Liberal, talvez. Mas livre? Libertina? Libertária?... Estamos novamente no reino das guerras de palavras. Estes adjectivos partilham a mesma raiz, mas não têm os mesmos significados.
Talvez um melhor entendimento possa ser atingido respondendo à pergunta: livre do quê? Afinal, quando pensamos em liberdade, pensamo-la em oposição a algo que a impede, algo que a aprisiona. Podemos querer libertar um pássaro da sua gaiola, uma pessoa de um peso na consciência, um povo de um ditador, uma língua dos ditames do grupo da academia, os pobres dos ditames dos ricos, os ricos do cheiro dos pobres. Dá para tudo... daí o problema.
O termo liberal, quando aplicado no contexto da economia ou da política, quer geralmente significar com poucas regras.
Será isso uma coisa boa ou uma coisa má? Talvez sintamos que as regras que se aplicam a nós limitam a nossa liberdade, e portanto são uma maçada. Ao invés, quando as regras impedem os outros de fazer coisas que consideramos erradas, já pensamos que são boas. Mas se conseguirmos prevenir os comportamentos desviantes dos outros com menos regras, talvez isso seja preferível... Assim como uma sociedade ideal, onde tudo corre bem sem a necessidade da existência de polícias e leis e tribunais. Apesar disso talvez continuemos a achar que as coisas regradas são melhores que as desregradas. Enfim, confusões palavrescas.
Se me dessem a escolher entre mais regras ou menos regras, mantendo-se tudo o resto igual, eu certamente preferiria menos regras. As regras são uma chatice. Logo à partida torna-se necessário conhecê-las. E depois é necessário cumpri-las. E ainda nos sujeitamos a vir de lá o fiscal carregado de um qualquer poder que nós não temos para nos apontar o dedo aonde nem sequer suspeitávamos!
No entanto, é impossível fugir ao chavão: as regras são necessárias à vida em sociedade. Historicamente, todas as sociedades possuíram os seus articulados normativos, expressos ou tácitos. E não é necessário pensarmos em civilizações como os gregos antigos ou os romanos. Também os "bárbaros" de aldeias comunitárias actuais possuem os seus conjuntos de regras.
As regras existem geralmente para impedir que os espertalhaços se aproveitem dos incautos. Aparentemente Aristóteles terá dito que a amizade é mais importante que a justiça, porque onde houver amizade, não será necessário haver aparelhos de justiça. O problema, claro está, é que numa comunidade de amigos que verdadeiramente se preocupam uns com os outros, ninguém pode prever se e quando vai aparecer um espertalhaço.
Uma sociedade com regras e com um aparelho fiscalizador e sancionatório é uma grande chatice... mas: o que fazer? Todos os sistemas são bons quando as pessoas são boas, mas todos os sistemas são maus quando as pessoas são más. E o problema com os seres humanos é que, infelizmente, há uma tendência muito forte para as pessoas serem simultaneamente boas e más, em proporções variáveis consoante a pessoa e as circunstâncias.
Os partidos liberais batem-se por economias liberais, isto é, com menos regras. Mas será uma economia liberal o mesmo que um "laissez faire", assim uma espécie de "far west" ideal, onde não há regras e cada um está totalmente abandonado à sua sorte, perdão, onde cada um é totalmente livre? Não exactamente.
As economias ditas liberais sempre foram, e continuam a ser, muito pouco liberais. Por exemplo, elas sempre tiveram como pilar o sacrossanto princípio da propriedade privada. Como nós próprios nascemos e vivemos sempre numa economia onde esse princípio prevalece, talvez julguemos que isso é natural, é essencial, é indispensável à vida em sociedade. Mas isso não é verdade. De qualquer modo, se pensarmos um pouco, poderemos sentir que a garantia da propriedade privada é fundamental para a nossa sobrevivência, mas também poderemos descobrir que ela restringe muito significativamente a nossa liberdade. Alternativamente, façamos uma redução ao absurdo: se de repente fosse abolido o princípio da propriedade privada, poderíamos ir às lojas pegar naquilo de que necessitássemos e não necessitaríamos de trabalhar para conseguir o dinheiro para o pagar.
A garantia da propriedade privada não é um princípio tão fácil de implementar na prática quanto se possa pensar. Imaginemos uma comunidade onde todos os seus membros, menos um, possuem uma determinada riqueza, mas esse um possui a mesma riqueza que a soma de todos os outros. Como é que se garante que os outros membros não se apropriam dessa riqueza? Isso implica a existência de normas escritas, de polícias, de tribunais e de cadeias. E qual seria o incentivo dos membros dessa comunidade para implementar tal sistema?...
Os impostos podem ser (ou não!) mecanismos para apaziguar as tensões comunitárias que surjam da desigual repartição da riqueza. Eles são, na verdade, antagónicos ao princípio da propriedade privada. E se a respectiva colecta não servir directamente para a diminuição de desigualdades, servirá para manter as forças policiais bem oleadas.
Os militantes de partidos liberais, defensores de economias liberais, nunca poderão ser contra o Estado ou contra os impostos. Eles usam um chavão que já todos ouvimos: "menos e melhor Estado". Claramente isso não é o mesmo que abolir o Estado. Mas será então necessário perceber o que se entende por menos Estado e o que se entende por melhor Estado.
Vou atalhar um pouco, senão o texto passa de longo a extensíssimo. O que este tipo de liberais defende é a possibilidade e as condições de os mais ricos poderem fazer ainda mais dinheiro. Curto e simples. E nesse processo o Estado desempenha e sempre desempenhou um papel essencial.
Desenganem-se, portanto, os que vão na cantiga propalada acerca dos malefícios do planeamento, e sobretudo do planeamento central na economia, fazendo comparações com a antiga União Soviética. Isso é propaganda. O facto é que os liberais das economias liberais sempre planearam e implementaram os seus planos, cruciais para os seus negócios. A existência de bancos centrais, o banco central europeu, a moeda única, as dívidas públicas, o endividamento público para pagamento dessas dívidas, a importância das "agências de rating", os acordos militares, as regras laborais (que muito mais do que garantir direitos dos empregados, garantem direitos dos empregadores), as regras de concorrência, os offshores, a quase ausência de impostos sobre o património, o sigilo bancário, a preponderância de impostos sobre o consumo (como o IVA), o desinvestimento em todos os serviços públicos que dão bons negócios aos privados, a gestão das fronteiras, os acordos internacionais de tarifas aduaneiras, o fornecimento de energia, a educação - tudo são exemplos de intervenções do Estado nas economias liberais que são fruto de muito planeamento, e que são indispensáveis para os mais ricos continuarem a fazer ainda mais dinheiro.
O que é que isso tem a ver com liberdade? Diz-se que numa democracia é "uma pessoa, um voto". E já sabemos o que se diz acerca disso: é o pior de todos os sistemas, com excepção de todos os outros. Mas numa economia liberal, no capitalismo, é um euro um voto. Isso de facto dá a máxima liberdade aos que mais dinheiro têm, mas também dá a mínima liberdade aos que menos dinheiro têm.
O "liberal" dos partidos e da economia é só isso: a transferência de liberdade de uns para outros. Mais especificamente, o aumento da liberdade em função do dinheiro que se tem. De resto, quem é que defenderia a desregulamentação estando à partida numa situação desfavorável?
Há mais de 30 anos fiz parte de uma espécie de associação de estudantes. No último ano do curso de economia, o liberalismo ganhou. Tínhamos uma determinada quantia de dinheiro que todos os alunos do curso tinham ajudado a angariar ao longo dos anos. O objectivo era o de organizar uma viagem de finalistas e utilizar esse dinheiro para reduzir o custo de todos. No final foi escolhida uma viagem tão cara, que mesmo com ajuda só os mais abastados a poderiam suportar. Então esses acabaram por ir de viagem, e todo o dinheiro reunido por todos ao longo de anos serviu apenas para os mais ricos se divertirem. O argumento aquando da selecção dessa viagem mais cara foi: não podemos limitar a liberdade dos que têm mais dinheiro de escolher a viagem mais cara. Foi sem dúvida um dos momentos mais instrutivos na minha vida!
Há 9 anos escrevi um texto sobre o liberalismo onde se nota ainda alguma ingenuidade acerca do papel que os liberais atribuem ao Estado:
https://irresponsabilidadeilimitada.blogspot.com/2015/03/a-direita-e-as-reformas-estruturais-o.html
Finalmente, uma nota sobre uma publicidade que estava exposta aqui em Angra do Heroísmo (e noutros pontos do país), da iniciativa de um partido que se diz liberal. Dizia em letras garrafais: "nos países liberais os trabalhadores ganham mais". E juntava a imagem em estilo neo-realista de uma multidão manifestando-se de punho erguido, o que não deixa de ser de uma ironia extrema!
Segundo dados do Eurostat para os últimos dois anos, a proporção média dos salários no PIB rondava os trinta e tal por cento para uma série de países europeus.
Remuneração do trabalho / PIB (Eurostat)
Lembremo-nos que na óptica do rendimento o PIB é decomposto na soma dos rendimentos que remuneram o trabalho e o capital. Lembremo-nos que só o trabalho é que produz, inclusivamente só o trabalho produz capital (ao qual os marxistas chamam de "trabalho morto"), e que as remunerações do capital são no fundo a remuneração daqueles que não trabalham, mas em vez disso são os donos do trabalho morto feito no passado, normalmente por outros. E notemos enfim que mais de metade do PIB de todos os países listados em cima vai para remunerar os donos e não os que efectivamente produzem a riqueza.
Numa pesquisa na net por "países liberais" pode encontrar-se logo à cabeça uma lista dos "20 países mais liberais". Essa lista baseia-se na ponderação de três índices: (conforme o original em inglês) Financial Development Index, Economic Freedom Index, and Ease of Doing Business Ranking. Só pelo nome dos índices deve dar para perceber de que tipo de liberdade estamos a falar.
Nos primeiros cinco lugares dessa lista estão três países europeus: Suécia, Dinamarca e Irlanda. Se procurarmos no gráfico em cima a posição desses países na repartição do rendimento perceberemos que a relação entre liberalismo económico e "os trabalhadores ganharem mais" é um pouco ambígua. E se considerarmos os restantes 15 países da lista a conclusão mantém-se. De resto, em todos eles, mais ou menos liberais, o capital é mais remunerado que o trabalho.
É chegado o momento da introspecção. A que grupo sente o leitor pertencer: ao dos grandalhões no ringue de boxe, daqueles que têm muito dinheiro e querem fazer negócio para ganhar mais; ou ao dos que têm menos e precisam que o poder dos primeiros seja limitado?
Ou será que o leitor, pertencendo ao grupo dos que têm menos, acredita que "o que é bom para a economia é bom para si", que só com exploradores de escravos bem anafados é que irá sobrar alguma coisa para os escravos poderem comer sobremesa?
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