guerra de palavras, para ser bem conduzida, não deve mostrar o seu propósito, não deve expor-se. Não se deve dizer algo como "os defensores do socialismo consideram que socialismo é tal e tal, mas eu considero que o socialismo significa antes aquilo e mais não sei quê". Um bom combatente neste tipo de guerras convence-se a si mesmo que o significado das palavras não é mutável e não depende da vontade dos seres humanos. Pelo contrário, ele passa a acreditar que o significado das palavras é objectivo e imutável. Como se fosse emanado de algo sobrenatural, um qualquer deus. Os antipopulistas, por exemplo, dirão que é urgente e importante combater o populismo, que o populismo é muito mau, por exemplo é mau para a "democracia" (outro símbolo), e associarão determinadas pessoas e movimentos com essa palavra. Contudo, será muito raro ouvi-los a explicar o que eles próprios entendem por populismo, e ainda mais raro ouvir um debate sobre potenciais diferentes significados atribuídos à mesma palavra.

E é assim que acabamos, sobretudo na política, numa guerra de palavras cacofónica onde ninguém se entende, mesmo quando julga que entende. O socialismo é uma coisa para uns e outra coisa para outros. O mesmo com o capitalismo e o comunismo e a democracia e a ditadura e representatividade e a estabilidade e a responsabilidade e a esquerda e a direita e o liberalismo... Ah, o liberalismo!... Os liberais não são libertinos! Nem libertários!... Isto é tudo muito confuso!

Os de direita são conservadores, dirão alguns. Outros dirão: os de direita são liberais. Mas como é que se conjuga liberalismo económico com conservadorismo?... Claro que é possível. Depende do significado que se dá às palavras e depende daquilo que se faz com esse significado em cada caso concreto – há sempre os que são uma coisa nisto e outra coisa naquilo! Muito liberais, muito liberais... e depois chegamos à extrema direita, onde temos os defensores do autoritarismo e das ditaduras! Ou serão antes os anarco-capitalistas os ultra-liberais de extrema direita?

À esquerda temos os libertários e os da ditadura do proletariado, os anarco-sindicalistas e os reformistas, para quem tudo se arranja com uma remodelação dos impostos. O comunismo tem a sua etimologia na palavra comum. No entanto, os combatentes do comunismo fizeram questão de associar essa palavra a autoritarismo. Com isso, ficaram desprovidos de palavra para as coisas que as pessoas fazem em conjunto, em comunidade, e passaram a falar de comunitarismo.

Ideologia é em si mesma uma palavra sujeita a intensas guerras. Ideologia é boa, ideologia é má, depende para onde quer que vá!

A economia

Com esta introdução não pretendia confundir. Pretendia alertar que os debates políticos estão pejados de pessoas que usam este tipo de guerra. E quando são bons combatentes, não explicam que a fazem. Simplesmente assumem a sua versão dos acontecimentos, e vai de evangelizar todos os outros com a sua palavra, a verdadeira palavra!

E com isto pretendo dizer que se queremos entender alguma coisa a sério, seja política ou outra coisa qualquer, temos de ser imunes às guerras de palavras e temos de ir às coisas concretas.

Concretamente a vida das pessoas gira à volta da economia, isto é, a forma como os seres humanos actuam e alocam recursos materiais às suas actividades de forma a suprirem as suas necessidades, e também a forma como distribuem os resultados dessas actividades económicas ou produtivas. Se estamos na montanha e temos sede e precisamos de ir buscar água à ribeira para matar a sede, tudo isso é economia. Tenha ou não tenha dinheiro à mistura. Podemos fazê-lo de forma complicada: instituímos na letra da lei essa coisa chamada de propriedade privada, arranjamos um proprietário e atribuímos-lhe a ribeira; o dono da ribeira compra garrafas de plástico e energia e, com esta, enfia a água dentro das garrafas e vende-as; o comprador da garrafa de plástico dá três passos para o lado e põe a garrafa à venda; o comprador seguinte faz o mesmo, até que chega a nossa vez de sermos compradores. Ou então fazemos a coisa da forma mais simples e vamos nós mesmos à ribeira matar a sede. De uma forma ou de outra, é economia.

Todos nós temos necessidade de comer e de beber. E de vestir e dormir e ter um abrigo. E de ter educação e saúde. Temos necessidade de conviver, de nos deslocarmos de um sítio para o outro, de conhecer, de fazer desporto, de nos expressarmos verbalmente ou através da arte, de reconhecimento ou retorno por aquilo que fazemos. Somos bichos carregadinhos de necessidades. Os arautos do capitalismo até dizem que são infinitas!

Concretamente a nossa vida é moldada pela forma como tentamos satisfazer essas necessidades. No mundo actual, raramente nós satisfazemos as necessidades por nossa conta, sem a ajuda de outras pessoas. Esse seria o caso de um Robinson Crusoe vivendo isolado numa ilha remota. Nós, pelo contrário, fartamo-nos de satisfazer necessidades com coisas que não seríamos capazes de fazer nós mesmos: comida, roupa, telemóveis, automóveis, etc. Se não somos capazes de fazer nós mesmos, compramos! E para comprar, precisamos de dinheiro.

Não tinha necessariamente de ser assim. O mundo nem sempre girou à volta do dinheiro. Mas a forma actual como os seres humanos organizam as suas actividades económicas é assim. Canta-se "money makes the world go round", não no sentido de que faz o planeta girar, mas que nos faz girar a nós no planeta... mas mesmo nessa acepção a afirmação não é correcta: se não houvesse dinheiro, os seres humanos continuariam como formiguinhas numa azáfama qualquer a tentar arranjar pão para a boca e coisas para se entreterem.

De onde nos vem o dinheiro com o qual compramos as coisas que utilizamos para satisfazer as nossas necessidades? Há quem o herde, há quem receba renda das suas propriedades, há quem receba dividendos dos seus investimentos, há quem tenha mais-valias de coisas que comprou a um preço e vendeu a outro maior, há quem receba juros de aplicações financeiras, e há quem trabalhe. Está tudo na declaração do IRS!

A maioria de nós recebe dinheiro de diversas fontes. Mas também a maioria de nós depende de forma crucial do seu trabalho para conseguir o dinheiro necessário para viver. A grande maioria de nós trabalha, ou já trabalhou, ou vai trabalhar. Seja por conta própria ou por conta de outrem. Seja como gerente ou como tarefeiro.

Os trabalhadores

Sendo a economia, na acepção que aqui fazemos dela, o conjunto de actividades mais importantes dos seres humanos, poderemos alegar que, no estado actual das coisas, na forma como actualmente organizamos essas actividades, a segmentação mais fundamental que se pode fazer entre as pessoas, se o quisermos, é esta: num segmento os que dependem do seu trabalho para satisfazer a maioria das suas necessidades; noutro segmento os que não dependem do seu trabalho.

Muitos analistas, teóricos e práticos, economistas, sociólogos, políticos, e quem mais se dedica a estas artes, chama a esses segmentos "classes". E é assim que surge a famigerada "classe trabalhadora": o segmento da população que depende do seu trabalho para conseguir satisfazer as suas necessidades. A classe trabalhadora inclui gestores, inclui empresários por conta própria, inclui pessoas que auferem juros, lucros ou rendas. E também inclui pessoas como eu, que não são gestores nem empresários nem auferem juros, lucros ou rendas. O que as pessoas da classe trabalhadora têm em comum é que têm de trabalhar, senão não conseguem ter dinheiro suficiente para viver.

Nestes termos, a classe trabalhadora é uma realidade objectiva. Ou seja, ela existe, independentemente do que pensemos sobre ela. Mais do que isso: a nossa pertença ou não a essa classe também é objectiva. Quer queiramos ou não pertencer à classe trabalhadora, se o nosso rendimento depende de forma decisiva do nosso trabalho, então pertencemos a essa classe. Isto é tão objectivo como separar as pessoas entre as que estão vestidas com calças e as que não estão: quer tenhamos consciência disso ou não, quer queiramos ou não, se tivermos calças vestidas, pertenceremos à classe dos que têm calças vestidas.

Há muitos anos escrevi um texto onde perguntava: onde é que estão os trabalhadores? A minha argumentação era de que a maioria das pessoas não se identificava como trabalhador, o que é o mesmo que dizer que não tinha consciência de pertencer à classe trabalhadora. Ter ou não essa consciência é o que os tais analistas chamam de "consciência de classe".

Tal como na guerra de palavras, os que combatem a noção de "classe", tal como a definimos, e a noção de "consciência de classe", argumentam, sem nunca declararem que estão a fazer guerra a uma ideia, que "estamos todos no mesmo barco". Porventura estaremos todos no mesmo barco. Depende do que entendemos por barco. Por exemplo, estamos todos no mesmo planeta. Mas objectivamente não estamos nesse barco da mesma forma.

 

A esquerda e a direita

Na política, a dicotomia esquerda-direita já assumiu, e continua a assumir, muitos significados. Em jeito de ressalva, diga-se que essa dicotomia não é suficiente para classificar cabalmente os partidos políticos, isto é, para formar conjuntos minimamente homogéneos de partidos. No Portugal de hoje, e na política, parece-me que os termos esquerda e direita se utilizam sobretudo para classificar os partidos, as atitudes, as medidas, como privilegiando a classe trabalhadora, no caso da esquerda, ou privilegiando a classe não trabalhadora, no caso da direita.

Ora privilegiar a classe trabalhadora é algo de que ninguém se deve envergonhar, e por isso mesmo os partidos de esquerda não se inibem de o apregoar. Pelo contrário, privilegiar a classe não trabalhadora é algo que certamente não será muito bem visto, e portanto não se houve ninguém a publicitá-lo. Não existe, nas ideias ou nos discursos, uma coisa chamada "classe não trabalhadora". Essa classe, que engloba todas as pessoas que não pertencem à classe trabalhadora, tem existência objectiva: note-se que, para além das pessoas que "vivem de rendimentos", também há trabalhadores que não pertencem à classe trabalhadora, pelo simples facto de que têm outros rendimentos que são suficientes para a satisfação das suas necessidades. Mas ninguém fala dessa classe, certamente com esse nome. Em vez disso, o nome que foi adoptado pelos combatentes das guerras de palavras é... economia!

De cada vez que ouvimos um discurso político que não privilegie explicitamente a classe dos trabalhadores, podemos estar bem seguros que vem de alguém que privilegia a classe complementar. E é assim que temos tantos discursos a bem da economia! "É bom para a economia!" ouvimos nós repetidas vezes. "A economia portuguesa precisa de..." é o mesmo que dizer "a malta que não pertence à classe trabalhadora precisa de...". Façam o exercício seguinte: de cada vez que ouvirem um discurso político, experimentem substituir "economia" por "a malta que não pertence à classe trabalhadora", ou outro nome com o mesmo significado, e vejam lá se o discurso não fica logo muito mais claro!

Estamos todos no mesmo barco

Esquerda, direita, classe trabalhadora ou não... afinal estamos todos no mesmo barco? A resposta clara é: não.

Há pessoas que gostam de trabalhar. E ainda bem! E dentro dessas, há aquelas que têm a sorte de efectivamente trabalhar no que gostam – que maravilha! Mas não tenhamos ilusões: a maioria dos trabalhadores levanta-se de manhã cedo e chega a casa ao fim do dia, cansado, depois de um dia inteiro às ordens, sem vontade própria, a fazer o que o mandam, porque precisa do dinheiro.

E para explicar de forma simples porque é que não estamos todos no mesmo barco, atentemos ao exemplo do trabalhador por conta de outrem, que é a situação da maioria dos trabalhadores. Ele trabalha para uma instituição, por exemplo uma empresa. No final de um período, por exemplo no final do mês, a empresa, fruto das vendas de bens e serviços produzidos pelos seus trabalhadores, tem um determinado proveito. Esse proveito é como um bolo. Uma fatia servirá para pagar os materiais. Outra fatia para pagar a electricidade e a água. Outra põe-se de lado e vai-se amealhando para daqui a uns anos substituir os equipamentos. E depois de pagar todas essas coisas, sobra uma parte do bolo, que corresponde ao "valor acrescentado" da actividade produtiva. Esse valor acrescentado, ou gerado, à força do trabalho directo e das máquinas que por sua vez foram produzidas por outros, serve para pagar quem o gerou: os trabalhadores... e o dono da empresa. Ora isto é trigo limpo: o que ficar com os trabalhadores não vai para o dono, e o que ficar com o dono não vai para os trabalhadores. Estamos todos no mesmo barco até que chega o momento de decidir como é que se vai repartir esse pedaço do bolo que ainda sobra, e nesse momento chega o dono e decide conforme lhe aprouver, sem ter necessidade de dar cavaco a ninguém!

A repartição do bolo do valor acrescentado é feita, quase sempre, e excepto talvez no caso das cooperativas, pelo dono daquilo tudo, que é quem tem o poder, porque é que tem o dinheiro. Os defensores da classe que incorpora os donos disto tudo dirão que as "forças de mercado" irão actuar de forma a atribuir um salário justo aos trabalhadores. Mas todos nós, que pertencemos à classe trabalhadora, sabemos que no mercado os trabalhadores têm um poder quase nulo, a menos que se reúnam em estruturas como os sindicatos... e mesmo assim!...

Esta é a realidade objectiva da vida da grande maioria de nós, quer tenhamos consciência disso ou não.

E nesta realidade, os partidos políticos afirmam-se como defensores de uns ou de outros. Quando chega a hora de repartir a fatia do bolo, uns defendem principalmente os trabalhadores, outros defendem principalmente os donos.

E depois há os partidos políticos que defendem toda a gente!

Os partidos que defendem toda a gente...

Os partidos políticos que defendem toda a gente, não defendem de facto toda a gente. No seu discurso defendem os bem-comportados. Defendem os trabalhadores que são bem comportados, isto é, aqueles que têm verdadeiro amor à camisola, que dão horas extraordinárias à empresa sem exigirem remuneração, que vão tirar cursos de aperfeiçoamento em horário pós-laboral às suas custas, que "dão o litro" no local de trabalho e que denunciam os trabalhadores que são preguiçosos. Dizem então "os bons trabalhadores merecem ser premiados!" e falam de meritocracia.

(Curioso, não é, como nestas guerras de palavras nós vamos tantas vezes para onde nos querem levar?... Castigar os maus e promover os bons... Quantos nomes e quantas formas isso já assumiu ao longo da história?)

Ao mesmo tempo, os partidos políticos que defendem toda a gente, também defendem os donos, mas só os que são bem comportados, isto é, os que não são corruptos. E novamente lá estamos nós nas guerras de palavras!

Afinal o que é "corrupto"? Uma possível definição, conforme o dicionário, é "moralmente vergonhoso". Mas será?...

Quando, na hora de dividir o bolo do valor acrescentado, o dono, que já tem mais do que o suficiente para viver bem, fica com a parte maior e paga o salário mínimo aos seus trabalhadores, será corrupto? Eu acho que o seu comportamento, infelizmente tão frequente, é moralmente vergonhoso. Mas nós geralmente não o consideramos corrupto.

Geralmente o termo corrupto é utilizado com uma acepção jurídica, segundo a qual o corrupto é aquele que age à margem (ou fora) da lei para benefício próprio. No nosso exemplo, o dono que paga mal aos trabalhadores não viola nenhuma regra legal, portanto não é corrupto, mesmo sendo moralmente vergonhoso.

Os partidos que defendem toda a gente, e não se apresentam como sendo de esquerda ou de direita, defendem os donos disto tudo, desde que actuem conforme a lei e não sejam corruptos. Fazem disso uma bandeira. Só não dizem, como ninguém diz, que são os donos disto tudo que fazem as leis e que, portanto, definem o que deve ou não ser considerado corrupto.

De facto, a nossa sociedade está pejada de acontecimentos moralmente vergonhosos, mas não é normal ouvir-se os partidos que não são de esquerda nem de direita a pronunciarem-se sobre isso. Para eles, geralmente, a moral vergonhosa é reservada para os "preguiçosos" da classe trabalhadora. E nós, sem discernimento para entendermos que as pessoas que pertencem à classe trabalhadora e não trabalham são quem mais sofre com isso, vamos atrás desse paleio e já acreditamos que os culpados de nós não estarmos melhor na vida são eles, e não quem fica com a nossa parte do bolo. Ou seja, de tanto papar a propaganda já nem conseguimos ver onde está verdadeiramente a vergonha moral desta sociedade, desta economia e desta política.

Alguns partidos que defendem toda a gente e que não são de esquerda ou de direita (segundo eles), afirmam-se contra "o sistema". Há partidos que não são assim, que dizem não ser de esquerda ou de direita, porque apoiam as propostas da esquerda ou da direita consoante lhes pareçam meritórias. Mas nos partidos que são contra "o sistema", é natural que digam que estão para lá, e talvez acima, dessas questões menores como a dicotomia esquerda-direita: afinal eles são contra a esquerda e contra a direita, a favor de uma limpeza geral... apesar de ninguém saber bem em prol do quê.

...afinal são de direita

Ora isto de não ser de esquerda ou de direita, de acordo com a acepção que lhe dei, nomeadamente a de privilegiar ou não a classe trabalhadora, é uma mentira. Apesar de tudo, os trabalhadores vão trabalhar, e quando chega a hora de repartir o bolo, o que não for para eles será para os donos e vice-versa. Os partidos que dizem não ser de esquerda ou de direita, e mesmo que se afirmem contra "o sistema", não querem mudar este sistema económico. Eles servem-se daquilo que para a maioria das pessoas constitui "o sistema", nomeadamente o conjunto de coisas, pessoas e instituições que são corruptos ou que impedem que a "economia" se desenvolva. Mas mudar o sistema económico é algo que nunca está no seu programa. Garantidamente.

O sistema económico que nós temos, que se chama capitalismo, não privilegia a classe trabalhadora. Portanto, sempre que um partido político se coloca à margem do debate esquerda-direita, ele está a ser conivente com o sistema que existe e está, assim, a privilegiar os donos disto tudo. Está, desse modo, a ser de direita.

Que quem tem fortunas defenda os partidos de direita, isto é, os partidos que defendem os afortunados, faz todo o sentido. Que quem depende do seu trabalho para ter dinheiro para viver vote em partidos que defendem interesses antagónicos aos seus é, isso sim, vergonhoso, sobretudo para os que têm consciência disso, como por exemplo os que publicitam que "nos países liberais se ganha mais", como se alguma vez fosse verdade que o liberalismo económico privilegiasse a classe trabalhadora! Isso sim, é vergonhoso! Se alguém acha que precisamos de uma limpeza, ela deveria começar precisamente pelos que enganam os outros para benefício próprio, mesmo que dentro da lei!