domingo, 8 de junho de 2025

A luta fragmentada...

Ou a importância da união na luta.

(pintura de Manuel Cargaleiro)

Primeiro vieram buscar os palestinianos. Mas eu não me importei. Não sou palestiniano. Porque havia de me importar?

Repito a pergunta: porque me havia de importar com os problemas dos outros, se eu não sou os outros?

Há diversas formas de abordar esta questão. Uma forma pragmática, prática, desenvolta, airosa, pós-moderna e consonante com o nosso estilo de vida é responder simplesmente "quero lá saber". Desde que não me afecte, tudo bem.

Esta perspectiva baseia-se numa moral egoísta em que o bem e o mal são medidos em função do modo como as coisas nos afectam. Uma faca trespassando a minha barriga é mau, trespassando a barriga de um transeunte à minha frente é menos mau, trespassando a barriga de um desconhecido no outro lado do mundo é tão pouco mau, que eu nem quero saber.

Foi assim que durante muitos anos se considerou insignificantemente mau encher a atmosfera de gases de combustão de petróleo e carvão. Foi preciso começarmos a sentir os efeitos disso na pele, efeitos que já se anteviam há muitas décadas, para começarmos, paulatinamente, a considerar isso um bocadito mais mau. E isso foi, convenhamos, muito pouco inteligente, até porque a inércia deste processo em concreto é enorme e já poucos acreditam que seja sequer possível reparar o erro, que mais vale começar já a antecipar as piores consequências.

Se quisermos ser mais inteligentes, teremos de perder algum tempo e dedicar algum esforço a tentar entender melhor o alcance das nossas atitudes e comportamentos, não apenas no aqui e no agora, mas também um pouco mais além no espaço e no tempo.

Como infelizmente não somos iguais (ai que giro que é sermos tão diferentes!) na capacidade ou no empenho para identificar as consequências dos nossos actos em períodos e espaços maiores, os que mais se preocupam, que têm mais ferramentas para ver mais além, que se dedicam mais a isso, carregam a cruz de perceberem em primeira mão a asneira, de a tentarem demonstrar aos demais, de sofrerem represálias à conta disso. Quando alguém não se interessa, o fardo acaba sempre por recair noutros. E quantas vezes esse fardo inclui ansiedade e depressão?

Que a tentativa de perceber as consequências mais afastadas das nossas acções é um sinal de inteligência, talvez não seja muito polémico. Apesar disso, muitos defendem hoje a produção de energia eléctrica a partir da cisão dos átomos em centrais nucleares, inclusivamente como medida para tentar mitigar o problema do recurso aos combustíveis fósseis e consequente aquecimento global, sem quererem entender, ou entendendo, sem o quererem assumir, que isso é apenas uma maneira de trocar um problema gravíssimo por outro problema possivelmente ainda mais grave, mas cujas consequências só se farão sentir mais adiante.

Dentro desta lógica, os mais preocupados auto-incumbem-se de tentar mostrar aos demais porque é importante travarmos o genocídio em Gaza, ou impedirmos qualquer outra guerra, indo directos ao âmago egoísta de cada um: é bom que te preocupes quando vêm buscar os judeus, porque a seguir podes ser tu.

E é uma tristeza que a nossa moral airosa se fique por aqui.

Estudamos história. Quanto mais estudamos, mais aterrados ficamos (ou devemos ficar) com o que o ser humano foi capaz de fazer a outros da mesma espécie (para não falar das outras espécies). Basta estudar um pouquinho, uma coisinha de nada, para deixar de ter qualquer tipo de ilusão acerca da benevolência da nossa espécie, quer enquanto espécie, quer enquanto seres individuais. Bastará também estudar um poucochinho de história para perceber que esta ideia de a Europa ser guardiã de valores fundamentais da liberdade, de democracia e de progresso não passa de uma piada de profundo mau gosto com que tentam, e infelizmente conseguem, moldar o pensamento de tantos de nós.

Mas quê? A nossa preocupação não pode ser assim tão profunda. Que nos interessa a barbárie da história da colonização dos povos, se isso foi no passado? Foi no passado, já passou, já não há nada a fazer, nem vale a pena ficarmos tristes com isso! E bota mais um pouco de fast-food, fast-fashion, fast-furniture, fast-fuck e fast-ethics.

É uma tristeza, digo eu, que gostaria de conviver com uma humanidade convicta de outros valores, como por exemplo a salvaguarda da vida, ontem, hoje, amanhã, aqui, ali, acolá. Mas isso é outro tema, que por ora omito.

Há quase duzentos anos alguns indivíduos disseram e escreveram: proletários de todos os países, uni-vos!

Mas porque é que eu me hei-de preocupar com o despedimento de 222 trabalhadores da fábrica de calçado Gabor, se eu não trabalho lá, nem os conheço, e a fábrica fica em Barcelos quando eu vivo nos Açores?

E lá vêm os poucos ansiosos e deprimidos, porque mais preocupados, porque mais informados, tentar elucidar-me que o mesmo capital que está investido naquela fábrica estará de seguida investido na minha terra, onde irá "oferecer-me" trabalho, e as mesmas regras que esse capital dita lá fora, irá impor também aqui, e se eu não tomar partido já, é muito provável que no futuro venha a ser eu mesmo a sofrer as mesmas represálias. E ainda me explicam mais: que o despedimento doutros trabalhadores poderá ter efeitos na economia local, os quais por sua vez acabam por se repercutir nas economias com ela relacionadas; que os desempregados irão precisar de subsídios que irão ser pagos com os meus impostos; que alguns deles poderão necessitar de outro tipo de apoios do Estado, entre os quais assistência na saúde ou na habitação. Enfim, mostram-me, a custo, e apelando ao meu egoísmo, que quando outros trabalhadores sofrem, isso também coloca em risco a minha posição. Tentam fazer-me ver um pouco mais além, nas consequências das minhas acções e omissões. Em troca, eu digo que esses activistas são uns frustrados, que deviam era ir para as suas casas tratar dos seus assuntos, que a minha vida é só comigo e ninguém tem nada com isso, que eles são propagandistas, que são partidários, que só querem é tachos e mamar.

É preciso um esforço tremendo para chamar para uma luta global todas as pessoas que estão em situações de relativa fragilidade, sobretudo quando há tanto sofrimento, tanta sede de prazer, tantas distracções e fontes de prazer imediato, tanto cansaço e falta de pachorra para abordar assuntos sérios e deprimentes, tanta falta de conhecimento, tantas vezes intencional, ignorância essa que num mundo cada vez mais sofisticado e complexo vai crescendo em termos relativos, mesmo com todos os investimentos colectivos que fazemos na formação dos nossos jovens, a qual visa quase exclusivamente o "mercado de trabalho".

Nesse esforço de apelo à luta, num contexto de moralidade egoísta, é da maior importância a explicitação dos elos que nos unem, que unem isto tudo cá por dentro e à nossa volta.

Isto anda tudo ligado, ouvimos de vez em quando alguém dizer. Pode ser um chavão, mas não é de chave na mão, permitam-me a chalaça, porque não é nada fácil entender o modo como isto anda tudo ligado. Se eu até consigo perceber, enquanto trabalhador assalariado, que o despedimento de 222 trabalhadores assalariados na Gabor pode ter um impacto indirecto na minha vida, mais difícil será perceber o impacto que terá na minha vida as agressões racistas ocorridas em Lisboa, quando eu sou branco e vivo nos Açores, ou a violência doméstica contra mulheres, quando eu sou homem, ou o massacre dos palestinianos quando eu não tenho nada a ver com eles.

Uma forma de esclarecer, de trazer à tona, e à mostra, a estrutura dos problemas, é generalizá-los.

Todas as generalizações são perigosas, incluindo esta. Generalizar é aplicar a um universo mais estendido as conclusões retiradas da observação de apenas uma amostra. É passar dos casos isolados para o conjunto de casos, e daí para o todo. E o risco neste processo deve ser evidente: se eu vejo um homem a agredir uma mulher, talvez não deva precipitar-me para a conclusão de que todos os homens agridem as mulheres.

Apesar do grande risco associado às generalizações, elas são essenciais na aprendizagem, na apreensão da realidade, no avanço do nosso conhecimento. Quando eu escolho uvas, eu aprecio a sua textura, a sua cor, o seu cheiro, o seu tamanho... na tentativa de achar algum padrão que me permita saber de antemão se elas são doces ou não sem ter de as provar. Eu só aprendo a escolher uvas quando consigo identificar um tal padrão e quando repetidas experiências demonstram que esse padrão é efectivamente útil na selecção das uvas doces. Se eu não for capaz de generalizar, nunca poderei aprender a escolher uvas.

O que é que há em comum entre, por exemplo, o genocídio em Gaza e os despedimentos na Gabor? Ou entre isso e a violência doméstica ou o assédio no local de trabalho ou a exploração mineira na Argentina ou o trânsito automóvel ou o aquecimento global ou a venda de armas? Será que existe uma luta comum na base de todos estes problemas? Se sim, será importante colocar essa comunhão em evidência?

Será que em todos esses problemas, e tantos outros de que a humanidade é prolixa, podemos identificar agressores e agredidos, relações de poder, estruturas que incluem instituições, culturas, modos de agir e pensar, ideologias que permitem a perpetuação dessas relações?

No entender de muitos desses preocupados mentais, entre os quais me incluo, a institucionalização da opressão é global e recorre a estratégias e mecanismos globais. E só conhecendo esses mecanismos globais, só apreendendo o modo como isto anda tudo ligado, é que estaremos em condições de decidir o que é melhor em termos de acção local. Por isso é tão importante pôr em cima da mesa, a nu, essas linhas que unem todos estes problemas. Por isso vale a pena o tremendo esforço que é o de compreender o que é que umas coisas têm a ver com as outras, de forma clara, para que todos possamos estar igualmente empenhados numa luta que, bem vistas as coisas, é de todos.

E é neste contexto, com este enquadramento, imbuído deste espírito, que vejo com muita preocupação, e desde há tanto tempo, o empenho que tantos colocam em lutas mais pequenas, mais circunscritas, sem dedicarem o mesmo empenho à união de todos os que, noutros formatos, são vítimas da mesma violência global.

Tomemos o caso dos bancos alimentares contra a fome. É claro que a fome é um problema sério que merece medidas urgentes para a sua mitigação. Também devia ser claro que essas medidas não deviam basear-se na caridade, mas sim em sistemas mais justos decididos pela sociedade como um todo. O que infelizmente parece ser ainda menos claro é que tão ou mais importante do que combater a fome, é reformar ou mesmo destruir o sistema que produz a fome!

Se eu confrontar os voluntários dos bancos alimentares contra a fome com esta questão, tenho poucas dúvidas de que todos estarão de acordo comigo. No entanto, finalizada a campanha, nada é feito até à campanha seguinte. E assim lá vamos seguindo, de campanha em campanha, ao longo dos anos e das décadas. E, qual cereja no topo do bolo, no final de cada uma ainda nos vangloriamos na medida da quantidade de fome que conseguimos adiar.

Cada pessoa que sofre directa ou indirectamente com uma agressão, e que abraça a luta contra esse tipo de agressão, sente-se identificada com isso, com a luta, com a própria agressão, como se isso fosse uma parte de si, como se isso fosse em certa medida sua pertença. Algumas pessoas são capazes de levar este sentimento tão longe, ou tão profundamente, que expulsam da sua luta as pessoas que consideram "não ter nada a ver com isso". Como se uma manifestação pela defesa dos direitos da Palestina fosse pertença apenas de palestinianos e só esses nela pudessem participar. Como se apenas as mulheres pudessem lutar contra a violência sobre as mulheres. Como se apenas os desalojados pudessem reivindicar políticas justas de habitação.

Mas esses serão casos extremos. Na maioria dos casos quem luta por uma causa sentir-se-á melhor se outras pessoas aderirem a essa luta, mesmo que essas pessoas não sofram directamente do respectivo problema.

No entanto, em qualquer caso, a referida sensação de identificação e propriedade sobre o problema pode gerar sentimentos negativos face a discursos que tentam comparar problemas, que relativizam, que generalizam. De algum modo, é como se aquele problema concreto deixasse de ser o centro das atenções, deixasse de ser a coisa mais importante no universo, o que tantas vezes é o caso para as suas vítimas directas.

Talvez requeira alguma generosidade, alguma abnegação, alguma capacidade de refrear a sensação de urgência, para permitir que o nosso problema deixe de ser o verdadeiro problema, para passar a ser uma peça, em conjunto com tantas outras, num problema maior que a todos abarca. Certo é que não só muitas vítimas não se empenham na extracção dos pontos em comum com outros tipos de agressão, como por vezes reagem mal perante quem o tenta fazer.

Haverá certamente muitas outras razões para a inexistência do que considero ser a indispensável união na luta contra as agressões a nível global.

Nos últimos anos tenho assistido à proliferação de tipos de luta muito específicos. Não tenho dúvidas de que é bom e importante que a luta de um homossexual pelo reconhecimento dos seus direitos, da sua plena e igual legitimidade, seja feita em conjunto com outras pessoas na mesma condição e em todas as circunstâncias. Ainda bem que assim é. No entanto, e insistindo na necessidade de expor o funcionamento da máquina global de opressão, não posso deixar de ficar preocupado perante a falta de união que me parece existir entre as lutas das mulheres, dos pobres, dos desalojados desta ou daquela cidade, dos emigrantes deste ou daquele país, dos deficientes de um ou outro tipo, dos doentes de uma ou outra maleita, dos idosos, dos jovens, dos estudantes, dos estagiários, dos bolseiros, dos desempregados desta ou daquela empresa, dos transexuais, dos que se opõem à construção da incineradora na sua aldeia, dos que se preocupam com o fecho das urgências dos hospitais, ou das escolas, dos que são contra as portagens, dos que reivindicam horários de trabalho menores, etc., etc., etc., etc., etc., etc., etc., etc.

Por vezes, ao contrário de ver as pessoas empenhadas nessa união, vejo pessoas empenhadas precisamente no oposto, isto é, na clara demarcação entre as lutas, na identificação das suas diferenças, de modo a que não haja confusões, e cada macaco no seu galho.

Para quem é vítima de uma dessas lutas, poderá haver o tal sentimento de pertença, de identificação ou até de posse. Para quem não é vítima, poderá haver uma sensação de conhecimento mais profundo, e talvez por aí uma melhor posição para a luta, ou uma maior capacidade empática para com as vítimas. Certamente existirão outras razões que eu não consigo identificar para este comportamento de atomização das lutas e, por vezes, de desconforto ou mesmo de ataque a quem tenta destruir essa atomização, salientando os aspectos comuns com outras lutas em vez de realçar as particularidades de cada uma.

Regresso à minha analogia com os bancos alimentares contra a fome. A fome existe. Cada caso é um caso. São necessárias medidas urgentes para atacar cada um dos casos individuais. Isso é um ponto assente. Mas também devia ser um ponto assente que é necessário compreender o mecanismo que produz gente com fome, por mais complexo que seja, para o poder atacar sistemicamente. Só assim podemos almejar a um futuro sem fome. Não há outro modo!

Reconheço, portanto, a existência de cada problema concreto e a importância da acção para a sua eliminação. Mas, se compreendo que "primeiro vieram buscar os palestinianos" é um grito de alerta urgente e de extrema importância para todos nós, palestinianos e não palestinianos, então não posso deixar de expressar a minha vontade de que o empenho nas lutas individuais seja acompanhado de um empenho de igual grandeza na luta global.

Que luta é essa? Pois vamos tratar de identificá-la.

 

 

No caminho com Maiakovski

de Eduardo Alves da Costa

 

Assim como a criança

humildemente afaga

a imagem do herói,

assim me aproximo de ti, Maiakovski.

Não importa o que me possa acontecer

por andar ombro a ombro

com um poeta soviético.

Lendo teus versos,

aprendi a ter coragem.

Tu sabes,

conheces melhor do que eu

a velha história.

 

Na primeira noite eles se aproximam

e roubam uma flor

do nosso jardim.

E não dizemos nada.

Na Segunda noite, já não se escondem:

pisam as flores,

matam nosso cão,

e não dizemos nada.

Até que um dia,

o mais frágil deles

entra sozinho em nossa casa,

rouba-nos a luz, e,

conhecendo nosso medo,

arranca-nos a voz da garganta.

E já não podemos dizer nada.

 

Nos dias que correm

a ninguém é dado

repousar a cabeça

alheia ao terror.

Os humildes baixam a cerviz;

e nós, que não temos pacto algum

com os senhores do mundo,

por temor nos calamos.

No silêncio de meu quarto

a ousadia me afogueia as faces

e eu fantasio um levante;

mas amanhã,

diante do juiz,

talvez meus lábios

calem a verdade

como um foco de germes

capaz de me destruir.

 

Olho ao redor

e o que vejo

e acabo por repetir

são mentiras.

Mal sabe a criança dizer mãe

e a propaganda lhe destrói a consciência.

A mim, quase me arrastam

pela gola do paletó

à porta do templo

e me pedem que aguarde

até que a Democracia

se digne a aparecer no balcão.

Mas eu sei,

porque não estou amedrontado

a ponto de cegar, que ela tem uma espada

a lhe espetar as costelas

e o riso que nos mostra

é uma tênue cortina

lançada sobre os arsenais.

 

Vamos ao campo

e não os vemos ao nosso lado,

no plantio.

Mas ao tempo da colheita

lá estão

e acabam por nos roubar

até o último grão de trigo.

Dizem-nos que de nós emana o poder

mas sempre o temos contra nós.

Dizem-nos que é preciso

defender nossos lares

mas se nos rebelamos contra a opressão

é sobre nós que marcham os soldados.

 

E por temor eu me calo,

por temor aceito a condição

de falso democrata

e rotulo meus gestos

com a palavra liberdade,

procurando, num sorriso,

esconder minha dor

diante de meus superiores.

Mas dentro de mim,

com a potência de um milhão de vozes,

o coração grita - MENTIRA!

quarta-feira, 28 de maio de 2025

Cinquenta mil euros num dia...

 


Foi o que ganhou há pouco tempo um dermatologista no hospital de Santa Maria, por um dia de trabalho. Chama-se Miguel Alpalhão e tem 33 anos de idade. O que é que isto tem de errado?

O que tem de errado é a nossa inveja, certo?

O Miguel estudou medicina e, aparentemente, os seus colegas consideram-no brilhante. É, se assim quisermos, um Cristiano Ronaldo da remoção de sinais da pele. O Cristiano Ronaldo ganha milhões, e não parece haver muita gente preocupada ou importunada com isso!

O que é que há de errado em uma pessoa estudar precisamente aquela área que sabe que terá um elevado retorno financeiro, ser muito bom nisso e conseguir ser bem remunerado?

Podemos estender esta questão ao mercado, seja de que produto, serviço ou ser humano for: se a procura é alta e a oferta é baixa, o preço sobe.

Se todos aceitam economias de mercado e Cristianos Ronaldos, como explicar este sururu em torno do dermatologista bem pago?

Bom... comecemos por fazer uma comparação. Em Portugal, o salário mediano é de cerca de mil euros por mês. Isso não chega a cinquenta euros por dia. Como o Dr. Miguel ganhou 51 mil euros, isso dá para lá de 1100 vezes mais do que alguém que recebe um salário mediano. Ou seja, em apenas um dia de trabalho, este dermatologista ganhou tanto como um trabalhador mediano em 3 anos de trabalho.

Será justo?

Ah, mas o Dr. Miguel é dermatologista! Não podemos comparar isso com o trabalho de um lixeiro!

Ai não? Porque não?...

O Dr. Miguel é inteligente, saudável, e teve condições para se formar em medicina. Será que o trabalhador mal pago não queria também formar-se em medicina com as mesmas condições do Miguel? Terá o Dr. Miguel trabalhado mais para o conseguir?... Eu suspeito que ainda o Dr. Miguel estudava geografia no banco da escola secundária e o lixeiro já andava a trabalhar para ajudar nas contas lá da sua casa.

Não seria de dotar este país de condições para que todas as pessoas pudessem ser Cristianos Ronaldos das suas actividades?

Imaginemos então que o Dr. Miguel se apresenta ao trabalho no hospital de Santa Maria, e ao seu lado tem centenas de outros Dr. Miguel a apresentarem-se para o mesmo. Quando chega ao seu gabinete, o Dr. Miguel atende outro Dr. Miguel, que é tão sabedor de dermatologia como o primeiro. Nestas circunstâncias, seria plausível o Dr. Miguel receber cinquenta e um mil euros num dia de trabalho? Talvez não.

Mas não há muitos como ele. E portanto devemos premiar... o quê? O que é que estamos verdadeiramente a premiar? A sorte?... Não me venham novamente com a treta de que estamos a premiar o esforço, o empenho, a coragem, a dedicação, porque há milhões de pessoas que têm tudo isso em doses iguais ou superiores e nunca receberam um salário acima do mediano.

Mas vamos ainda um passito mais além. Prémios? Porquê? Porque é que precisamos de premiar em dinheiro o que quer que seja? Na escola, o melhor aluno é premiado com diplomas, cerimónias, honrarias e dinheiro. Porquê? Ser o melhor aluno não será já prémio suficiente? Não estará o prémio a ajudar os bons alunos a serem ainda melhores e os piores a serem ainda piores? Ou será que o prémio tem de existir para servir de incentivo a todos os alunos para se esforçarem mais? Mas, se assim for, já sabemos que isso nunca resulta, porque os alunos, por mais estúpidos que sejam, são suficientemente inteligentes para perceber à partida quem é que tem e quem é que não tem condições para chegar ao prémio. À partida. Porque é, novamente, uma questão de condições iniciais. De resto, é gente assim que queremos formar? Gente cuja motivação para o empenho é o prémio? Isso devia dar muito que pensar numa sociedade que ao mesmo tempo afirma recorrentemente a sua crise de valores.

O Miguel não teve dúvidas: escolheu dermatologia porque queria ter uma vida boa. E, pelos vistos, está a consegui-la, pelo menos do ponto de vista do dinheiro.

Eu arrisco-me a dizer que quem acha que uma pessoa ganhar 1100 vezes mais do que outra não tem nada de errado tem um problema muito sério no seu juízo moral. E isto, infelizmente, é o que acontece com imensas pessoas. É uma falta de noção de justiça que me repugna profundamente. E, por associação, uma falta de solidariedade e de empatia. E, finalmente, e ainda por associação, uma falta de humanidade. Arrisco-me, portanto, a dizer que quem é assim, é menos humano.

E isso começará logo pelo Dr. Miguel. Ele faz o que faz com plena consciência. Não foi uma sorte grande que lhe saiu uma vez quando ele menos contava. Ele trabalhou dez sábados no hospital de Santa Maria e fez 400 mil euros. E enquanto houver oportunidade de continuar a facturar, não tenho dúvidas que o Dr. Miguel lá estará, na linha da frente, a bem... da sua carteira.

A moralidade de tantos nós parece que não vai além do "se não fosse eu era outro!".

Mas é bem pior do que isso.

O Cristiano Ronaldo recebe milhões. Mas quem lhe paga os milhões são as empresas privadas, que gerem o seu dinheiro como bem entendem. E essas empresas obtêm o seu rendimento de aplicações financeiras, negócios privados paralelos, direitos de transmissão televisiva ou outros, quotas e bilhetes comprados pelos adeptos, etc. As pessoas que contribuem para estes fluxos não o fazem por obrigação. Fazem-no por prazer, por diversão, para se distraírem das chatices quotidianas, para virtualmente matarem o adversário e exorcizarem os seus males espirituais. Tudo bem... mesmo que possa estar tudo mal.

O Dr. Miguel Alpalhão recebe dinheiro que resulta dos impostos que são sobretudo contribuições dos cidadãos. Estas contribuições são obrigatórias. São impostos. De cada vez que alguém vai comprar arroz ao supermercado, deixa lá um quanto em IVA. Não precisa de ser rico. Basta ter fome. Ou estar a contribuir para o banco alimentar da fome de outro. Bem ou mal, foi o que todos nós, cidadãos eleitores, decidimos fazer: criar leis que nos obrigam a pagar estes impostos de forma a podermos ter serviços de qualidade que são prestados a todos com alguma equidade e em áreas consideradas fundamentais, como os transportes, a justiça, a educação ou a saúde.

Eu, quando quis uma consulta de dermatologia, mandaram-me passear. O que, aliás, é o que acontece no sistema de saúde se eu tiver um problema intestinal crónico, se tiver artrose, se tiver problemas de audição, de visão, de dentes... Eu quero acreditar que o sistema nacional de saúde (SNS) estará lá se eu partir uma perna ou se precisar de fazer hemodiálise... Nem sei se acredito bem!... Mas também já entendi que tudo o que não seja uma questão de vida ou de morte, tudo o que seja uma questão de ir levando, com mais ou menos sofrimento, isso eles deixam-me tratar por minha conta.

Acabei por ir ao privado, como todos nós fazemos, não é? E, no privado, o dermatologista enviou-me para o público para fazer uma biópsia, cujos resultados foram discutidos de volta ao seu gabinete privado. Conhecem este tipo de procedimento, não conhecem?

O SNS tem muitos problemas. Cada vez mais. Um deles é que não presta serviços de saúde adequados à população. Em vez disso, presta serviços de doença, que só recebe quem está mesmo, mesmo, mesmo a precisar, e cobra taxas moderadoras para os prevaricadores não irem divertir-se a entupir os hospitais com casos menores que podiam simplesmente sofrer em silêncio nas suas casas. As cáries dentárias não são identificadas precocemente em consultas de rotina. Os problemas de articulações não são previstos a partir de exames anuais. Enfim, vai-se a correr atrás do dano, depois de ele ter aparecido, de a pessoa ter sofrido o suficiente para ser considerado um caso atendível no SNS, e depois de o caso ter piorado dois anos, na maturação da fila de espera para a consulta ou para a intervenção cirúrgica.

Nem toda a gente que trabalha no SNS tem o olho para o negócio do Dr. Miguel. Há muita gente que lá trabalha que se distrai com coisas um pouco mais humanas e está verdadeiramente interessada em melhorar a qualidade de vida dos outros. Há gente solidária, empática, verdadeiramente empenhada não apenas em resolver os casos de doença, mas sobretudo em garantir saúde às pessoas. Há gente que está disposta a dar o corpo ao manifesto, às vezes sem receber mais por isso.

Infelizmente, as pessoas assim não são suficientes para as necessidades da população portuguesa. Infelizmente também, os edifícios, o equipamento, os consumíveis, não são suficientes para que a população tenha serviços de saúde adequados e de qualidade, que sejam muito mais preventivos e não apenas curativos.

Infelizmente, há gente que nos explica, desde há muito tempo, que isso é assim no SNS, como é assim nas estradas, nos tribunais, nas escolas e em tantas outras instituições públicas, porque não há dinheiro.

Infelizmente, a população acreditou nesses senhores que nos dizem, desde há décadas, que não há dinheiro.

Não há dinheiro, mas o Cristiano Ronaldo nunca deixou de receber milhões. Os bancos foram resgatados. Os gestores das instituições públicas que são tratadas como empresas continuam a receber milhões. A tipa que vai ou veio da TAP recebeu a sua indemnização de quinhentos mil. Os juros da dívida dão milhares de milhões de euros por ano aos credores que estão sentados algures a beber um suco e a pensar na próxima consulta com o Dr. Miguel. Até aquelas duas receberam medicamentos de um milhão de euros, milhão que foi direitinho para as empresas farmacêuticas, as mesmas que lucraram muitos mais milhões na altura da Covid. Ao mesmo tempo, e tudo sem dinheiro, surgiram colégios privados por todo o lado, e hospitais como cogumelos. Hospitais frequentados certamente por doutores Miguel, quer enquanto prestadores de serviço, quer enquanto clientes.

Há dinheiro. Muito. Sempre houve. Há dinheiro no Estado e há muito mais dinheiro nos bolsos de alguns que têm muito mais que o Dr. Miguel.

Mas, sob o pretexto de não haver dinheiro, os serviços públicos foram esquartejados, minguados, fundidos, encerrados, racionalizados... enfim, foram desprovidos dos meios materiais ou humanos que lhes permitiam prestar um bom serviço.

Eis então que chegaram as gestões ao estilo privado para resolver os problemas das instituições públicas!

Todos sabemos que o problema das instituições públicas não é a falta de investimento, mas sim o facto de serem públicas. Sendo públicas, por inerência, são frequentadas por trabalhadores preguiçosos, e isso inclui também os seus directores. Ou seja, se é público, é mal gerido! E é por isso mesmo que uma gestão ao estilo privado resolve tudo, porque também é do conhecimento geral, sem precisar de qualquer demonstração, que o que é privado é melhor gerido do que o público. Por isso, contratam-se gestores que ganham rios de dinheiro, o tal dinheiro que nos tentam dizer que não há, para criarem mecanismos de gestão dos preguiçosos. Não se investe mais. Não se dotam as instituições de mais recursos. Não se dá melhores condições para que todos possam ter mais gosto e vontade de participar activamente na resolução dos problemas. Em vez disso, ah solução milagrosa, tiram-se da gaveta prémios de produtividade e mecanismos burocráticos para poder medir essa produtividade. Ou seja, espreme-se muito mais o mesmo pessoal, com os mesmos equipamentos, dentro dos mesmos edifícios. O que, claro está, deixa todos os trabalhadores das instituições públicas, e também dos hospitais, muito satisfeitos e com vontade de colaborarem num team building pró-activo com fringe benefits.

O mau serviço público, não surpreendentemente, mantém-se. As filas nos hospitais, não surpreendentemente, mantêm-se.

Mas eis que os super gestores, muito bem pagos porque mais ninguém consegue fazer o seu trabalho, e isso é que é justo, se lembram de contratar super médicos! Mas ah, bolas!, a porcaria da burocracia e das regras dos sistemas públicos, que são sempre um empecilho... Aquelas regras que dizem, por exemplo, que tem de haver um concurso público quando se compra alguma coisa... que tentam dar um pouco de transparência à forma como se gasta o dinheiro que é de todos nós... essas malditas regras!... também é por isso que o privado é muito mais eficiente!, porque podemos gastar o dinheiro à vontade, sem dar satisfações a ninguém, o que torna tudo muito mais rápido!...

Os super gestores inventam então novas regras. Horários super com pagamentos super para atrair os super médicos.

No processo, os centros de saúde que só têm dermatologista às segundas e quintas, e que podiam ter dermatologista todos os dias, terão de esperar por melhores dias, porque cinquenta mil por dia são só para o Dr. Miguel, porque ele é mil vezes melhor que os outros, e só não atende mil vezes mais pacientes por dia porque não quer, ou porque os equipamentos do público são antiquados.

No final, os hospitais, e tudo o que é público, serão mal geridos, consciente e propositadamente, até que todos tenhamos percebido e interiorizado que não podemos contar com eles para nada. Entretanto, mesmo do outro lado da rua, ou até dentro do mesmo recinto do hospital, as luzes de neon da nova clínica privada esperam por nós, oferecendo-nos o último grito da moda em cuidados com que você nunca sonhou.

O que está mal com um médico que ganha num só dia o que tantos outros ganham em 3 anos de trabalho, é não apenas a estatura moral desse médico, mas a estatura moral de toda a população, a forma como quem tem o poder político gere deliberadamente as coisas para o abismo, e a forma como a maioria dos eleitores, contra os seus próprios interesses, em vez de perceberem isso e sancionarem, aplaudem e dão ainda mais força para que o problema continue. Claro!, dirão eles: afinal o problema não é a má gestão do público e o dinheiro que é mal gasto como acabamos de verificar?... Acabe-se então com o que é público! Acabe-se com a mama do Estado!

Enfim, são demasiadas coisas erradas numa só.

(ver notícia sobre este caso aqui)

quinta-feira, 15 de maio de 2025

Caríssimo eleitor...

 

 

Estou cansadíssimo de ti.
E tenho pena.
De ti
e de mim
que levo com as tuas decisões
mesmo quando decides não fazer nada
e ficas sentadinho no sofá.
Disseram-te que a democracia era boa
e tu acreditaste
sem sequer saber do que se tratava.
Explicaram-te então que era esta coisa
de meter cruzes em papelinhos
e papelinhos em caixinhas
escolhendo os teus representantes
uma vez de vez em quando.
E logo tu, que a maior parte das vezes
nem levantas o cu do sofá
para fazer essa tão preciosa cruzinha.
Nunca paraste para pensar
que a palavra democracia
devia significar o poder do povo.
Mas quê? Não precisavam
de te fazer acreditar
que a democracia é isto, não é?
Afinal sabes muito bem que aqui,
no mundo ocidental e evoluído,
o povo faz cruzinhas,
enquanto noutros locais e noutros tempos
não se lhe dava esse tão grande poder.
Sabes isso,
mas esqueceste-te de constatar
que a rotunda perto da tua casa
não foste tu que a escolheste,
que ninguém te perguntou
se querias ou não uma moeda única
ou um banco central europeu
ou se querias racionalizar as escolas
fechar as urgências
abrir vistos gold
fechar centrais termoeléctricas
substituir ferrovias por autoestradas...
Esqueceste-te de contabilizar
o pouco poder que tiveste
quando o oligarquinha lá do sítio
de perfume e ferrari,
deslocalizou para a China,
ele mesmo que agora se queixa
que os chineses estão a invadir o mundo.
Esqueceste-te que quando entravas na fábrica
todo o teu tempo e a tua energia
deixavam de ser a tua propriedade
e que nesse espaço tu não decidias nada
antes acatavas todas as ordens que te chegavam.
Esqueceste-te de verificar que o teu filho
funcionário público
tem um poder tão pequenino como era o teu
na escolha das tarefas que irá desempenhar.
Tu não decidiste os produtos
que haviam de estar expostos
nos lineares do supermercado
nem sobre a existência de supermercados
nem sobre a sua localização.
Não decidiste sobre os cursos superiores
que as faculdades haviam de oferecer
ao teu filho.
Não decidiste sobre o equipamento
que iria equipar o hospital central
lá longe, na capital do teu distrito
e para onde te levam
se tiveres sorte
quando tens algum azar,
em ambulâncias que fogem totalmente
ao teu controlo.
Muito menos sobre os profissionais
de saúde, de educação,
de construção civil
ou de seja o que for.
Tu, a bem se dizer,
nunca decidiste nada.
Achas que escolheste o melhor pacote de bolachas
e não reparaste que escolheste o que eles puseram lá
para que tu o escolhesses.
Acreditas que tu é que sabes o que é melhor para ti
mas não fazes ideia do que andas na vida a fazer.
A democracia onde vives
não tem lá nada de democrático.
Tu não decides nada.
Com um laivo de consciência disso,
ou simplesmente contente com o estado das coisas,
deixas-te ficar no sofá
quando chega o momento da cruzinha.
Ou então vais lá recalcar
a inutilidade do teu voto útil
porque afinal já se sabe
que ou ganha este, ou ganha aquele,
e entre este e aquele
tu nem sequer metes a cruzinha no que mais gostas.
Anos e anos nisto, não é?
Décadas!...
Até que concluis:
são todos iguais!
E então, quando sentes que já não podes mais,
votas com o coração nas mãos,
com raiva,
que afinal precisamos todos é de murros na mesa,
e uma limpeza geral,
e os estrangeiros para a terra deles,
e... e...
e é isso,
porque afinal não sabes mais o que hás-de defender
senão uma limpeza geral
para tirar de lá os que lá estão
e pôr lá outros ainda piores
sabendo que entre uns e outros
as coisas que verdadeiramente importam
continuarão a ser decididas em gabinetes
bem longe das cruzinhas e dos discursos de ódio
sem que tu alguma vez acordes para isso.

Caríssimo eleitor,
dizem por aí que tu não és burro,
que és inteligente, que sabes bem o que queres
e percebes quando és enganado.
Mas eu não te vejo mais inteligente
do que qualquer um de nós.
E, quando olho para o mundo,
não posso deixar de ver em tudo a marca
não apenas da tua mão
mas também dessa tua sabedoria
dessa tua inteligência.
Vejo mares e rios a secarem
florestas a desaparecerem
espécies inteiras a morrerem
vejo-nos cada vez mais plastificados
e dependentes de tecnologias
cujo funcionamento nos escapa por completo
vejo ricos cada vez mais ricos
a venderem armas
que servem para os pobres de um país
matarem os pobres de outro país
às ordens do testa-de-ferro do momento
sim, aqueles líderes carismáticos
que se tornaram celebridades
à conta das redes sociais
e da comédia
a comédia que agora praticam a outro nível.
E tu que sim, que este lado é que tem razão,
sempre pronto a papar a propaganda
que te enfiarem.
Vejo um mundo sem sentido
com vidas sem sentido
preenchidas pela novidade gourmet
que um dia, se trabalhares bem,
também poderás comprar.
E quando olho para este mundo a arder,
não encontro nele nenhum deus
nem inevitabilidade
e, mesmo por isso, também não encontro
sinal algum de inteligência.

Caríssimo eleitor,
Estás a ver aquele político que foi rejeitado por ti
e que depois de uma morte prematura
ressuscitou ao fim do terceiro ano
saiu da sua gruta
e tu logo correste para o receber em festa?
Faz-te lembrar alguém?
Olha, de repente lembro-me
de um antigo presidente da república...
mas há tantos outros!
Isso é inteligência, ou sinal de uma memória de caracol?
Tu, caríssimo eleitor, já farto de política
acreditaste que os partidos eram a fonte dos problemas
e acreditaste quando te disseram
que era melhor acreditar e votar em pessoas
do que em partidos.
Foi assim que a tua inteligência levou à rua,
só naquela cidade,
quinhentos mil como tu
a reivindicarem melhores condições de vida,
exibindo orgulhosamente o facto
de não terem nada a ver com qualquer partido
com qualquer organização
orgulhosos de serem tão desorganizados quanto possível!
Lembras-te do resultado?
Não houve resultado. Ficou tudo na mesma.
Mas tu, que não acreditavas na inércia do navio e da sua carga,
acreditavas mais facilmente na volatilidade de qualquer aspirante
a comandante...
acreditaste no Manuel Sérgio
e deste-lhe 96 mil votos
para ele se poder sentar
na Assembleia da República
e durante quatro anos não fazer nada.
Acreditaste no Marinho Pinto
e deste-lhe 235 mil votos
para ele, acto contínuo,
demitir-se do partido
mantendo o cargo de deputado
e não fazer nada por ti
e pouco tempo depois desistir da política
afirmando nunca ter tido ilusões
sobre a possibilidade de mudar alguma coisa no país.
Acreditaste no Fernando Nobre
e deste-lhe 594 mil votos
a ele, que era muito independente,
e não se revia nos partidos existentes
e logo de seguida encabeçou a lista de Lisboa
no mesmo partido do Passos Coelho.
Acreditaste no Ramalho Eanes,
e com mais de um milhão de votos
apoiaste um partido
que ninguém sabia bem o que era
nem os seus dirigentes
e assim se dissolveu meia dúzia de anos depois.
Mas a tua fé nunca esmoreceu!
Simplesmente saltitou e saltita
porque há sempre um novo messias
a surgir da bruma
e a bater com a mão na mesa
e a prometer limpezas gerais.
Ah, se ao menos Salazar fosse vivo, não é?
Esse, podia ter muitos defeitos,
mas pelo menos era honesto
e tinha as contas certinhas.
Era honesto, dizia que te ia por na linha,
a toque de caixa,
e foi mesmo assim.
Deixava-te sem cuidados médicos,
enquanto canalizava o dinheiro
para o capital industrial e financeiro,
mas não tinha dívidas.
Ah, que saudades tu tens, não é?
E não são saudades da inteligência
é mesmo da tua opressão
tão aconchegante, tão ordeira!

Caríssimo eleitor,
enquanto tu ias acreditando
no messias do momento,
havia, sempre houve, e continua a haver,
partidos que lutaram pelos teus interesses.
O teu vasto conhecimento não alcança,
mas eu ajudo-te:
vai ver a actividade parlamentar
dos partidos que lá estão
esses que consideras serem todos iguais.
Vai lá!
Está na Internet! É fixe!
Podes escolher o ano à tua vontade.
Verás que havia, sempre houve, e continua a haver
partidos que apresentam propostas
para melhorar o sistema de saúde
não o negócio da saúde, mas a tua saúde,
para melhorar as tuas condições de trabalho
para melhorar as tuas condições de vida.
Mas tu nunca acreditaste nesses partidos, não é?
Pois...
Deram-te propaganda a comer
disseram-te que ideologia é mau
e tu aceitaste
disseram-te que socialismo, comunismo, anarquismo,
ou qualquer outra forma de conceber uma sociedade
onde tu tens mais poder
onde tu, finalmente, possas decidir alguma coisa
acerca da tua vida
disseram-te que isso tudo tem um "ismo" em comum
é ideologia e é mau
e tu aceitaste.
Papaste a propaganda toda,
mesmo a que te dizia que propaganda é mau.
Vives imerso numa ideologia fortíssima
e não dás por isso
porque acreditas que a ideologia está lá fora
nos partidos que defendem os teus interesses
e nos quais tu nunca, deus te livre!, irás votar!
Acreditas que política é a mesma coisa que partidos
e não concebes outras formas de organizar
os assuntos comuns, que a todos nós dizem respeito.
Aliás, estás farto de saber
que não há outra forma de os organizar!
Sabes, bem sabido, que a única maneira é o mercado,
que a União Europeia é boa e existe para te defender,
que a moeda única é boa e permite-te pagar coisas na Alemanha,
que a bandeira nacional é para respeitar
tanto como a tua importantíssima identidade
e para hastear quando joga a selecção.
Sabes muito bem que a vida se resume
à educação que permite obter um emprego
ao emprego que permite obter dinheiro
ao dinheiro que permite obter um carro,
uma casa, viagens ao estrangeiro, roupas, comida e computadores,
e com isso um companheiro ou companheira
e algum sexo
e já está.
É a vida!
Acreditas que o objectivo da vida é o prazer
e o prazer vem do consumo
do qual tu és o melhor juiz.
A isto tudo tu não chamas ideologia
porque não chamas nada
porque simplesmente nem tens de pensar nisso
tal como não pensas no ar que te entra nos pulmões
a cada inspiração.
É simplesmente uma coisa que é assim.
E depois queixas-te:
são sempre os mesmos!
É tudo a mesma coisa!
Pois...
eles deixaram-te escolher os teus representantes
precisamente no momento em que se asseguraram
que tu não irias escolher nada
que não fosse sempre a mesma coisa.
E os partidos que defendem os teus interesses
ainda assim
lá estão
à espera do milagre que seria
se tu finalmente soubesses olhar para ti
e para o mundo
e soubesses escolher o que é melhor para ti.
Mas quê?
Tu já tens a certeza que sabes o que é melhor para ti.
Sabes, por exemplo, que não vale a pena ler
nem estudar
para poder ter opinião fundamentada sobre qualquer assunto.
O fundamento dá-to o comentador do telejornal,
o opinion-maker, o influencer e a tua malta
lá no café da esquina.
Vai-se a ver, e de repente
a tua opinião é tão boa
como as dos senhores engravatados da tv!

Depois, quando um daqueles partidos
que defende os teus interesses
sugere taxar os ricos
tu insurges-te!
E a gravata do comentador da tv
sai-te pela boca em forma de língua
a dizer que isso não pode ser!
Pões-te do lado dos ricos
porque não reparas que não és rico
e nunca serás
porque não entendes
que ganhar três mil euros por mês
é muito mais do que tu ganhas
mas não é nada ao lado do que ganha um rico
e porque, mesmo que o entendas,
preferes proteger os de cima
a ver se sobra algum para ti
ou até com a esperança de um dia
poderes lá chegar também.
Sim, porque para ti
é preferível lixar a vida toda de todos nós
do que fechar a porta a uma oportunidade
que só surge uma vez a cada cem mil vidas!

Caríssimo eleitor,
eu sei que tu te revês
nos cartazes que anunciam
que é preciso acabar com a mama do Estado.
Vêm-te imediatamente à cabeça
os preguiçosos, os pobres, os emigrantes, as etnias e minorias
toda essa escumalha de gente que não quer trabalhar
e que se aproveita do fruto daqueles que trabalham.
Malditos!, pensas tu.
O teu filho, recém-licenciado,
calha de ficar desempregado,
e embarca num programa de apoio estatal.
Para ti, ele não está na mama.
Depois és tu, que calha de adoeceres,
és tratado no hospital público
e passas a receber um subsídio de doença.
Mas tu não és escumalha, claro!
Escumalha são os beneficiários do Rendimento Social de Inserção,
esses que vivem felizes à nossa conta,
com duzentos euros por mês,
que imediatamente gastam na mercearia da esquina.
E enquanto te entreténs
com o dano que acreditas que os mais desfavorecidos
causam na tua vida
os mais ricos riem-se de ti
e de mim
e de todos nós.
Já ouviste falar de benefícios fiscais?
Sabes quanto valem, comparados com a totalidade do RSI?
Sabes quem é que mais beneficia com isso?
Pois...
Já ouviste falar de apoios às empresas?
Lembras-te de uma história chamada resgate dos bancos?
Sabes o que é o Plano de Recuperação e Resiliência?
Sabes de onde vem o dinheiro para isso tudo?
E sabes quanto é?
Achas que vem tudo do trabalhinho
de gente honesta como tu, não é?
Isso... continua sossegado...

Tu, caríssimo eleitor,
acreditas, porque te deram a acreditar,
numa coisa chamada meritocracia.
Descansa, não é uma ideologia!
Aliás, tu bem sabes que as ideologias terminam em "ismo"
e nunca ouviste ninguém dizer meritocracismo.
Funciona assim:
se te esforçares muito na escola conseguirás boas notas,
se tiveres boas notas conseguirás um bom emprego,
se fores leal ao teu chefe e muito trabalhador, conseguirás ser promovido,
se fores promovido e trabalhares muito, terás o que mereces,
isto é, um carro, uma casa e dinheiro para férias.
E se toda gente fosse assim,
este seria um mundo melhor!
Pois... acreditas nisso, não é?...
Mas nunca reparaste na quantidade de gente à tua volta
que sempre trabalhou afincadamente a vida toda
e nunca saiu da cepa torta?
Nunca reparaste que os cargos mais altos de direcção de tudo o que dá dinheiro
(e não da associação recreativa da tua terra)
não estão acessíveis a nós, por mais que nos esforcemos?
Nunca percebeste a falácia desse pensamento que te deram,
fazendo-te acreditar que todos podemos ser directores?
Nunca sentiste a injustiça de um sistema que funciona assim
quando nós não temos todos
as mesmas capacidades ou possibilidades?
Será distracção, caríssimo eleitor,
ou será simplesmente uma mistura
da propaganda alheia
com o teu próprio egoísmo?

Caríssimo eleitor,
disseram-te que não há dinheiro
e tu acreditaste.
Vês todos os serviços públicos
num processo de degradação constante
desde há décadas,
e compreendes.
Não há dinheiro!
Não há dinheiro, mas não é só isso!
É que é público!
E tu bem sabes, conforme sempre ouves dizer,
que aquilo que é público é mal gerido.
Sim, sim, tu bem sabes, porque tu até conheces o caso
de corrupção lá do departamento onde trabalhava o teu cunhado.
Pois...
tu conheces alguns casos de má gestão de coisas públicas
porque essas coisas são públicas,
e a má gestão vê-se.
Do que se passa no privado, tu não vês nada,
porque ninguém te dá contas disso, porque não tem de dar.
Mas isso tu não precisas de ver, porque tu sabes, não é?
Aliás, tal como sabes da má gestão das coisas públicas,
mesmo quando não se trata de má gestão,
mas simplesmente de falta de financiamento.
Tu, caríssimo eleitor,
elegeste as instituições e o funcionalismo público como um inimigo,
e elegeste o privado como um objectivo a alcançar.
Calha, ao mesmo tempo, de o público ser, por definição,
o único sector de actividade onde tu, eu, e todos nós,
podemos ter algum voto na matéria,
enquanto o sector privado é, por definição,
aquele onde tu nunca poderás meter a mão.
Pois é... tu queixas-te muito do funcionamento
daquilo que está ao teu alcance,
e idolatras o funcionamento daquilo que não está no teu poder,
e que existe para te sugar até ao tutano.
Duvidas do que digo?... Chama-se mais-valia.
Podia-te sugerir uma leitura... mas tu não precisas disso.
De resto, quando és tu mesmo funcionário público,
e vês a coisa a correr mal à tua volta,
fazes o quê?
Proteges o teu posto de trabalho,
ficando muito caladinho,
pois claro!
Enfim, vês o público a definhar,
as estradas com buracos,
os hospitais sem pessoal nem equipamento adequado,
as escolas a fechar,
e compreendes,
porque é tudo mal gerido,
e porque não há dinheiro.
Ao mesmo tempo,
surgem hospitais e escolas privados
como cogumelos por todo o lado
e tu compreendes
porque não há dinheiro no público
mas há no privado
e nós não queremos taxar os ricos
a ver se um dia lá chegamos.
Não há dinheiro para a ambulância,
mas gastam-se milhares de milhões de euros
no pagamento de um serviço
que não é serviço nenhum
porque é apenas agiotagem
mas que tem o nome de serviço da dívida.
Não há dinheiro para o comboio,
mas gastam-se milhares de milhões de euros
em armamento
e, com sorte,
pode ser que um dia seja o teu próprio filho
a ir combater os infiéis!

Caríssimo eleitor,
se vives numa grande cidade,
é provável que gastes horas em engarrafamentos
apenas para conseguires sobreviver.
Mas não defendes os transportes colectivos ou públicos.
Defendes o teu automóvel,
com unhas e dentes,
e provas isso mesmo
com o novo perfume acabadinho de comprar
e pendurar na saída da chauffage.
Bem sabes que te custa caro...
e até sabes que é mau para o ambiente
mas tu és um cidadão do século XXI
e também sabes que os carros eléctricos
e as baterias de lítio
vão resolver esses problemas.
Não há dinheiro para nada
mas há apoios para esses penduricalhos "verdes"
e tu, que és um bom trabalhador,
e tens algumas poupanças para conseguir lá chegar,
não vais desperdiçar a oportunidade!
Isso vai resolver uma data de problemas
inclusivamente o problema do ambiente
porque os carros vão deixar de deitar fumo.
Tu sabes isso,
caríssimo eleitor,
mesmo que para ti "ambiente" seja uma palavra oca,
mesmo que nunca tenhas ido à procura
da biodiversidade
e que para ti a defesa dos animais
se resuma à protecção de cães e gatos
sem sequer ser preciso pensar de onde vem a sua comida
ou para onde vão os seus dejectos.

És isto tudo,
e muito mais,
caríssimo eleitor.
És a fonte das minhas maiores mágoas,
mas também das minhas maiores alegrias.
Só é pena
que não saibas fazer mais
do que lixar a tua própria vida
lixando a minha por tabela.

Dizem-me que tu estás zangado com a política
e que é preciso ouvir-te.
Mas eu passo a vida toda a ouvir-te
e bem gostava de te poder desligar
porque a dose de parvoíce é difícil de suportar.
Tu é que precisas de parar um pouco,
reflectir, respirar,
e talvez ouvir quem verdadeiramente saiba do que fala.
Mas como é que tu vais saber quem é esse,
se também tu passaste a vida a ouvir os outros,
e o que mais sentes é engano?
Não sei como te posso abordar,
e suspeito que este texto não será para ti
porque, se não fosse por mais nada,
tu não lês
e muito menos se tiver mais de três linhas
e ainda menos se não te fizer logo sentir bem.
Se te disser que acredito
que sabes o que é melhor para ti,
estarei a mentir-te.
Se te disser que acredito
que não sabes o que é melhor para ti,
zangar-te-ás comigo.
E, portanto, cá estamos... não é?
No próximo domingo será dia de cruzinhas
tu ficarás sentado no sofá
votarás nos do costume
ou zangado votarás no novo messias
que te irá dar cabo da vida ainda mais que os outros.
E eu irei levar com o peso
da tua soberana decisão
tu, que não decides nada,
e que quando te apresentam propostas
que são do teu interesse,
foges delas como o demónio da cruz,
porque te disseram para fazer assim.

Pfffffff....

quarta-feira, 19 de março de 2025

Portugal: mais do mesmo...


Ora então vamos lá tentar identificar o que está mal com este cartaz.

Claro que já reparou no "portuguezes" e talvez se tenha questionado sobre a veracidade dos números apresentados: será que em 2024 uma em cada quatro pessoas que habitam este país é "não portugueza"?

A estatística será o menor dos problemas. Afinal, há estatísticas para todos os gostos. E temos de considerar que os números do cartaz até podem estar correctos para uma determinada região do nosso país que não é explicitada. Ou então, se não forem correctos hoje, podem vir a ser correctos amanhã.

Qual é o problema então?

Como em muitas outras circunstâncias, o maior problema está nos pressupostos que são implicitamente assumidos. Fazer afirmações com pressupostos implícitos é, só por si, uma estratégia retórica agressiva e que todos devíamos aprender a identificar e rejeitar. É o mesmo que começar uma intervenção dizendo "como todos sabemos...", quando o que vem na sequência não é, efectivamente, do conhecimento de todos, porque nem sequer é verdadeiro. Só que os pressupostos implícitos são ainda piores, porque mais dissimulados. Se não estivermos atentos à sua existência, poderemos ser conduzidos a conclusões que nos deixam perplexos sem sermos sequer capazes de identificar onde está o erro.

Vamos lá chegando, então. Comecemos pela frase de baixo: estamos a ser substituídos na nossa própria terra. Estamos? Quem? Nós? Que nós é este? Os portugueses? Então os portugueses estão a ser substituídos na sua própria terra? Estaremos nós a assumir que a terra dos portugueses é Portugal?...

Há muitas pessoas que podemos considerar portuguesas, que vivem em Portugal, e que não têm um só palmo de terra que possam chamar sua. Diremos, à mesma, que Portugal é a sua terra, assim em jeito metafórico, como quem diz que é naquela terra que se fala português e está o estádio do Benfica, tudo coisas com as quais o nosso português de gema se identifica, que o tornam muitíssimo português, mas relativamente às quais ele nunca teve o poder de modificar uma palha que fosse. Entretanto, o empresário, ou deveremos chamá-lo empreendedor?, que vem de lá dos Estados Unidos da América, ou da Alemanha, ou da França, ou de Inglaterra, compra uma enorme quantidade de terra em Portugal, constrói uma vedação a toda a volta, e povoa aquilo com a sua família, praticando nesse território costumes exclusivamente exóticos. Será a esses estrangeiros que este cartaz alude?

Recentremo-nos: esta terra é mesmo nossa? De que forma? E os "não portuguezes" que para cá vêm, eles retiram-nos a propriedade da terra?

Será que o cartaz se refere aos processos de gentrificação dos centros das cidades mais turísticas, onde os mais ricos, portugueses ou não, compram tudo aos mais pobres e os expulsam para as periferias das cidades? Não deve ser, digo eu, porque nesse processo o que vale é o dinheiro, e não a nacionalidade.

Enfim, eu devo ser só um ressabiado, que fala deste modo apenas porque nunca sentiu que esta terra fosse sua, assim a modos de decidir, por exemplo, que seriam eliminados os candeeiros que à noite iluminam mais o céu do que o chão, que as autoestradas dariam lugar a ferrovias, que todas as moradias e hotéis construídos naquilo que em tempos era paisagem natural protegida na península de Tróia seriam demolidas, que só se construiriam mais centros comerciais e estádios de futebol depois de todas as necessidades educativas e de saúde do país estarem supridas... Há gente que decide estas coisas todas, nesta terra que supostamente é nossa. Eu não sou. Será você?

Mas, afinal, o que é isso de ser português? Será, como disse o Marcelo, uma habilidade especial para comer caldo verde?... Quem gosta deste tipo de classificações, e de zelar pela pureza da raça, necessita quase sempre de símbolos que possam congregar a população em seu redor. Muitos recuam até ao rei Afonso, o que bateu na mãe. Mas porquê parar aí? Podemos recuar até Viriato. Mas podemos recuar bastante mais, até aos construtores das antas que hoje são demolidas por escavadoras no Alentejo, dando lugar a plantações robóticas de oliveiras periodicamente chocalhadas para untar as bocas e os corpos de toda a gente que tenha dinheiro para comprar, "portuguezes" ou "não portuguezes". Um pouco antes desses, este território a que hoje chamamos Portugal continental, estaria deserto de seres humanos. Até onde iremos nós querer recuar à procura da nossa identidade comum? Até à Lucy, essa hominídea que passeava nas savanas africanas e que foi avó de todos quantos hoje habitam a face deste planeta?

Se pusermos o relógio outra vez a andar para a frente, mesmo que não se saiba ao certo para que lado isso é, iremos assistir ao povoamento da Península Ibérica pelos primeiros colonos. E depois pelos segundos, e depois pelos terceiros, e pelos quartos e quintos e sextos e tantos e tantos!... Misturaram-se, guerrearam-se, fundiram-se, evoluíram. E sempre foi assim ao longo de toda a história.

Quem são hoje os portugueses? Temo-los de todos os tipos, cores de pele, contas bancárias, profissões, cortes de cabelo, idades, gostos musicais, índices de massa corporal, proficiência na cozinha e no uso do telemóvel, sentido de humor, posicionamento político ou capacidade de parar para conversar imediatamente após passar qualquer porta de saída seja do que for. Em jargão estatístico, podemos afirmar que os portugueses, enquanto grupo, têm uma grande variabilidade intra-específica. Por outro lado, se determinarmos aquilo que deve ser um português médio, e o compararmos com aquilo que deve ser um espanhol médio ou um francês médio, poderemos calcular a variabilidade interespecífica. E esta, muito provavelmente, será menor do que aquela. Ou seja, se compararmos um português médio com um espanhol médio vamos muito provavelmente encontrar menos diferenças do que entre dois portugueses escolhidos à sorte. Neste caso, talvez a diferença mais evidente seja a língua que se fala. De resto, aposto que ambos apresentarão um grau de dependência elevado do seu telemóvel e um grau preocupante de ignorância acerca do modo como o capitalismo molda a sua vida.

E assim chegamos finalmente a um dos pressupostos implícitos deste cartaz: o de que existe uma diferença fundamental, evidente, marcante, entre nós, os portugueses, e os outros, os não portugueses.

Esse pressuposto é falso. Essa diferença fundamental não existe. Os portugueses não se definem pela língua que falam. Desse modo todos os falantes de português seriam portugueses, incluindo os brasileiros, os angolanos, os norte-americanos que frequentaram uma escola de português, etc. Os portugueses também não se definem pelo modo como comem caldo verde. Desse modo, muitos turistas seriam portugueses, assim como muitos estrangeiros que nas suas terras gostam de comidas exóticas, ou para quem é normal comer água quente com batatas, couve e chouriço.

Os portugueses definem-se, para efeitos estatísticos e da construção de cartazes como este, pela nacionalidade que detêm e que lhes é conferida pela autoridade oficial (vénias muitíssimo reverenciais) de Portugal. O que, para todos os efeitos, equivale a dizer que os maiorais cá desta terra, que aparentemente é nossa, se juntam para definir regras sobre quem irá ser galardoado com o selo de português. Essas regras serão algo do tipo: saber dizer "muito obrigado" no final de cada frase, fazer o pino, ter familiares que já têm o selo, ser especialmente habilitado para todo o tipo de trabalhos de que os portugueses precisem mas não gostem. Claro está que todo este processo de aferição da "portuguezidade" pode ser sumariamente ultrapassado caso o candidato apresente uma conta bancária recheada ou compre uma moradia de pelo menos 500 mil euros.

Estaremos, nós, "portuguezes" e "portuguezas", a ser substituídos na nossa própria terra? O que significa isso de ser substituído? Será que por cada "não portuguêz" que entra há um "portuguêz" que sai, expulso pelo primeiro?...

E o que acontecerá aos nossos compatriotas que decidem ir viver para outros países?...

Mas avancemos em direcção ao pressuposto mais fundamental e mais profundamente errado que subjaz à elaboração de propaganda como esta. Imaginemos, nesse sentido, que os portugueses são, de facto uma classe de seres humanos à parte, identificável à distância por inúmeras características distintivas, a começar pelo cheiro a rosas, passando pela belíssima genética e terminando na eloquência do caldo verde. Imaginemos, consequentemente, que os tais outros, os "não portuguezes", fazem parte doutra classe. Se essa fosse a realidade, o pressuposto implícito neste cartaz é que cada classe deveria ser isolada da outra. Porquê?

Qual seria a situação ideal então? Seria um gráfico onde se pudesse apresentar, orgulhosamente, uma rodela preenchida a 100% com "portuguezes"? Bom, para isso há uma solução muito simples: dar um visto gold a cada não português, naturalizando-o nesse mesmo instante por via administrativa! Ah... mas não pode ser?... Pois claro, temos de manter a pureza da raça, conforme a hipótese avançada no parágrafo anterior... claro que sim... muito obrigado!

Que ideia é esta que pretende que a situação ideal para qualquer comunidade relativamente homogénea de pessoas (que não é o caso dos portugueses) é isolar-se das demais pessoas? Serão os "outros" assim tão maus?... Porquê?...

O pressuposto implícito mais hediondo deste cartaz é precisamente esse: a crença de que o outro, seja ele quem for, é alguém mau, que vem para nos fazer mal. O outro faz-nos mal porque é criminoso, delinquente, pobre, preguiçoso, porque se quer aproveitar das coisas boas que temos, usufruindo delas sem legitimidade ou até roubando-as. O outro rouba-nos o emprego, estraga a nossa língua... até nos enche a atmosfera com cheiro de especiarias!... o que estaria muito bem se elas tivessem cá chegado em caravelas portuguesas e fossem servidas em restaurantes gourmet...

Imagine-se só se a beleza física dos e das jovens "não portuguezas" começa a aliciar os nossos?...

Todos os estudos e todas as estatísticas nos provam, uma e outra vez, que esses medos não têm fundamento. De resto, se alguém passar à nossa frente no concurso para um trabalho, ou nos atrasar na estrada, ou roubar a nossa casa... e ainda mais se alguém nos roubar à grande em negociatas patrocinadas por um qualquer governo, a probabilidade é que o autor do problema seja um português.

Não deviam ser sequer necessários quaisquer estudos. Deveria bastar sermos humanos e reconhecermos essa mesma humanidade em qualquer outra pessoa. Todos os seres humanos desejam ser felizes. E embora existam comportamentos desviantes, que geralmente são distribuídos de forma igualitária por todas as populações, a grande maioria dos seres humanos não deseja o mal dos outros, pelo contrário, deseja tratar os outros bem. A nossa espécie evoluiu em comunidades cooperantes e não num ambiente fictício que tantas vezes nos tentam vender como natural, em que é cada um por si, todos contra todos e salve-se quem puder, assim ao jeito do capitalismo.

Os portugueses de gema afirmam-se, na sua maioria, como católicos. Ora nessa, como em muitas outras religiões, apregoa-se o amor ao próximo.

É muito triste verificar que este tipo de propaganda parte do medo e do ódio ao outro. Ao menos que sejamos capazes de o identificar com toda a clareza, que sejamos capazes de limpar esse medo e esse ódio do nosso modo de pensar, de sentir e de agir. Se alguém considera que Portugal precisa de uma limpeza, talvez fosse bom começar por aí, cá por dentro.

quinta-feira, 6 de março de 2025

Às voltas na sala oval...

Zelensky e Trump falaram numa sala que se chama oval, e que aparentemente o é. Disseram umas coisas um ao outro. Os países a cujos governos presidem continuam de pé, tal como esses governos. As políticas neoliberais continuam em força. As fábricas continuam a produzir armamento e ele continua a ser utilizado em todas as guerras que alimentam esta economia de parábolas projectadas. Mas as pessoas à minha volta ficaram muito agitadas.

Foi revelador.

Quando duas pessoas têm posições distintas, mas é necessária uma tomada de posição conjunta, ou as duas pessoas negoceiam, ou rompem a sua relação, ou uma se impõe à outra. Há muitas situações em que uma das partes não pode simplesmente romper a sua relação com a outra e seguir a sua vida. Se um país poluir muito a atmosfera, o outro não pode decidir mudar-se para onde a atmosfera seja mais limpa, porque o ar circula independentemente das fronteiras. Se dois países vizinhos se guerreiam, um deles não pode simplesmente abandonar a guerra e ir passear para outro sítio. Por outro lado, para que uma das partes imponha a sua vontade é necessário que exista um correspondente desequilíbrio de poder. Ora, quando há negociações, tipicamente as partes distribuem entre si os ganhos ou perdas potenciais em função dos respectivos poderes.

Em síntese, há muitas situações em que a negociação é o único caminho possível, e os resultados das negociações tipicamente espelham as diferenças de poder entre as partes em conflito.

Negociar implica caminhar no sentido do nosso oponente. No reino da diplomacia são bem-vindas a flexibilidade, a abertura de espírito, a empatia. O excesso de franqueza não é bem-vindo: afirmar algo só porque do nosso ponto de vista é verdadeiro, sem preocupação com as consequências negativas que terá no outro e na nossa relação com ele é no mínimo pouco cuidadoso, mas pode também ser tremendamente estúpido.

Não precisamos de pensar nas negociações entre países em guerra. Podemos pensar na negociação diária entre duas pessoas que têm uma relação amorosa. Onde queres ir jantar, querida? Ao Rei-dos-Chocos? Mas tu só gostas de comida que não presta?...

Aquilo que é verdadeiro para nós pode não o ser para o outro, e a afirmação da nossa verdade pode resultar apenas em consequências negativas para os outros e para nós próprios.

Uma coisa que é marcadamente nefasta em qualquer tentativa de negociação (e talvez da própria interpretação de toda a realidade) é a demonização da outra parte. Infelizmente, essa demonização é-nos conveniente. Uma visão maniqueísta do mundo é, bem vistas as coisas, uma lufada de ar fresco! Onde antes víamos tudo em tons de cinzento, encontrando aspectos positivos e negativos em tudo e todos, a classificação de tudo e todos como simplesmente bom ou mau torna tudo muito mais fácil. Assim que podemos classificar um inimigo como mau, como demoníaco, facilmente podemos colocar tudo o que ele faz ou pensa ou sente, tudo o que ele representa e inspira, na mesma classe.

Certamente os soldados que estão nas frentes de batalha agradecem uma visão demoníaca do mundo, com contrastes bem marcados. Imaginem como seria se de cada vez que o soldado tivesse de premir o gatilho pensasse no outro como um ser humano, que também tem medos, que também erra, mas que também sente arrependimento, e compaixão, e também tem uma família e gosta de ver os pássaros na natureza. Como seria?

Desse ponto de vista, a guerra e a negociação podem considerar-se em extremos opostos: na guerra convém identificar o inimigo e tratá-lo como um demónio a abater; na negociação convém entender os sentimentos e os pensamentos do oponente e identificar de que forma são diferentes ou semelhantes aos nossos.

Há décadas eu convenci-me que as guerras estavam em vias de extinção. O meu raciocínio baseava-se no interesse comum que identificava em todos os poderosos: o desejo da obtenção do máximo poder com o mínimo custo. Acreditava eu que o esclarecimento crescente dos povos, para o qual contribuiria não apenas uma maior e melhor instrução formal ou informal, mas também as viagens entre países e o acrescido contacto com outros povos, os iria tornar mais avessos a guerrearem-se entre si. O resultante aumento do custo da guerra iria tornar esta opção preterível, para os poderosos, em favor das guerras económicas, cujas regras (mercados, transferências de capitais, tarifas alfandegárias, etc.) eram crescentemente universais.

O estado actual do mundo atesta o meu engano. Parece-me que sobrestimei o dito esclarecimento dos povos, enquanto subestimei a capacidade destes serem manipulados pelos poderosos. O que se tem passado com as guerras na Ucrânia e na Palestina é profundamente revelador a esse nível. Ao mesmo tempo, parece-me que subestimei a ira e a folia dos ambiciosos cuja ascensão ao poder através dos mercados não corre conforme eles esperariam. Finalmente, confesso que julgava que os poderosos deste mundo não eram tão retrógrados nos seus métodos... a sério que acreditei que eram já mais sofisticados. Mas parece que não.

Seria a sala mesmo oval?... Certamente a conferência de imprensa de Trump e Zelensky tinha dois focos. Uma oval com dois focos é uma elipse. Qualquer que seja o ponto da elipse em que nos encontremos, a soma da distância aos dois focos permanece constante. Por mais voltas que se dê.

Trump falou precisamente como aquilo que eu há décadas imaginava que todos os poderosos do mundo viriam a ser: pessoas sem escrúpulos, apenas interessadas no dinheiro. Vá lá, pronto, faltou-lhe uma pontinha para chegar aí, ao ter insistido várias vezes que a guerra na Ucrânia tinha provocado muitos mortos, que esses mortos eram sobretudo soldados jovens, de ambos os lados, que tinham famílias, e que essas mortes deviam ser evitadas, porque as vidas humanas valem mais do que o dinheiro. Se quiserem acreditar que Trump acredita mesmo nisso, estão à vontade. Ao meu entendimento pareceu-me da sua parte apenas uma ponta de diplomacia.

Tirando isso, o discurso de Trump foi directo ao assunto que, a meu ver, devia ser compreensível a todo o aspirante ao poder no século XXI: negócio sem escrúpulos. Ele falou, com total desprezo pelos problemas ambientais do planeta, na "desprotecção" de zonas protegidas para permitir a mineração, e na exploração, venda e uso de combustíveis fósseis. Ele demonstrou total interesse nos recursos minerais existentes no subsolo ucraniano, com total desprezo pelos efeitos que isso possa ter nas vidas de quem quer que seja, começando pelos próprios ucranianos e norte-americanos. Trump foi verdadeiro, foi directo, e dentro da lógica neoliberal, ou seja, dentro das regras do jogo expressa ou tacitamente aceites por todos os poderosos e todos os governos dos países ditos "ocidentais", foi correcto. Ele falou de negócios. E falou de negócios do ponto de vista de um negociador, isto é, sabendo que existe um bolo para ser comido, e mostrando abertura para repartir esse bolo por todos os intervenientes, sejam eles os oligarcas dos EUA, da Ucrânia, da Rússia, ou de onde for.

Trump foi directo, claro, explícito, ao afirmar essa regra básica que equaciona qualquer negociação em função dos poderes das partes sentadas à mesa.

Imagino a surpresa de Trump e da respectiva comitiva quando Zelensky demonstrou não entender ou não estar interessado nessas regras básicas das economias neoliberais e, independentemente disso, de qualquer negociação. Porque foi isso que aconteceu: Zelensky mostrou reiteradamente não ter interesse em negociar com Putin, afirmando que ele é um mentiroso e não é possível negociar com mentirosos.

Não é necessário que um país seja conquistado por outro, numa guerra à moda antiga, que aparentemente perdura, para que um povo seja subjugado. A Ucrânia está, desde há vários anos, a afundar-se numa subjugação cada vez mais profunda, independentemente de parte do seu território ser conquistado pela Rússia ou não.

Atentemos ao que se tem passado no nosso próprio país. Desde há décadas que insistimos numa subjugação auto-infligida. Cada vez mais deslocámos os centros do poder, ou seja, da nossa própria soberania, para longe, para fora do nosso controlo. Desistimos de qualquer voto a nível de política alfandegária, monetária, cambial, a favor de instituições e directivas estabelecidas algures num gabinete qualquer fora do nosso país. O mesmo com o posicionamento geoestratégico, com a política militar (seja de defesa ou de ataque), com o controlo das fronteiras, com o funcionamento da economia e dos mercados, com os subsídios às pessoas ou às empresas, com a política fiscal. Basicamente, aceitámos a cartilha neoliberal de mão beijada e deixámos que os outros governassem por nós. Ainda não tinha reparado? Então olhe mais atentamente.

Mas a subjugação não se fica por aí. À medida que a concentração do poder a nível mundial foi aumentando, em conjunto com a globalização dos circuitos comerciais e dos fluxos de informação, fomos aprendendo a falar inglês e fomos adoptando os seus termos e os respectivos modos de pensar. Hoje temos dificuldade em substituí-los por termos portugueses. Vemos os mesmos programas de televisão, os mesmos filmes, ouvimos a mesma música, conduzimos os mesmos automóveis, compramos os mesmos chocolates, usamos as mesmas redes sociais, lemos os mesmos livros e as mesmas notícias que tantos outros povos em tantos outros países.

Talvez não sintamos isso como uma subjugação. Talvez até consideremos confortável a sensação de estarmos em casa, onde quer que nos encontremos dentro deste universo "ocidental" ou ocidentalizado. Mas a verdade é que quem tem o poder de determinar tudo isto, o que se faz ou não se faz, se existirá ou não salário mínimo e qual será o seu valor, se o sistema de saúde será público ou privado, se haverá transportes públicos ou só automóveis, se estes consumirão combustíveis fósseis ou baterias de lítio, se vamos ou não aniquilar a Amazónia, se vamos ou não ouvir a Mariah Carey e comprar presentes plastificados no Natal, quem determina isto tudo são os oligarcas do neoliberalismo, gente sem rosto e longo braço armado (socorrendo-me de Manuel da Fonseca), cada vez mais os Musks, os Gates, os Zuckerbergs.

Papámos isso tudo. Não só não foi preciso vir de lá um exército, como nós até acreditamos que o fizemos por vontade própria, em pleno exercício da nossa liberdade de escolha!

Trump diz a Zelensky: meu amigo, temos aqui a perspectiva de um negócio que será muito bom para ambas as partes. Nós temos petróleo, vocês têm terras raras (os elementos químicos que ficaram conhecidos como terrasraras não são terras, e também não são raros, à excepção do lantânio). Vamos trocar. Zelensky responde: e o Putin? Trump tenta apaziguar: também tenho negócios com Putin. Há um bolo comum, Putin ficará com uma parte, eu com outra e tu com outra. Zelensky insiste: e o Putin?

Qual será, terão perguntado Trump e os seus assessores a eles mesmos, e perguntamos nós agora, qual será a parte da negociação que Zelensky não estava a entender?

As pessoas que me rodeiam, as mesmas que ficaram muito agitadas com estas conversas focais e elípticas entre Zelensky e Trump, caem às vezes na tremendamente apetecível tentação de simplificar a realidade, separando os bons dos maus. Nesse modus operandi é usualmente importante definir-se "quem é que começou". É assim uma coisa ao estilo da escola primária: ó senhora professora, foi ele que começou. Ao que o outro, se quiser brincar também, terá de responder: não, não... tu é que começaste. Na guerra da Ucrânia há os simplistas, que dizem que isso começou com a invasão russa em 2022 e há os que se socorrem da história para explicar a origem dos povos há milénios atrás. Na guerra da Palestina é o mesmo: rios de tinta e de baba enraivecida têm fluído de tantas bocas e canetas acerca da origem do conflito, cada um alegando que a sua origem é mais originária e original que a origem alheia.

Discutir a origem histórica das coisas talvez seja importante. Mas mais importante, parece-me, e sobretudo em contextos de guerra, será discutir a criação presente de uma realidade desejável, começando pela paz.

Assim, e por uma vez que seja, deixemo-nos de indagar quem iniciou, ou porquê, a guerra na Ucrânia. Perguntemo-nos, alternativamente, o que poderiam ter feito as partes envolvidas para evitar a guerra ou para a terminar, depois de ela já ter começado.

Aos olhos de todos nós parece ser claro o que Putin deveria ter feito para evitar a guerra: simplesmente deveria não ter invadido a Ucrânia, seja isso uma operação militar muito, pouco ou nada especial. E isso independentemente de ter ou não razões válidas para o fazer. Sejamos um pouco mais simples, para variar: se Putin quisesse evitar a guerra, não teria invadido a Ucrânia. Ponto assente. Mas, e os outros? O que é que Zelensky poderia ter feito se quisesse mesmo evitar a guerra? O que é que a União Europeia poderia ter feito se quisesse mesmo evitar a guerra? O que é que os EUA poderiam ter feito se quisessem mesmo evitar a guerra?

Se ainda há, como certamente haverá, quem acredite que a resposta a estas questões é "nada", esses deveriam reconsiderar, sobretudo depois de todos termos ouvido as claras palavras de Trump, afirmando que se ele estivesse no poder em 2022 a guerra não teria sido iniciada. Teremos nós razões para duvidar destas palavras de Trump? Que poder teria o presidente dos EUA para contribuir para o início ou não de uma guerra noutro país?

E, se nos permitirmos finalmente abandonar os pensamentos simplistas, que poder teriam os outros actores, todos eles, para impedir o início daquela guerra?

Não me parece que Zelensky tenha feito tanto para impedir a guerra como fez para a perpetuar. E se isso pode ser controverso para alguns, aquilo que se passou na elipse da Casa Branca foi, novamente, muito esclarecedor: quando confrontado com a necessidade de negociar uma solução pacífica, Zelensky insiste e insiste e insiste em mais armas e mais armas e mais armas.

Isso não é heróico. É criminoso. E, nesse aspecto ao menos, ele não é diferente dos outros artistas todos desta tragédia.

Essa foi a atitude de Zelensky desde o início da guerra: um apelo constante à ajuda militar e a rejeição sistemática de qualquer possibilidade de negociação, sempre justificada com a obra diabólica do diabolizado oponente Putin. Ai, ai, que os russos malvados vêm aí!...

O que é que motivou e continua  a motivar Zelensky nessa cruzada insana contra os infiéis?

Responder-me-ão que ele luta pela defesa do seu povo e da integridade do respectivo território. Mas fazer isso com apelo às armas contra um inimigo muito mais poderoso, sabendo que daí inevitavelmente irão resultar muitas mortes e muitos estragos materiais, não me parece que seja uma opção de quem está no seu perfeito juízo.

Imaginemos, como esclarecedor exercício mental, que o conflito era entre a Guatemala e os EUA, depois destes terem invadido aquele (o que, de uma ou outra forma, já aconteceu) e que a posição do presidente da Guatemala era de sistemática rejeição da negociação e de insistência no apelo às armas para combater os EUA. Seria isso razoável?

Será Zelensky assim tão estúpido que não entenda que o fim desta guerra só poderá acontecer com negociações de paz? Será ele assim tão estúpido que acredite que a Ucrânia e os aliados têm mesmo que derrotar a Rússia? Será ele assim tão estúpido que não veja as oportunidades de negócio que lhe estão a ser lançadas? Será ele assim tão estúpido que não entenda que numa economia neoliberal e global o povo ucraniano será subjugado e evangelizado pelos poderes económicos dos maiores oligarcas, sejam eles russos ou chineses ou norte-americanos ou doutro país qualquer, independentemente do desfecho desta guerra?

Uma coisa é certa: a perspectiva de que Zelensky é muito corajoso e é um herói defensor do seu povo deve muito à realidade dos factos, e deve muito ao esclarecimento ético sobre o que deve ou não ser defendido por todos nós.

Outra coisa que pessoalmente me parece mais acertada, é que Zelensky deve ter uma inteligência comparável à de Trump ou Putin ou qualquer dirigente europeu. Assim, porque é que confrontado com a possibilidade de terminar a guerra no seu país, através de negociações de paz promovidas pelos EUA, Zelensky parece optar pela insistência no apelo a mais armamento?

Na mesma linha: porque é que os dirigentes europeus fazem figura tão triste e igualmente estúpida quando mantêm o discurso do "mais armas para a Ucrânia"? Se eles também não são estúpidos, o que é que os move? Quando as economias da Europa mostram sinais de fragilidade, quando as assimetrias económicas dos povos europeus aumentam, quando aparentemente falta dinheiro para os cuidados básicos como a habitação e a saúde, porque é que os dirigentes europeus insistem no discurso da diabolização da Rússia e na necessidade de gastar mais dinheiro em armas? O que é que os move?

E nós? O que é que nos move? Porque é que os nossos filhos vão estudar um curso em vez do outro? Porque é que depois do curso vão viver para um país ou para outro? Porque é que vivem no centro da cidade ou na periferia? Porque é que nós temos mais ou menos tempo livre e mais ou menos liberdade de o usarmos a nosso gosto? Qual é o peso que o dinheiro tem nas decisões que tomamos ao longo da vida, no nosso crescimento, na nossa saúde, na nossa educação, na nossa cultura, no modo como olhamos para a organização da sociedade?

Se nós somos tão conduzidos pelo dinheiro, porque é que acreditamos que os nossos dirigentes são diferentes de nós nesse respeito?

O discurso de Trump foi muito esclarecedor: ele afirma-se como um homem de negócios que quer fazer dinheiro. E a mim o que me surpreende é que isso possa surpreender alguém! Então não vivemos numa economia neoliberal? Não aprendemos nas escolas sobre o homo economicus? Não defendemos que a procura do lucro privado conduz ao bem comum? Não construímos afincadamente os mercados e erguemos altares à sacrossanta propriedade privada, por mais alarve que seja? Não somos todos nós, orgulhosamente, homens e mulheres de negócios? Não nos gabamos dos bons negócios que fazemos? Não justificamos aos amigos as nossas opções matrimoniais, universitárias, laborais, residenciais com base no dinheiro? Porque é que Trump havia de ser diferente de nós?

Porque é que Zelensky havia de ser diferente de nós? Ou de Trump? Porque é que Von der Leyen havia de ser diferente de Putin? Porque é que António Costa havia de ser diferente de Christine Lagarde?

Não acredito que as pessoas sejam todas iguais. Mas lanço estas perguntas provocatórias numa tentativa de realçar que devemos ter boas razões para acreditarmos que alguém é diferente de nós ou da média dos demais. Na ausência de boas razões, devemos suspender os nossos juízos e, na dúvida, talvez seja melhor considerar que todas as pessoas são meros mortais.

Em vez disso parece que as pessoas sentem uma grande necessidade de concluir apressadamente sobre o carácter heróico ou diabólico dos personagens.

Não consigo evitar, por muito que pareça fútil, traçar um paralelismo com o cinema. Aos meus olhos, uma das características distintivas dos filmes de Hollywood face aos filmes europeus ou de muitos outros países, é precisamente essa coisa de ter personagens heróicos e diabólicos, lutas do bem contra o mal, heróis vingativos, senhores dos anéis, dunes, eteceteras e tais. E isso parece resultar melhor na atracção de público do que filmes onde tudo é mais complexo. Será que a complexidade da vida é cansativa e simplesmente precisamos de momentos catárticos onde a simplicidade ajuda a expiar e expurgar as nossas raivas?

Como é que as pessoas que agora difundem imagens da cara de Zelensky criticam as enormes imagens de Mao Zedong, os cartazes de Ayattolah Khomeini ou Arafat, os quadros de Salazar ou Marcelo Caetano, as t-shirts de Che Guevara, os panfletos de Hitler ou Mussolini, as estátuas de Lenine? Do seu ponto de vista a resposta poderá parecer simples: porque a pessoa X tem qualidades que devem ser admiradas, ao contrário de Y ou Z. Não entenderão elas que o culto da personalidade tem em todos os casos os mesmíssimos fundamentos? Que a argumentação utilizada para defender a pessoa X é da mesma índole da utilizada para defender a pessoa Y?

A agitação que a conversa elíptica da sala oval gerou talvez tenha a ver com isso: a necessidade de escolha de símbolos, de bandeiras, de caras, bradando-as aos quatro ventos numa tentativa de evangelizar o mundo na nossa verdade.

Talvez a realidade seja bem mais prosaica. Temos nos nossos governos homens de negócios tão básicos como quase todos nós. E por mais que nos esforcemos na escolha dos símbolos e das pessoas a idolatrar, e na construção de justificações para essas escolhas, continuamos sem ser capazes de identificar onde está a ferida e de nela pormos o dedo certo, como aquele menino que se diz em tempos ter evitado a inundação dos Países-Baixos.

Por algum motivo rejeito racionalmente a natural propensão para o simbolismo, mesmo que, na prática, os símbolos sejam ubíquos e eu deles nunca possa escapar. Talvez seja um problema auto-imune.

Trump, Zelensky, Putin, Montenegro, Lagarde, todos eles defendem os seus interesses. Já era hora de nós defendermos os nossos!