"É em vão que se tentará extrair desta desordenada mitologia uma qualquer tradição histórica. Torna-se até difícil perceber como é que qualquer história se poderia alguma vez enredar em tais ficções.
Esta observação não se aplica apenas ao vidente de Patmos. Aplica-se também ao autor anónimo da carta aos hebreus, ao apóstolo Paulo, aos nossos evangelistas. Ao que parece, nenhum deles deverá ter colhido recordações vívidas a respeito de Jesus. Alguma coisa delas teria ficado na sua obra, capaz de lhe conferir aquela sensação de real que lhe falta sempre. Não deixa de ser estranho que um homem de temperamento suficientemente vigoroso para fundar uma nova e grande religião não tivesse deixado na memória dos seus discípulos nenhuma imagem precisa capaz de nos revelar os seus traços, nenhum eco do que pode ter sido o seu sotaque, nenhum sinal claro da sua actividade, nenhum rasto da sua passagem. O carácter fictício das informações que nos são fornecidas sobre ele, pelas suas primeiras testemunhas, leva-nos a pensar que a sua personalidade não passa de um mito.
A conclusão pareceria simples e decisiva se fossem Átis ou Mitra que estivessem em questão. Como se trata de Cristo, os espíritos mais livres têm dificuldade em aceitá-la. Não só porque um fardo enorme de hábitos e de preconceitos milenares continua a pesar sobre todos nós, mas também porque não obstante os exemplos fornecidos pelas outras religiões, é difícil compreender que um mito desta natureza se tenha podido formar e ganhar consistência ao ponto de se impor durante tantos séculos a milhões de adeptos.
Os cristãos simplesmente acreditavam em Cristo na medida em que, no que se dizia sobre ele, entreviam uma resposta às suas íntimas preocupações, um remédio para os seus males. Ora, todos os evangelhos, fossem eles de Marcos, de Lucas, de Mateus ou de João, apresentavam-no sob o ângulo mais favorável. Em todos eles Jesus aparecia como um deus muito grande e muito bom, que se fez semelhante aos homens para pôr termo aos seus sofrimentos, que sabia ler os corações e que com uma só palavra podia curar as piores enfermidades. Havia sido visto a ter compaixão pela multidão e a multiplicar pães no deserto para alimentar. Aos seus discípulos pedia apenas que acreditassem nele. Em troca desta fé, garantia-lhes uma vida eterna de felicidade. Como poderia a massa de pobres, esmagada pela miséria e corroída por preocupações, não ser atraída por ele entregando-lhe a sua confiança. Portanto, o sucesso que obtiveram os missionários de Jesus, não é mais singular do que o dos representantes de outros deuses salvadores. É da mesma ordem e decorre das mesmas causas. Explica-se muito facilmente, sem necessidade do surgimento repentino de um homem sobreeminente, pelo trabalho árduo de operários anónimos que deram uma forma concreta ao ideal místico da massa crente.
Não foi Cristo que fundou o cristianismo. Antes foi o cristianismo que progressivamente elaborou a imagem de Cristo."
in "As origens sociais do cristianismo - Estudos sobre a história dos dogmas" de Prosper Alfaric.
(imagem de Quino)
E assim fez Homem um Deus à sua imagem.
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