quinta-feira, 6 de março de 2025

Às voltas na sala oval...

Zelensky e Trump falaram numa sala que se chama oval, e que aparentemente o é. Disseram umas coisas um ao outro. Os países a cujos governos presidem continuam de pé, tal como esses governos. As políticas neoliberais continuam em força. As fábricas continuam a produzir armamento e ele continua a ser utilizado em todas as guerras que alimentam esta economia de parábolas projectadas. Mas as pessoas à minha volta ficaram muito agitadas.

Foi revelador.

Quando duas pessoas têm posições distintas, mas é necessária uma tomada de posição conjunta, ou as duas pessoas negoceiam, ou rompem a sua relação, ou uma se impõe à outra. Há muitas situações em que uma das partes não pode simplesmente romper a sua relação com a outra e seguir a sua vida. Se um país poluir muito a atmosfera, o outro não pode decidir mudar-se para onde a atmosfera seja mais limpa, porque o ar circula independentemente das fronteiras. Se dois países vizinhos se guerreiam, um deles não pode simplesmente abandonar a guerra e ir passear para outro sítio. Por outro lado, para que uma das partes imponha a sua vontade é necessário que exista um correspondente desequilíbrio de poder. Ora, quando há negociações, tipicamente as partes distribuem entre si os ganhos ou perdas potenciais em função dos respectivos poderes.

Em síntese, há muitas situações em que a negociação é o único caminho possível, e os resultados das negociações tipicamente espelham as diferenças de poder entre as partes em conflito.

Negociar implica caminhar no sentido do nosso oponente. No reino da diplomacia são bem-vindas a flexibilidade, a abertura de espírito, a empatia. O excesso de franqueza não é bem-vindo: afirmar algo só porque do nosso ponto de vista é verdadeiro, sem preocupação com as consequências negativas que terá no outro e na nossa relação com ele é no mínimo pouco cuidadoso, mas pode também ser tremendamente estúpido.

Não precisamos de pensar nas negociações entre países em guerra. Podemos pensar na negociação diária entre duas pessoas que têm uma relação amorosa. Onde queres ir jantar, querida? Ao Rei-dos-Chocos? Mas tu só gostas de comida que não presta?...

Aquilo que é verdadeiro para nós pode não o ser para o outro, e a afirmação da nossa verdade pode resultar apenas em consequências negativas para os outros e para nós próprios.

Uma coisa que é marcadamente nefasta em qualquer tentativa de negociação (e talvez da própria interpretação de toda a realidade) é a demonização da outra parte. Infelizmente, essa demonização é-nos conveniente. Uma visão maniqueísta do mundo é, bem vistas as coisas, uma lufada de ar fresco! Onde antes víamos tudo em tons de cinzento, encontrando aspectos positivos e negativos em tudo e todos, a classificação de tudo e todos como simplesmente bom ou mau torna tudo muito mais fácil. Assim que podemos classificar um inimigo como mau, como demoníaco, facilmente podemos colocar tudo o que ele faz ou pensa ou sente, tudo o que ele representa e inspira, na mesma classe.

Certamente os soldados que estão nas frentes de batalha agradecem uma visão demoníaca do mundo, com contrastes bem marcados. Imaginem como seria se de cada vez que o soldado tivesse de premir o gatilho pensasse no outro como um ser humano, que também tem medos, que também erra, mas que também sente arrependimento, e compaixão, e também tem uma família e gosta de ver os pássaros na natureza. Como seria?

Desse ponto de vista, a guerra e a negociação podem considerar-se em extremos opostos: na guerra convém identificar o inimigo e tratá-lo como um demónio a abater; na negociação convém entender os sentimentos e os pensamentos do oponente e identificar de que forma são diferentes ou semelhantes aos nossos.

Há décadas eu convenci-me que as guerras estavam em vias de extinção. O meu raciocínio baseava-se no interesse comum que identificava em todos os poderosos: o desejo da obtenção do máximo poder com o mínimo custo. Acreditava eu que o esclarecimento crescente dos povos, para o qual contribuiria não apenas uma maior e melhor instrução formal ou informal, mas também as viagens entre países e o acrescido contacto com outros povos, os iria tornar mais avessos a guerrearem-se entre si. O resultante aumento do custo da guerra iria tornar esta opção preterível, para os poderosos, em favor das guerras económicas, cujas regras (mercados, transferências de capitais, tarifas alfandegárias, etc.) eram crescentemente universais.

O estado actual do mundo atesta o meu engano. Parece-me que sobrestimei o dito esclarecimento dos povos, enquanto subestimei a capacidade destes serem manipulados pelos poderosos. O que se tem passado com as guerras na Ucrânia e na Palestina é profundamente revelador a esse nível. Ao mesmo tempo, parece-me que subestimei a ira e a folia dos ambiciosos cuja ascensão ao poder através dos mercados não corre conforme eles esperariam. Finalmente, confesso que julgava que os poderosos deste mundo não eram tão retrógrados nos seus métodos... a sério que acreditei que eram já mais sofisticados. Mas parece que não.

Seria a sala mesmo oval?... Certamente a conferência de imprensa de Trump e Zelensky tinha dois focos. Uma oval com dois focos é uma elipse. Qualquer que seja o ponto da elipse em que nos encontremos, a soma da distância aos dois focos permanece constante. Por mais voltas que se dê.

Trump falou precisamente como aquilo que eu há décadas imaginava que todos os poderosos do mundo viriam a ser: pessoas sem escrúpulos, apenas interessadas no dinheiro. Vá lá, pronto, faltou-lhe uma pontinha para chegar aí, ao ter insistido várias vezes que a guerra na Ucrânia tinha provocado muitos mortos, que esses mortos eram sobretudo soldados jovens, de ambos os lados, que tinham famílias, e que essas mortes deviam ser evitadas, porque as vidas humanas valem mais do que o dinheiro. Se quiserem acreditar que Trump acredita mesmo nisso, estão à vontade. Ao meu entendimento pareceu-me da sua parte apenas uma ponta de diplomacia.

Tirando isso, o discurso de Trump foi directo ao assunto que, a meu ver, devia ser compreensível a todo o aspirante ao poder no século XXI: negócio sem escrúpulos. Ele falou, com total desprezo pelos problemas ambientais do planeta, na "desprotecção" de zonas protegidas para permitir a mineração, e na exploração, venda e uso de combustíveis fósseis. Ele demonstrou total interesse nos recursos minerais existentes no subsolo ucraniano, com total desprezo pelos efeitos que isso possa ter nas vidas de quem quer que seja, começando pelos próprios ucranianos e norte-americanos. Trump foi verdadeiro, foi directo, e dentro da lógica neoliberal, ou seja, dentro das regras do jogo expressa ou tacitamente aceites por todos os poderosos e todos os governos dos países ditos "ocidentais", foi correcto. Ele falou de negócios. E falou de negócios do ponto de vista de um negociador, isto é, sabendo que existe um bolo para ser comido, e mostrando abertura para repartir esse bolo por todos os intervenientes, sejam eles os oligarcas dos EUA, da Ucrânia, da Rússia, ou de onde for.

Trump foi directo, claro, explícito, ao afirmar essa regra básica que equaciona qualquer negociação em função dos poderes das partes sentadas à mesa.

Imagino a surpresa de Trump e da respectiva comitiva quando Zelensky demonstrou não entender ou não estar interessado nessas regras básicas das economias neoliberais e, independentemente disso, de qualquer negociação. Porque foi isso que aconteceu: Zelensky mostrou reiteradamente não ter interesse em negociar com Putin, afirmando que ele é um mentiroso e não é possível negociar com mentirosos.

Não é necessário que um país seja conquistado por outro, numa guerra à moda antiga, que aparentemente perdura, para que um povo seja subjugado. A Ucrânia está, desde há vários anos, a afundar-se numa subjugação cada vez mais profunda, independentemente de parte do seu território ser conquistado pela Rússia ou não.

Atentemos ao que se tem passado no nosso próprio país. Desde há décadas que insistimos numa subjugação auto-infligida. Cada vez mais deslocámos os centros do poder, ou seja, da nossa própria soberania, para longe, para fora do nosso controlo. Desistimos de qualquer voto a nível de política alfandegária, monetária, cambial, a favor de instituições e directivas estabelecidas algures num gabinete qualquer fora do nosso país. O mesmo com o posicionamento geoestratégico, com a política militar (seja de defesa ou de ataque), com o controlo das fronteiras, com o funcionamento da economia e dos mercados, com os subsídios às pessoas ou às empresas, com a política fiscal. Basicamente, aceitámos a cartilha neoliberal de mão beijada e deixámos que os outros governassem por nós. Ainda não tinha reparado? Então olhe mais atentamente.

Mas a subjugação não se fica por aí. À medida que a concentração do poder a nível mundial foi aumentando, em conjunto com a globalização dos circuitos comerciais e dos fluxos de informação, fomos aprendendo a falar inglês e fomos adoptando os seus termos e os respectivos modos de pensar. Hoje temos dificuldade em substituí-los por termos portugueses. Vemos os mesmos programas de televisão, os mesmos filmes, ouvimos a mesma música, conduzimos os mesmos automóveis, compramos os mesmos chocolates, usamos as mesmas redes sociais, lemos os mesmos livros e as mesmas notícias que tantos outros povos em tantos outros países.

Talvez não sintamos isso como uma subjugação. Talvez até consideremos confortável a sensação de estarmos em casa, onde quer que nos encontremos dentro deste universo "ocidental" ou ocidentalizado. Mas a verdade é que quem tem o poder de determinar tudo isto, o que se faz ou não se faz, se existirá ou não salário mínimo e qual será o seu valor, se o sistema de saúde será público ou privado, se haverá transportes públicos ou só automóveis, se estes consumirão combustíveis fósseis ou baterias de lítio, se vamos ou não aniquilar a Amazónia, se vamos ou não ouvir a Mariah Carey e comprar presentes plastificados no Natal, quem determina isto tudo são os oligarcas do neoliberalismo, gente sem rosto e longo braço armado (socorrendo-me de Manuel da Fonseca), cada vez mais os Musks, os Gates, os Zuckerbergs.

Papámos isso tudo. Não só não foi preciso vir de lá um exército, como nós até acreditamos que o fizemos por vontade própria, em pleno exercício da nossa liberdade de escolha!

Trump diz a Zelensky: meu amigo, temos aqui a perspectiva de um negócio que será muito bom para ambas as partes. Nós temos petróleo, vocês têm terras raras (os elementos químicos que ficaram conhecidos como terrasraras não são terras, e também não são raros, à excepção do lantânio). Vamos trocar. Zelensky responde: e o Putin? Trump tenta apaziguar: também tenho negócios com Putin. Há um bolo comum, Putin ficará com uma parte, eu com outra e tu com outra. Zelensky insiste: e o Putin?

Qual será, terão perguntado Trump e os seus assessores a eles mesmos, e perguntamos nós agora, qual será a parte da negociação que Zelensky não estava a entender?

As pessoas que me rodeiam, as mesmas que ficaram muito agitadas com estas conversas focais e elípticas entre Zelensky e Trump, caem às vezes na tremendamente apetecível tentação de simplificar a realidade, separando os bons dos maus. Nesse modus operandi é usualmente importante definir-se "quem é que começou". É assim uma coisa ao estilo da escola primária: ó senhora professora, foi ele que começou. Ao que o outro, se quiser brincar também, terá de responder: não, não... tu é que começaste. Na guerra da Ucrânia há os simplistas, que dizem que isso começou com a invasão russa em 2022 e há os que se socorrem da história para explicar a origem dos povos há milénios atrás. Na guerra da Palestina é o mesmo: rios de tinta e de baba enraivecida têm fluído de tantas bocas e canetas acerca da origem do conflito, cada um alegando que a sua origem é mais originária e original que a origem alheia.

Discutir a origem histórica das coisas talvez seja importante. Mas mais importante, parece-me, e sobretudo em contextos de guerra, será discutir a criação presente de uma realidade desejável, começando pela paz.

Assim, e por uma vez que seja, deixemo-nos de indagar quem iniciou, ou porquê, a guerra na Ucrânia. Perguntemo-nos, alternativamente, o que poderiam ter feito as partes envolvidas para evitar a guerra ou para a terminar, depois de ela já ter começado.

Aos olhos de todos nós parece ser claro o que Putin deveria ter feito para evitar a guerra: simplesmente deveria não ter invadido a Ucrânia, seja isso uma operação militar muito, pouco ou nada especial. E isso independentemente de ter ou não razões válidas para o fazer. Sejamos um pouco mais simples, para variar: se Putin quisesse evitar a guerra, não teria invadido a Ucrânia. Ponto assente. Mas, e os outros? O que é que Zelensky poderia ter feito se quisesse mesmo evitar a guerra? O que é que a União Europeia poderia ter feito se quisesse mesmo evitar a guerra? O que é que os EUA poderiam ter feito se quisessem mesmo evitar a guerra?

Se ainda há, como certamente haverá, quem acredite que a resposta a estas questões é "nada", esses deveriam reconsiderar, sobretudo depois de todos termos ouvido as claras palavras de Trump, afirmando que se ele estivesse no poder em 2022 a guerra não teria sido iniciada. Teremos nós razões para duvidar destas palavras de Trump? Que poder teria o presidente dos EUA para contribuir para o início ou não de uma guerra noutro país?

E, se nos permitirmos finalmente abandonar os pensamentos simplistas, que poder teriam os outros actores, todos eles, para impedir o início daquela guerra?

Não me parece que Zelensky tenha feito tanto para impedir a guerra como fez para a perpetuar. E se isso pode ser controverso para alguns, aquilo que se passou na elipse da Casa Branca foi, novamente, muito esclarecedor: quando confrontado com a necessidade de negociar uma solução pacífica, Zelensky insiste e insiste e insiste em mais armas e mais armas e mais armas.

Isso não é heróico. É criminoso. E, nesse aspecto ao menos, ele não é diferente dos outros artistas todos desta tragédia.

Essa foi a atitude de Zelensky desde o início da guerra: um apelo constante à ajuda militar e a rejeição sistemática de qualquer possibilidade de negociação, sempre justificada com a obra diabólica do diabolizado oponente Putin. Ai, ai, que os russos malvados vêm aí!...

O que é que motivou e continua  a motivar Zelensky nessa cruzada insana contra os infiéis?

Responder-me-ão que ele luta pela defesa do seu povo e da integridade do respectivo território. Mas fazer isso com apelo às armas contra um inimigo muito mais poderoso, sabendo que daí inevitavelmente irão resultar muitas mortes e muitos estragos materiais, não me parece que seja uma opção de quem está no seu perfeito juízo.

Imaginemos, como esclarecedor exercício mental, que o conflito era entre a Guatemala e os EUA, depois destes terem invadido aquele (o que, de uma ou outra forma, já aconteceu) e que a posição do presidente da Guatemala era de sistemática rejeição da negociação e de insistência no apelo às armas para combater os EUA. Seria isso razoável?

Será Zelensky assim tão estúpido que não entenda que o fim desta guerra só poderá acontecer com negociações de paz? Será ele assim tão estúpido que acredite que a Ucrânia e os aliados têm mesmo que derrotar a Rússia? Será ele assim tão estúpido que não veja as oportunidades de negócio que lhe estão a ser lançadas? Será ele assim tão estúpido que não entenda que numa economia neoliberal e global o povo ucraniano será subjugado e evangelizado pelos poderes económicos dos maiores oligarcas, sejam eles russos ou chineses ou norte-americanos ou doutro país qualquer, independentemente do desfecho desta guerra?

Uma coisa é certa: a perspectiva de que Zelensky é muito corajoso e é um herói defensor do seu povo deve muito à realidade dos factos, e deve muito ao esclarecimento ético sobre o que deve ou não ser defendido por todos nós.

Outra coisa que pessoalmente me parece mais acertada, é que Zelensky deve ter uma inteligência comparável à de Trump ou Putin ou qualquer dirigente europeu. Assim, porque é que confrontado com a possibilidade de terminar a guerra no seu país, através de negociações de paz promovidas pelos EUA, Zelensky parece optar pela insistência no apelo a mais armamento?

Na mesma linha: porque é que os dirigentes europeus fazem figura tão triste e igualmente estúpida quando mantêm o discurso do "mais armas para a Ucrânia"? Se eles também não são estúpidos, o que é que os move? Quando as economias da Europa mostram sinais de fragilidade, quando as assimetrias económicas dos povos europeus aumentam, quando aparentemente falta dinheiro para os cuidados básicos como a habitação e a saúde, porque é que os dirigentes europeus insistem no discurso da diabolização da Rússia e na necessidade de gastar mais dinheiro em armas? O que é que os move?

E nós? O que é que nos move? Porque é que os nossos filhos vão estudar um curso em vez do outro? Porque é que depois do curso vão viver para um país ou para outro? Porque é que vivem no centro da cidade ou na periferia? Porque é que nós temos mais ou menos tempo livre e mais ou menos liberdade de o usarmos a nosso gosto? Qual é o peso que o dinheiro tem nas decisões que tomamos ao longo da vida, no nosso crescimento, na nossa saúde, na nossa educação, na nossa cultura, no modo como olhamos para a organização da sociedade?

Se nós somos tão conduzidos pelo dinheiro, porque é que acreditamos que os nossos dirigentes são diferentes de nós nesse respeito?

O discurso de Trump foi muito esclarecedor: ele afirma-se como um homem de negócios que quer fazer dinheiro. E a mim o que me surpreende é que isso possa surpreender alguém! Então não vivemos numa economia neoliberal? Não aprendemos nas escolas sobre o homo economicus? Não defendemos que a procura do lucro privado conduz ao bem comum? Não construímos afincadamente os mercados e erguemos altares à sacrossanta propriedade privada, por mais alarve que seja? Não somos todos nós, orgulhosamente, homens e mulheres de negócios? Não nos gabamos dos bons negócios que fazemos? Não justificamos aos amigos as nossas opções matrimoniais, universitárias, laborais, residenciais com base no dinheiro? Porque é que Trump havia de ser diferente de nós?

Porque é que Zelensky havia de ser diferente de nós? Ou de Trump? Porque é que Von der Leyen havia de ser diferente de Putin? Porque é que António Costa havia de ser diferente de Christine Lagarde?

Não acredito que as pessoas sejam todas iguais. Mas lanço estas perguntas provocatórias numa tentativa de realçar que devemos ter boas razões para acreditarmos que alguém é diferente de nós ou da média dos demais. Na ausência de boas razões, devemos suspender os nossos juízos e, na dúvida, talvez seja melhor considerar que todas as pessoas são meros mortais.

Em vez disso parece que as pessoas sentem uma grande necessidade de concluir apressadamente sobre o carácter heróico ou diabólico dos personagens.

Não consigo evitar, por muito que pareça fútil, traçar um paralelismo com o cinema. Aos meus olhos, uma das características distintivas dos filmes de Hollywood face aos filmes europeus ou de muitos outros países, é precisamente essa coisa de ter personagens heróicos e diabólicos, lutas do bem contra o mal, heróis vingativos, senhores dos anéis, dunes, eteceteras e tais. E isso parece resultar melhor na atracção de público do que filmes onde tudo é mais complexo. Será que a complexidade da vida é cansativa e simplesmente precisamos de momentos catárticos onde a simplicidade ajuda a expiar e expurgar as nossas raivas?

Como é que as pessoas que agora difundem imagens da cara de Zelensky criticam as enormes imagens de Mao Zedong, os cartazes de Ayattolah Khomeini ou Arafat, os quadros de Salazar ou Marcelo Caetano, as t-shirts de Che Guevara, os panfletos de Hitler ou Mussolini, as estátuas de Lenine? Do seu ponto de vista a resposta poderá parecer simples: porque a pessoa X tem qualidades que devem ser admiradas, ao contrário de Y ou Z. Não entenderão elas que o culto da personalidade tem em todos os casos os mesmíssimos fundamentos? Que a argumentação utilizada para defender a pessoa X é da mesma índole da utilizada para defender a pessoa Y?

A agitação que a conversa elíptica da sala oval gerou talvez tenha a ver com isso: a necessidade de escolha de símbolos, de bandeiras, de caras, bradando-as aos quatro ventos numa tentativa de evangelizar o mundo na nossa verdade.

Talvez a realidade seja bem mais prosaica. Temos nos nossos governos homens de negócios tão básicos como quase todos nós. E por mais que nos esforcemos na escolha dos símbolos e das pessoas a idolatrar, e na construção de justificações para essas escolhas, continuamos sem ser capazes de identificar onde está a ferida e de nela pormos o dedo certo, como aquele menino que se diz em tempos ter evitado a inundação dos Países-Baixos.

Por algum motivo rejeito racionalmente a natural propensão para o simbolismo, mesmo que, na prática, os símbolos sejam ubíquos e eu deles nunca possa escapar. Talvez seja um problema auto-imune.

Trump, Zelensky, Putin, Montenegro, Lagarde, todos eles defendem os seus interesses. Já era hora de nós defendermos os nossos!

terça-feira, 25 de fevereiro de 2025

Democracia versus capitalismo...

Um dos intervenientes deste vídeo, disponível no canal do youtube do The Real News Network, faz a certa altura a seguinte intervenção, que transcrevo em tradução minha:

"E então a Inteligência Artificial (IA)? A minha reacção a isso é igual à de questões como "e então os computadores?", "e então os robots?", e então qualquer um dos grandes avanços tecnológicos? Eles foram sempre ferramentas que podiam ser utilizadas de modos diversos. Não ouçam quando alguém vos disser que a IA ou a electricidade ou os robots têm de ser de uma determinada maneira. E vou explicá-lo com um exemplo simples, porque é bom para veicular a mensagem. Suponhamos que existe uma máquina, IA, um robot, qualquer coisa, que torna os trabalhadores duas vezes mais produtivos do que costumavam ser. Então, em vez de 10 produtos por hora, eles agora conseguem produzir 20. O que acontece no capitalismo é o seguinte: o capitalista diz "óptimo!", compra a máquina, despede metade dos seus trabalhadores, porque já não precisa deles, porque a outra metade tem agora o dobro da produtividade. O que é que ele faz com o dinheiro que poupa por ter despedido metade dos trabalhadores? Fica com ele: mais lucro para si próprio! Ele fica todo contente, e é assim que ele usa este avanço tecnológico. Agora deixem-me dar-vos uma alternativa. Suponhamos que existe uma empresa que repara na IA, ou robot, ou o que quer que seja, e diz "uau! é duas vezes mais produtivo! vamos fazer o seguinte: vamos comprar esse equipamento, não vamos despedir ninguém!, vamos reduzir o dia de trabalho de 8 horas para 4 horas. Porquê? Porque agora, com o novo equipamento, 4 horas de trabalho conseguem gerar o mesmo que antigamente se conseguia gerar em 8 horas. Podemos dispensar as outras 4 horas. Em vez de despedir pessoas, diminuimos o dia de trabalho". Agora deixem-me fazer-vos uma pergunta: se vivêssemos numa democracia, onde a maioria mandasse... nós saberíamos qual destas alternativas a maioria quereria adoptar - dêem-me metade do meu dia de trabalho para lazer, porque eu posso ser mais produtivo nas horas restantes. Nós não fazemos o que é democrático. Nós fazemos o que é lucrativo para a minúscula minoria de pessoas que são donos do negócio. Portanto eles despedem metade dos trabalhadores. Por isso é que estamos com medo. Não é a IA que é o problema! É o capitalismo, que usa cada avanço tecnológico para fazer o que eles lá em cima dizem que vão fazer: maximizar lucros. Eu ensinei em escolas de negócios! Isso é o que homens e mulheres de negócios pensam que é o seu trabalho: maximizar o lucro. Mas isso ajuda as pessoas que ganham lucros, não ajuda as pessoas que vivem de salários! Mas estes são a maioria! Um local de trabalho democrático tomaria as decisões que fossem as melhores para a maioria! Nós não vivemos num sistema assim. O capitalismo é o inimigo da democracia, e sempre o foi."


Nos últimos muitos anos, creio que esta foi a forma mais directa, simples, acessível, nua e crua de explicar porque é que o capitalismo não é compatível com a democracia. A razão é muito simples: na democracia, cada pessoa tem um voto, enquanto no capitalismo, cada euro tem um voto.

E uma vez que a maioria dos euros está com uma minoria de pessoas, seria expectável que, racionalmente, as pessoas entendessem que defender o capitalismo é dar um tiro no pé.

Mas não. Como já muitos estudos demonstraram, ser-se mais letrado nem sempre nos ajuda a chegar mais próximo da verdade; muitas vezes ajuda-nos apenas a reforçar o ponto de vista que já tínhamos desde o início, e que muitas vezes corresponde ao ponto de vista do grupo social em que estamos inseridos ou com o qual nos queremos identificar.

Muitas pessoas ainda vivem no tempo do "xê menino, não fala política". Muitas pessoas vivem vidas tão agitadas que não querem pensar em nada complexo, muito menos algo que as faça pôr em causa aquilo que sempre consideraram verdadeiro. Muitas pessoas entendem que pôr em causa o capitalismo é próprio de radicais, anarquistas, comunistas, fanáticos, excêntricos, lunáticos, e que isso é tudo mais ou menos a mesma coisa. Muitas pessoas entendem que aceitar o que existe, sem barafustar, ser honesto e trabalhar muito é o que define uma vida escorreita, pelo que não devemos questionar, muito menos questionar as bases do sistema económico que a todos alimenta (mesmo que muito a poucos e muito pouco a muitos). Enfim, há sempre um motivo para nos identificarmos com pessoas que seguem uma destas ondas, e portanto há sempre um motivo para não querermos pôr em causa o capitalismo, mesmo quando se pode demonstrar, por a mais bê, conforme foi feito em cima, que esse é um sistema económico que beneficia muito poucos à conta de todos os demais que somos nós.

Formei-me em economia, numa das melhores escolas de economia do país, com uma das médias mais elevadas, em 1997. Quando entrei para aquela escola, não sabia ao que ia, nem sequer sabia o que era a economia. Quando me apercebi das ideias e das pessoas que povoavam aquele meio, de como umas geravam outras e outras geravam umas, senti asco. Pensei em desistir. Mas parecia que fazia parte de mim acabar as coisas que começava, pelo que, sentado nas últimas cadeiras das salas de aulas, fui engolindo aquele longo sapo e papagueando o expectável.

A economia, enquanto ramo do saber, não tem culpa nenhuma disso. A meu ver, e à posteriori, nem sequer aquilo era economia. Aquilo era uma produção, selecção e reprodução de teses e teorias adequadas à prossecução dos fins. Não era, de modo algum, uma tentativa de investigação isenta da realidade económica da humanidade. Era assim, e continuou a ser. Também eu cheguei a ensinar disciplinas de economia em instituições do ensino superior. Infelizmente, também eu cumpri os programas pré-definidos pelas comissões muito científicas, que deixam muito pouco espaço para o pensamento. E, nos raros momentos em que pude soltar a minha rebeldia na sala de aula, ela chocou frontalmente com as ideias pré-concebidas já inculcadas nas cabeças dos alunos. Eram alunos. Estavam a aprender aquelas matérias, formalmente, pela primeira vez. Mas já estavam formatados, fechados a novas perspectivas, agarrados à sua visão sobre a realidade. Quem fez esse trabalho? A sociedade. Todos nós. Na nossa vida, na nossa actividade económica, nos nossos grupos, com os quais nos identificamos, os tais, que não querem questionar o capitalismo.

Tenho lutado, muito mais fora das salas de aulas, e com os parcos recursos, energia ou tempos de antena que tenho tido ao longo da vida, para chamar a atenção para a ignorância generalizada sobre o saber económico. Para a ignorância escondida atrás de um véu de sabedoria feita das ideias pré-concebidas que emana da cartilha neoliberal. Como sempre, os que se formam na área são os piores, porque as nossas escolas, ao invés de abrirem a mente, fecham-na, entopem-na de certezas, das certezas que lhes são conveninentes, daquelas que definem o "mainstream" e o "status-quo". Preto no branco, as classes dominantes definem as ideologias dominantes, se quiserem fazer o favor de reparar.

Tenho lutado, e estou a ficar cansado. Por exemplo, tenho tentado alertar para esta contradição intrínseca e inultrapassável entre democracia e capitalismo. Tenho tentado alertar para a importância extrema disso e doutros assuntos relacionados com a economia. Custa-me, por exemplo, ver tantas pessoas tão empenhadas a discutir identidade de género, racismo, xenofobia, aquecimento global, etc., mas ao mesmo tempo a negligenciarem o problema da economia. Cansa-me tentar alertar para o facto de a economia ser um problema transversal que, em grande medida, subjaz a esses outros problemas todos.

É bom, portanto, poder encontrar outras vozes que dão mais força a estes alertas. É melhor ainda quando elas conseguem traduzir de forma simples ideias complexas. Numa sociedade complexa, com um sistema económico complexo, e com pessoas complexas e cansadas do seu quotidiano, é importante conseguir ir directo ao cerne das questões. Creio que este senhor fez isso mesmo com o exemplo que nos deu. E perdoem-me se não sei o nome dele, porque sou também um iconoclasta que não acredita em argumentos de autoridade e acredita que todos devemos julgar as afirmações pelo seu conteúdo e não pela boca que as profere.

Finalmente, recomendo a visualização do vídeo completo, e igualmente os outros vídeos deste The Real News Network. Infelizmente vivemos num tempo em que os canais públicos de difusão contribuem muito mais para a preservação do estado das coisas, via entretenimento, do que para o esclarecimento e a emancipação das pessoas. Esse papel parece ter ficado agora dependente do jornalismo independente, a cujos obreiros tenho sempre de agradecer muito, mas cuja existência é sempre precária.

quinta-feira, 20 de fevereiro de 2025

Thatcher e o Banco Central Europeu...

Este é um excerto do livro "And the weak suffer what they must?" de Yanis Varoufakis. Nem ele, nem eu, temos a Thatcher em muito boa conta. Ela fez parte de um grupo de políticos que a nível mundial instalaram, à lei da bala, o sistema económico que hoje temos onde cada vez mais só o dinheiro conta. Não me esqueço, por exemplo, da sua amizade com Pinochet, a quem ela deu guarida na sua velhice, protegendo-o inclusivamente de um mandado de prisão internacional. Mas, mesmo tendo sido a Thatcher uma política de direita que governou a favor dos oligarcas capitalistas, até ela foi capaz de identificar que um Banco Central Europeu não democrático, como o que hoje temos, seria uma péssima opção.

Ao contrário do que alguns poderão pensar, o sistema económico que temos é tudo menos natural. Ele foi construído à revelia da vontade da população (por exemplo: foi você que pediu um BCE?) para promover um determinado tipo de economia.

O que aconteceu no ano da pandemia em que a actividade económica foi tremendamente reduzida, e em que consequentemente foi lançado um "plano de recuperação e resiliência" com biliões de euros a surgirem sabe-se lá de onde, ao mesmo tempo que as dívidas públicas de quase todos os países europeus se mantinham inalteradas, pagando anualmente juros que seriam mais do que suficientes para, por exemplo, colocar os sistemas nacionais de saúde em ordem, é um exemplo flagrante de como a governação é feita em favor de quem tem o poder económico e não em favor da generalidade da população.

Apesar disso ser flagrante e de ter impactos determinantes na vida de todos nós, a ponto de eu arriscar dizer que não há nada mais importante na condução da nossa vida material, todos seguimos impávidos e serenos na nossa ignorância acerca de onde o dinheiro surge e como desaparece. Já era tempo de mudar isso!

Excerto, com descuidada tradução minha:

"Que boa ideia!" respondeu Thatcher, depois de uma grande alegria ter enchido a Casa [dos Comuns]. E seguiu dizendo, em tom de brincadeira, "não tinha pensado nisso. Mas se pensasse, não haveria um banco central europeu que não presta contas a ninguém, muito menos aos parlamentos nacionais. Porque com um banco central desse tipo não haveria democracia, [e o banco central estaria] retirando os poderes de todos os parlamentos e tendo uma só moeda e uma política monetária e uma política de taxa de juro que nos retiraria a todos poder político."

Foi possivelmente a primeira e a última vez que o primeiro ministro de uma potência europeia acertou em cheio relativamente à natureza da união monetária da Europa. A noção de que o dinheiro pode ser administrado apoliticamente, apenas por meios técnicos, é uma loucura da maior perigosidade. A fantasia do dinheiro apolítico foi o que transformou o padrão do ouro do período entre guerras num sistema primitivo, cujo inevitável colapso impulsionou o fascismo e o nazismo com os efeitos que todos conhecemos e lamentamos.

O padrão do ouro baseava-se na ideia de despolitizar o dinheiro através da associação da sua quantidade à quantidade de ouro - um metal que os políticos não podiam criar do nada, uma vez que é fornecido exogenamente pela natureza. Hoje, a mesma fantasia do dinheiro apolítico pode ser encontrada não apenas na construção de um banco central europeu que não responde perante nenhum parlamento (como Thatcher tinha avisado) mas também nas modernas moedas digitais como o Bitcoin, cuja imagem de marca é precisamente a de não ter uma autoridade política a dirigi-lo. A ideia preciosa de Margaret Thatcher foi que o controlo das taxas de juro e da oferta de moeda é uma actividade política quintessencial que, se removida do controlo de um parlamento democraticamente eleito, origina uma descida inexorável para o autoritarismo.


 

quarta-feira, 12 de fevereiro de 2025

De que nos serve a barbárie?...

The Fourth Beast: Is Donald Trump the Antichrist? : Moelhauser, Lawrence  R.: Amazon.co.za: Books 

Até me dá vontade de agradecer a Trump por trazer à luz do dia, escancaradamente, aquilo que todos os presidentes anteriores foram fazendo às escondidas. Erguer muros contra os pobres dos outros países e dificuldades contra os pobres do próprio país, dar mais força aos mercados desregulados, legislar a favor dos grandes interesses económicos, gastar mais em armas, fazer guerras em nome do negócio... nada disso é novo. Mas finalmente os campeões da propaganda enraizada desde as escolas primárias às universidades, desde os canais televisivos às redes sociais, desde as distracções aos locais de trabalho, perceberam que não precisam de esconder nada.

Podia ser que agora, finalmente, as pessoas começassem a abrir os olhos!

Mas não. Não sejamos ingénuos. Aqueles que abrirem os olhos irão ficar ofuscados com tanta luz, e deixá-los-ão apenas entreabertos o suficiente para distinguir no Trump um crápula. Talvez que esse amor generalizado à imagem que têm dos Estados Unidos como o país da democracia, da liberdade, da igualdade, onde todos têm os mesmos direitos e podem concretizar os seus sonhos, o país que pugna por esses valores no mundo inteiro, não olhando a meios para combater os hereges autocratas e inimigos do livre arbítrio, talvez o amor generalizado a isso tudo possa ser posto em causa por algumas pessoas, à luz dos acontecimentos com que Trump faz o favor de nos brindar quase diariamente.

Muitos resistirão ainda assim, ancorando o seu amor à terra dos livres na evidência histórica da ausência de alternativas. Irão explicar-nos, pela milionésima vez, que apesar de tudo não há melhor país do que aquele, que os outros – este, aquele, aqueloutro e mais algum – são horríveis, como toda a gente sabe. Irão, desse modo, agarrar-se à discussão básica que a propaganda, de todos os lados, e esta sim, papagueada desde há séculos, tratou tão bem de inculcar nas cabecinhas de todos enquanto liam (para se educarem), viam filmes (para serem mais cultos), trabalhavam (para serem úteis à sociedade) e se comportavam como deve ser (para serem respeitáveis): a discussão sobre quem ou o quê é que devemos seguir.

Devemos nós pertencer ao clube dos que gostam dos EUA, ou ao clube dos que gostam da Rússia? Ao clube dos que gostam do capitalismo ou do comunismo? Ao clube dos que gostam de Trump ou dos que gostam do... olha, já me esqueci!... do Biden? Ao clube dos que votam PS ou ao clube dos que votam PSD? Oh! Como é difícil com tantos caminhos saber qual deles seguir! Como é difícil compreender o que nos querem dizer de um lado e do outro! Por favor, ajudem-nos! Dêem-nos uma pista que seja: quem é que deveremos apoiar? Em quem deveremos depositar nós a confiança de nos guiar neste mundo tão complexo e tão cheio de poderes que nos transcendem?

Não. A discussão nunca devia ter sido essa. A discussão devia ter sido sempre sobre como nos amarmos, sobre como tocarmos o acordeão e dançarmos à volta da fogueira, apreciando os frutos que a natureza tem de sobeja para todos nós. A discussão devia sempre ter sido sobre como impedir que os outros nos roubem a alegria, nos roubem da nossa justa parte do todo que é produzido, como impedir que haja sempre uma meia dúzia de espertalhaços que ganham com o trabalho dos outros mais do que eles todos juntos. A discussão devia ser sobre como construir jardins e impedir guerras. Sobre como proibir a construção de armas e garantir essa proibição, em vez de as produzir alegando que servem para a paz. A discussão devia sempre ter sido sobre o amor e a sua protecção acima de todas as coisas más que nos afligem a todos, mais tarde ou mais cedo, num dado momento: invejas, egoísmos, raivas, megalomanias. A discussão devia sempre ter sido sobre como encontrar relações mais harmoniosas entre todos nós, e entre nós e a natureza. Sobre como viver bem minimizando o sofrimento de todos os seres vivos e mantendo as relações ecológicas delicadas que a natureza criou ao longo de milhões de anos. Sobre como crescer, cá dentro, sobre como desenvolver a nossa capacidade de ver o belo, e de o aumentar, e a nossa capacidade de discernir o feio, e de o prevenir ou isolar.

A discussão devia ter sido sobre valores morais, ou éticos, como lhes queiram chamar. Nunca devíamos ter desistido disso. Historicamente levamos com a moral dos outros em cima até ao ponto em que nos rebelámos e pudemos finalmente gritar liberdade!... Só que nesse momento mandamos a moral toda às urtigas. Depois ficámos à nora. Agarrámo-nos por fim às crenças antigas, acreditando que quanto mais antigas mais verdadeiras e logo melhores, e às crenças modernas, como a crença cega nas capacidades da ciência resolver todos os problemas do planeta. Enfim, agarrámo-nos a qualquer coisa que nos permitisse a mínima noção de chão, de substrato, de fundamento, neste oceano muito fluido de complexidade que nos ameaça de afogamento a toda a hora.

Não discutimos nada. Agarrámo-nos simplesmente a qualquer coisa que nos parecesse uma nesga de fundamento. E quando olhámos para o lado, o do lado tinha-se agarrado a outra coisa qualquer. E logo o acusámos de fundamentalismo!... Quando devíamos era ter discutido. O que é melhor aqui e agora pode não o ser ali ou noutro tempo. O que é melhor para ti pode não o ser para mim. Mas, se numa esperança infundada de vislumbre, pudéssemos ser um pouco menos individualistas, autárcicos, até narcisistas, se pudéssemos ser um pouco mais humildes para connosco mesmos, saberíamos que nem nós sabemos bem o que é melhor para nós. Estamos sempre a aprender. E temos todos muito a aprender uns com os outros. Não devíamos nunca ter deixado de falar uns com os outros, sobretudo acerca do que consideramos melhor para todos nós.

E agora chegámos a um ponto em que cada um está tão arreigado na sua estabilidadezinha, tão cioso dela, tão pronto a defendê-la dos ataques dos outros, que já não conseguimos colocar-nos em causa e impedimos qualquer tipo de diálogo profundo com quem nos seja um bocadinho diferente.

Do que se trata aqui não é de saber se devemos amar os EUA ou outro país qualquer. Trata-se, isso sim, de perceber que esse tipo de amores são propagandeados para que seja mais fácil aos pastores conduzirem o rebanho. Devíamos rejeitar as bandeiras, todas elas! E os presidentes, todos eles! Do que se trata é de sermos capazes de ter um espírito crítico e de mantermos a energia suficiente para nunca termos de o desligar. E ufff!... que depois de um longo dia a trabalhar às ordens de outros, a aturar tarefas chatas e pessoas indelicadas, para atingir objectivos que não são os nossos... é difícil manter essa energia. Pois é.

Tenho a esperança que as barbaridades do Trump terminem rapidamente (e que o Trump, desprovido dessas barbaridades, e reencontrado como ser humano, sentado na sanita, com saudades da mamã, possa seguir a sua vidinha). Tenho esperança que estas barbaridades possam beliscar os facciosismos de alguns aficionados. Mas não tenho muita esperança que os possa levar a centrar a discussão naquilo que verdadeiramente importa. Para isso o trabalho deve ser outro. Feliz ou infelizmente, antes ou depois do Trump, a questão continua a ser outra.

 

quinta-feira, 30 de janeiro de 2025

Como o fascismo cá chegou...

 

“Quanto pior a realidade se torna, menos uma população sitiada quer ouvir falar dela e mais se distrai com pseudoeventos sórdidos de colapsos de celebridades, mexericos e trivialidades. Estas são as folias depravadas de uma civilização moribunda."

Este texto de Chris Hedges, que traduzi com a ajuda de ferramentas online, foi publicado no seu portal, em inglês, no dia 23 do passado Dezembro. Ele ilustra bem, e só mais uma vez, que como dizia o Almada Negreiros, todas as frases que podem salvar o mundo já estavam escritas quando eu nasci... agora só falta mesmo é salvar o mundo.

Quanto mais o mundo se afunda, perdão, quanto mais afundamos o mundo connosco lá dentro, mais queremos a evasão mental de um qualquer divertimento. Vamo-nos divertindo até à morte, conforme documentou muito bem Neil Postman, num livro com esse mesmo título, que nunca é demais recomendar.

O que é preciso fazer então para acabar com esta folia e começar a construir um mundo melhor? É simples. Basta, sem o recurso a poderosíssimas tecnologias de difusão de informação, e contra elas, alertar a maioria da população para algo que ela deseja ignorar. Tem tudo para resultar!

Pessoalmente creio que, aqui chegados, é uma questão de consciência que fica ao critério de cada um: ir na onda e contribuir alegremente para a decadência total, ou aderir a uma luta inglória onde os sacrifícios parecem dar em nada. Pessoalmente também, eu sei o que quero: conforme dizia o próprio Chris Hedges, eu combato os fascistas não porque vou ganhar, mas porque eles são fascistas.

Deixo-vos o texto. Ele foi escrito no contexto dos EUA, mas com as devidas adaptações, e infelizmente, pode servir a muitos outros países. Leitura de 10 minutos.

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Durante mais de duas décadas, eu e um punhado de outros — Sheldon Wolin, Noam Chomsky, Chalmers Johnson, Barbara Ehrenreich e Ralph Nader — alertámos para o facto de a crescente desigualdade social e a constante erosão das nossas instituições democráticas, incluindo os meios de comunicação social, o Congresso, os sindicatos, a academia e os tribunais, conduziriam inevitavelmente a um Estado autoritário ou fascista cristão. Os meus livros – “Fascistas americanos: a direita cristã e a guerra contra a América” (2007), “Império da ilusão: o fim da literacia e o triunfo do espectáculo” (2009), “A morte da classe liberal” (2010) , “Days of Destruction, Days of Revolt” (2012), escrito com Joe Sacco, “Wages of Rebellion” (2015) e “America: The Farewell Tour” (2018) foram uma sucessão de apelos apaixonados para levar a sério a decadência. Não tenho prazer em ter razão.

“A raiva dos abandonados pela economia, os medos e preocupações de uma classe média sitiada e insegura, e o isolamento entorpecedor que é originado pela perda da comunidade, seriam o combustível para um perigoso movimento de massas”, escrevi em “Fascistas americanos” em 2007. “Se estes desapossados não fossem reincorporados na sociedade dominante, se eventualmente perdessem toda a esperança de encontrar bons e estáveis empregos e oportunidades para si e para os seus filhos — em suma, a promessa de um futuro mais risonho — o espectro do fascismo assolaria a nação. Este desespero, esta perda de esperança, esta negação de um futuro, levou os desesperados para os braços daqueles que prometiam milagres e sonhos de glória apocalíptica.”

O presidente eleito Donald Trump não anuncia o advento do fascismo. Anuncia o colapso do verniz que mascarava a corrupção no seio da classe dominante e a sua ilusão de democracia. Ele é o sintoma, não a doença. A perda das normas democráticas básicas começou muito antes de Trump, abrindo o caminho ao totalitarismo americano. Desindustrialização, desregulação, austeridade, empresas predatórias não reguladas, incluindo a indústria da saúde, vigilância generalizada de todos os americanos, desigualdade social, um sistema eleitoral minado por subornos legalizados, guerras intermináveis e fúteis, a maior população prisional do mundo, mas acima de tudo os sentimentos de traição, estagnação e desespero são uma mistura tóxica que culmina num ódio incipiente à classe dominante e às instituições que ela deformou para servir exclusivamente os ricos e poderosos. Os democratas são tão culpados como os republicanos [1].

“Trump e o seu séquito de bilionários, generais, idiotas, fascistas cristãos, criminosos, racistas e indivíduos com comportamentos moralmente desviantes desempenham o papel do clã Snopes em alguns dos romances de William Faulkner”, escrevi em “America: The Farewell Tour”. “Os Snopes preencheram o vazio de poder do decadente Sul e tomaram implacavelmente o controlo das elites aristocráticas degeneradas, anteriormente esclavagistas. Flem Snopes e a sua família alargada – que inclui um assassino, um pedófilo, um bígamo, um incendiário, um homem com deficiência mental que copula com uma vaca e um parente que vende bilhetes para testemunhar a bestialidade – são representações fictícias da escumalha agora elevada ao mais alto nível do governo federal. Personificam a podridão moral desencadeada pelo capitalismo desenfreado.”

“A referência habitual à ‘amoralidade’, embora precisa, não é suficientemente distintiva e por si só não nos permite colocá-los, como deveriam ser colocados, num momento histórico”, escreveu o crítico Irving Howe sobre os Snopes. “Talvez o mais importante a dizer é que eles são o que vem depois: as criaturas que emergem da devastação, com o lodo ainda nos lábios.”

“Que um mundo entre em colapso, no Sul ou na Rússia, e apareçam figuras de ambição grosseira a abrir caminho desde o fundo da sociedade, homens para quem as reivindicações morais não são tanto absurdas como incompreensíveis, filhos de mercenários ou mujiques [2] vadiando desde lado nenhum e assumindo o poder simplesmente através da sua despudorada força monolítica”, escreveu Howe. “Tornam-se presidentes de bancos locais e de secções regionais de partidos e, mais tarde, um pouco mais elegantes, abrem caminho pela força no Congresso ou no Politburo. Necrófagos desinibidos, não precisam de acreditar no decadente código da sua sociedade; só precisam de aprender a imitar os seus sons.”

O filósofo político Sheldon Wolin chamou ao nosso sistema de governação “totalitarismo invertido”, um sistema que manteve a antiga iconografia, símbolos e linguagem, mas entregou o poder às corporações [3] e aos oligarcas. Agora, mudaremos para a forma mais reconhecível do totalitarismo, dominada por um demagogo e por uma ideologia baseada na diabolização do outro, na hipermasculinidade e no pensamento mágico.

O fascismo é sempre o filho bastardo de um liberalismo falhado.

“Vivemos num sistema jurídico de dois níveis, onde os pobres são perseguidos, presos e encarcerados por infracções absurdas, como vender cigarros avulsos – o que levou Eric Garner a ser estrangulado até à morte pela polícia da cidade de Nova Iorque em 2014 – enquanto crimes de magnitude assustadora cometidos por oligarcas e corporações, desde derrames de petróleo a fraudes bancárias de centenas de milhares de milhões de dólares, que destruíram 40 por cento da riqueza mundial, são tratados através de suaves controlos administrativos, multas simbólicas e controlo civil que na prática dão a estes ricos perpetradores imunidade contra processos criminais”, escrevi em “America: The Farewell Tour”.

A ideologia utópica do neoliberalismo e do capitalismo global é uma grande farsa. A riqueza global, em vez de ser distribuída de forma equitativa, como prometiam os defensores do neoliberalismo, foi canalizada para as mãos de uma elite oligárquica e voraz, alimentando a pior desigualdade económica desde a era dos barões-ladrões [4]. Os trabalhadores pobres, que foram espoliados dos seus sindicatos e dos seus direitos e cujos salários estagnaram ou diminuíram nos últimos 40 anos, foram lançados na pobreza crónica e no subemprego. As suas vidas, como Barbara Ehrenreich relatou em “Nickel and Dimed”, são uma longa emergência conduzida pelo stress. A classe média está a evaporar-se. Cidades que antes fabricavam produtos e ofereciam emprego em fábricas são agora terrenos abandonados e vedados. As prisões estão sobrelotadas. As corporações orquestraram a destruição de barreiras comerciais, permitindo-lhes arrecadar 1,42 biliões de dólares [5] em lucros em bancos estrangeiros para evitar o pagamento de impostos.

O neoliberalismo, apesar da sua promessa de construir e disseminar a democracia, rapidamente destruiu regulamentos e esvaziou os sistemas democráticos, transformando-os em leviatãs [6] corporativos. Os rótulos “liberal” e “conservador” não têm qualquer significado na ordem neoliberal, conforme é evidenciado por um candidato presidencial democrata que se gabou do apoio de Dick Cheney, um criminoso de guerra que deixou o cargo com uma taxa de aprovação de 13% [7]. O atractivo de Trump é que, embora vil e fanfarrão, troça da falência da farsa política.

“A mentira permanente é a apoteose do totalitarismo”, escrevi em “America: The Farewell Tour”:

Já não importa o que é verdade. Importa apenas o que é "correcto". Os tribunais federais estão a ficar apinhados de juízes imbecis e incompetentes que servem a ideologia "correcta" do corporativismo e os rígidos costumes sociais da direita cristã. Desprezam a realidade, incluindo a ciência e o Estado de direito. Procuram banir aqueles que vivem num mundo baseado na realidade, definido pela autonomia intelectual e moral. O regime totalitário exalta sempre os brutos e os estúpidos. Estes idiotas reinantes não têm qualquer filosofia ou objectivos políticos genuínos. Utilizam clichés e slogans, muitos dos quais são absurdos e contraditórios, para justificar a sua ganância e sede de poder. Isto é tão verdade para a direita cristã como para os corporativistas que pregam o mercado livre e a globalização. A fusão dos corporativistas com a direita cristã é o casamento de Godzilla com Frankenstein.

As ilusões impingidas nos nossos ecrãs – incluindo a persona fictícia criada para Trump no filme "O Aprendiz" – substituíram a realidade. A política é burlesca, como ilustrou a campanha insípida e repleta de celebridades de Kamala Harris. É uma ilusão criada pelo exército de agentes, publicitários, departamentos de marketing, procuradores, argumentistas, produtores de televisão e cinema, técnicos de vídeo, fotógrafos, guarda-costas, consultores de imagem, personal trainers, técnicos de sondagens, locutores e personalidades do noticiário televisivo. Somos uma cultura inundada em mentiras.

“O culto do eu domina a nossa paisagem cultural”, escrevi em “Empire of Illusion”:

Este culto tem em si os traços clássicos dos psicopatas: charme superficial, grandiosidade e auto-importância; uma necessidade de estimulação constante, uma propensão para a mentira, a ilusão e a manipulação, e a incapacidade de sentir remorso ou culpa. Esta é, naturalmente, a ética promovida pelas corporações. É a ética do capitalismo desenfreado. É a crença errada de que o estilo pessoal e o desenvolvimento pessoal, confundidos com o individualismo, são a mesma coisa que a igualdade democrática. De facto, o estilo pessoal, definido pelos bens que compramos ou consumimos, tornou-se uma compensação pela nossa perda de igualdade democrática. Temos o direito, no culto do eu, de obter tudo o que desejamos. Podemos fazer qualquer coisa, até menosprezar e destruir aqueles que nos rodeiam, incluindo os nossos amigos, para ganhar dinheiro, sermos felizes e nos tornarmos famosos. Uma vez alcançada a fama e a riqueza, elas tornam-se a sua própria justificação, a sua própria moralidade. Como se chega lá é irrelevante. Quando se chega lá, essas perguntas já não são feitas.

O meu livro “Empire of Illusion” começa no Madison Square Garden numa digressão da World Wrestling Entertainment [WWE]. Eu compreendia que o wrestling profissional era o modelo para a nossa vida social e política, mas não sabia que iria produzir um presidente.

“As lutas são rituais estilizados”, escrevi, no que poderia ter sido uma descrição de um comício de Trump:

São expressões públicas de dor e de um desejo ardente de vingança. As sagas espalhafatosas e detalhadas associadas a cada combate, e não os combates em si, são o que leva o público ao delírio. Estas batalhas ritualizadas proporcionam aos que estão nas arenas um alívio temporário e inebriante da vida mundana. O fardo dos problemas reais é transformado em material para uma energética pantomima.

Não vai melhorar. As ferramentas para acabar com a dissidência foram consolidadas. A nossa democracia entrou em colapso há anos. Estamos sob o domínio daquilo a que Søren Kierkegaard chamou a “doença mortal” – o entorpecimento da alma pelo desespero que conduz à degradação moral e física. Tudo o que Trump precisa de fazer para estabelecer um estado policial escancarado é carregar num botão. E ele vai fazê-lo.

“Quanto pior a realidade se torna, menos uma população sitiada quer ouvir falar dela”, escrevi na conclusão de “Empire of Illusion”, “e mais se distrai com pseudoeventos sórdidos de colapsos de celebridades, mexericos e trivialidades. Estas são as folias depravadas de uma civilização moribunda.”

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Notas do Tradutor:

1 - O mesmo pode ser dito de muitos outros partidos em muitos outros países com sistemas essencialmente bipartidários, como é o caso de Portugal.

2 - Camponeses pobres, da língua russa.

3 - Corporações devem ser entendidas, neste contexto, como grandes empresas ou grupos empresariais privados. As palavras da mesma família devem ter a mesma interpretação, mutatis mutandis.

4 - Barão-ladrão é um termo que foi utilizado sobretudo no final do século XIX, nos EUA, para designar os ricos sem escrúpulos.

5 - 1,42 x 10^12 , um trilião, segundo a nomenclatura norte-americana, um bilião, segundo a nomenclatura portuguesa.

6 - Leviatã é um monstro referido na bíblia que vive nos oceanos.

7 - Taxa de aprovação calculada com base em sondagens à população.