domingo, 9 de junho de 2024

Querida Europa!...

 


Nos meses que antecederam a adesão de Portugal à Comunidade Económica Europeia, CEE, em 1986, lembro-me de discutir com os colegas da escola os perigos dessa adesão. Papagueava a propaganda que me chegava, dizendo que os agricultores portugueses iriam deixar de produzir batata, pois iríamos passar a importar a batata mais barata de outros países. Não percebia nada do que dizia, mas julgava que sim. Hoje, ao olhar para trás, fico infeliz por ter papagueado algo que afinal não estava errado, uma vez que isso significou, de facto, o desmantelamento de uma economia de produção para consumo local.

Mas, bolas, passámos a ter kiwis nos supermercados, as bananas passaram a ter curvatura controlada e os pepinos passaram a ser direitinhos! E a partir daí passei a papaguear a outra propaganda, a propaganda a sério, aquela que nos chegou muito bem financiada através de programas de televisão, concertos, t-shirts, canetas, tempos de antena, final countdown e sei lá que mais.

Sim, achei o máximo podermos ir e vir de Espanha sem ter de parar na fronteira. Achei que só podia ser uma coisa boa as pessoas moverem-se livremente dentro do espaço Schengen. Esperei ansiosamente a possibilidade de ter moedas de euro na mão, e também achei maravilhoso poder ir a França e pagar na mesma moeda que usava em casa. Até me senti a crescer! Tal orgulho! Maastricht para mim foi maravilhoso!

Sempre achei muito estranho as pessoas, e sobretudo os representantes das pessoas, dos países da União Europeia, referirem-se a si mesmos como "a Europa". Eu tinha aprendido na escola que a Europa era um continente limitado a Este pelos Urais. De que "Europa" estariam eles a falar?... E então a Roménia? E o Mónaco? E todos os outros países da Europa? Afinal agora já não eram europeus?

Levei muito tempo, muito tempo mesmo, talvez quase vinte anos, a acordar da propaganda toda que tinha papado sem pestanejar antes de 1992 e que tinha papado mesmo com eventuais engasgos depois disso.

Talvez o primeiro choque tenha sido lá para o ano de 1996 quando, no contexto universitário, tive de fazer um trabalho conjunto sobre a Política Agrícola Comum, a PAC. Descobri coisas de que nem suspeitava até então. Descobri que afinal a França não era o paraíso natural que eu imaginava, com base nas simples imagens de paisagens todas verdinhas, assim ao estilo dos Açores, e em vez disso era o antro dos produtores agrícolas mais industriais da Europa, terreno fértil para esquemas à la Monsanto, com sementes modificadas das quais crescem plantas que não se reproduzem, que vêm associadas a fertilizantes, herbicidas e pesticidas próprios, que exterminam tudo o resto à sua volta, que fazem uma limpeza na biodiversidade e deixam rastos de poluição. Descobri que a motivação principal da PAC era "geoestratégica". Descobri que houve uma especialização tremenda na produção agrícola dos diversos países, e que Portugal não só tinha perdido a produção própria de muitos produtos, como tinha passado a importar aos outros países a preços mantidos artificialmente elevados, num negócio que só parcialmente era compensado com transferências e subsídios aos agricultores nacionais. Descobri que as preocupações ambientais da PAC sempre foram próximas de nada, que a União Europeia pré 1992 não sabia o que fazer com os excedentes agrícolas e então enviava-os para países subdesenvolvidos contribuindo assim para aniquilar a produção local desses países, que o excesso de produção agrícola foi atacado com a reforma da PAC de 1992, momento a partir do qual se passou a subsidiar os donos dos terrenos para terem lá plantados eucaliptos e pinheiros, contribuindo assim para transformar Portugal num espectáculo para pirómanos em cada verão.

Foi preciso abrir muito mais os olhos para perceber que a colonização do Sahara Ocidental era um problema escamoteado pela União Europeia. Para perceber que a UE apoia internacionalmente o que lhe convém e não o que é justo. Para perceber que o Banco Central Europeu é profundamente não democrático. Para perceber que o Parlamento Europeu é apenas um órgão de fachada, a enfeitar uma UE que faz de conta que é democrática, apesar de aparentemente ninguém saber o que por lá se passa e de às tantas não se passar mesmo nada de jeito.

À medida que fui abrindo os olhos, fui percebendo a dimensão da propaganda que papei. Hoje, quando ouço falar dos "valores europeus" não me dá vontade de rir, dá-me vontade de vomitar. Porque não é uma coisita qualquer, que não me afecta muito a vida. Pelo contrário, é uma "coisa", uma conduta, uma orientação política, que promove apartheids, que promove muros reais e fictícios entre os povos, bons de um lado, maus do outro, que mente descaradamente e sistematicamente, todos os dias, mente, mente, mente, mente sem parar, compulsivamente. É uma "coisa" que promove guerras que não só prejudicam os povos directamente envolvidos, como prejudicam todos os "europeus", os europeus seleccionados, os que vivem dentro da Europa seleccionada. É uma "coisa" que, mesmo sem guerras, prejudica a vida de toda a gente, a bem de um estilo de vida centrado em turismo e carros eléctricos. É uma "coisa" que gosta de brandir a liberdade de expressão mas que censura os canais que não lhe convêm, que promove a privatização do sector da informação e que espalha propaganda como sempre fez.

Esta "Europa" é uma "coisa" só para alguns, os que estão devidamente amestrados, e não pestanejam quando se diz que é necessário subir as taxas de juro por causa da inflação, e não pestanejam quando se diz que a subida de preços é devida aos maus que bombardearam os seus próprios gasodutos e à falta que faz o fornecimento de trigo.

Esta "Europa", dos "valores europeus", que não condena o genocídio que decorre neste preciso instante na Palestina, que nunca fez notícia de outros genocídios que vão acontecendo pelo planeta, e que nunca condenou o comportamento mais beligerante do país mais beligerante do mundo, que agora propagandeia a toda a força o medo. "Vêm aí os russos!"... parece uma anedota... mas afinal é trágico! É profundamente triste e grave perceber que afinal a população toda continua a papar esta propaganda, e que, com base nela, apoia o caminho para a paz através de mais armas e através de maior subserviência ao país do lado que todos sabemos qual é. Que merda de valores! Que merda de Europa! Que merda de europeus que se deixam manipular deste modo! Tenho nojo disto tudo!

Este projecto europeu é, afinal, e desde sempre, um grande negócio. Se o negócio requer paz, faz-se paz. Se o negócio requer guerra, faz-se guerra. Se o negócio requer offshores, desregulação de mercados, perda de soberania, moedas únicas e o diabo-a-sete, faz-se. O negócio manda... E que bom que é que já todos perceberam, paparam e apreenderam a propaganda de que o que é bom para o negócio é bom para todos nós.

O que é que vai ser agora? Ecumenismo, pacifismo, nacionalismo, fascismo?... Seja lá o que for, se for bom para o negócio, siga! Eis os valores europeus! Os valores deste continente de onde saíram os seres mais usurpadores e desrespeitadores que a humanidade alguma vez possuiu, em qualidade e em quantidade. Colonizadores de territórios, de mentes, de almas, de vidas e de mortes. A terra que produz tudo isto apresenta-se então orgulhosa ao mundo. Os seus jovens, formados nas fileiras dos capitalistas egocêntricos, falam muito cheios de si e espalham lições a todos os povos, mesmo àqueles que lhes são moralmente muito superiores e que, afinal, são quase todos. Esses jovens julgam saber que a moral não conta, o que conta é o cano da espingarda, é o botão do drone. O que conta é o pilim que está por trás disso tudo.

As universidades europeias ensinam Milton Friedman e Hayek, curvas da oferta e da procura, e expurgam a moralidade de tudo. Todas as adversidades são oportunidades de negócio. Espalha-se nesta Europa um estilo de vida Prozac, em que os sucessos e os insucessos são medidos em cifrões, sempre numa ilimitada irresponsabilidade individual, esquecendo o colectivo, fazendo-nos sentir individualmente mal pela nossa sensação de inutilidade, quando todos sabemos que o progresso tecnológico deve ser por nós visto como uma oportunidade para inovar... e então em vez de inovar, vamos afogar as mágoas no mesmo de sempre, vamos ao shopping comprar mais um penduricalho e vamos de férias fotografar nós e a comida, nós e a praia, nós e a arte, nós e os prédios, nós e os barcos, nós e a merda toda que há noutro país qualquer. E depois voltamos para casa e inovamos: viramos para a extrema direita, porque afinal antigamente é que era bom, e já não há valores!

Se isto tudo parecer desprovido de sentido, acredite que o problema não é disto tudo, o problema é seu, e vá depressa resolvê-lo através da aquisição de um pacote completo de spa e massagens com vibradores, infravermelhos, infusões e musiquinhas geradas por inteligência artificial.

O Parlamento Europeu continuará lá a dar-nos a festa, a garantir o espectáculo onde as merdas todas nos acontecem e nós não acontecemos para merda nenhuma. Há muitas formas de exterminar vidas. Obrigado, portanto, querida Europa!

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