Ou a importância da união na luta.
Primeiro vieram buscar os palestinianos. Mas eu não me importei. Não sou palestiniano. Porque havia de me importar?
Repito a pergunta: porque me havia de importar com os problemas dos outros, se eu não sou os outros?
Há diversas formas de abordar esta questão. Uma forma pragmática, prática, desenvolta, airosa, pós-moderna e consonante com o nosso estilo de vida é responder simplesmente "quero lá saber". Desde que não me afecte, tudo bem.
Esta perspectiva baseia-se numa moral egoísta em que o bem e o mal são medidos em função do modo como as coisas nos afectam. Uma faca trespassando a minha barriga é mau, trespassando a barriga de um transeunte à minha frente é menos mau, trespassando a barriga de um desconhecido no outro lado do mundo é tão pouco mau, que eu nem quero saber.
Foi assim que durante muitos anos se considerou insignificantemente mau encher a atmosfera de gases de combustão de petróleo e carvão. Foi preciso começarmos a sentir os efeitos disso na pele, efeitos que já se anteviam há muitas décadas, para começarmos, paulatinamente, a considerar isso um bocadito mais mau. E isso foi, convenhamos, muito pouco inteligente, até porque a inércia deste processo em concreto é enorme e já poucos acreditam que seja sequer possível reparar o erro, que mais vale começar já a antecipar as piores consequências.
Se quisermos ser mais inteligentes, teremos de perder algum tempo e dedicar algum esforço a tentar entender melhor o alcance das nossas atitudes e comportamentos, não apenas no aqui e no agora, mas também um pouco mais além no espaço e no tempo.
Como infelizmente não somos iguais (ai que giro que é sermos tão diferentes!) na capacidade ou no empenho para identificar as consequências dos nossos actos em períodos e espaços maiores, os que mais se preocupam, que têm mais ferramentas para ver mais além, que se dedicam mais a isso, carregam a cruz de perceberem em primeira mão a asneira, de a tentarem demonstrar aos demais, de sofrerem represálias à conta disso. Quando alguém não se interessa, o fardo acaba sempre por recair noutros. E quantas vezes esse fardo inclui ansiedade e depressão?
Que a tentativa de perceber as consequências mais afastadas das nossas acções é um sinal de inteligência, talvez não seja muito polémico. Apesar disso, muitos defendem hoje a produção de energia eléctrica a partir da cisão dos átomos em centrais nucleares, inclusivamente como medida para tentar mitigar o problema do recurso aos combustíveis fósseis e consequente aquecimento global, sem quererem entender, ou entendendo, sem o quererem assumir, que isso é apenas uma maneira de trocar um problema gravíssimo por outro problema possivelmente ainda mais grave, mas cujas consequências só se farão sentir mais adiante.
Dentro desta lógica, os mais preocupados auto-incumbem-se de tentar mostrar aos demais porque é importante travarmos o genocídio em Gaza, ou impedirmos qualquer outra guerra, indo directos ao âmago egoísta de cada um: é bom que te preocupes quando vêm buscar os judeus, porque a seguir podes ser tu.
E é uma tristeza que a nossa moral airosa se fique por aqui.
Estudamos história. Quanto mais estudamos, mais aterrados ficamos (ou devemos ficar) com o que o ser humano foi capaz de fazer a outros da mesma espécie (para não falar das outras espécies). Basta estudar um pouquinho, uma coisinha de nada, para deixar de ter qualquer tipo de ilusão acerca da benevolência da nossa espécie, quer enquanto espécie, quer enquanto seres individuais. Bastará também estudar um poucochinho de história para perceber que esta ideia de a Europa ser guardiã de valores fundamentais da liberdade, de democracia e de progresso não passa de uma piada de profundo mau gosto com que tentam, e infelizmente conseguem, moldar o pensamento de tantos de nós.
Mas quê? A nossa preocupação não pode ser assim tão profunda. Que nos interessa a barbárie da história da colonização dos povos, se isso foi no passado? Foi no passado, já passou, já não há nada a fazer, nem vale a pena ficarmos tristes com isso! E bota mais um pouco de fast-food, fast-fashion, fast-furniture, fast-fuck e fast-ethics.
É uma tristeza, digo eu, que gostaria de conviver com uma humanidade convicta de outros valores, como por exemplo a salvaguarda da vida, ontem, hoje, amanhã, aqui, ali, acolá. Mas isso é outro tema, que por ora omito.
Há quase duzentos anos alguns indivíduos disseram e escreveram: proletários de todos os países, uni-vos!
Mas porque é que eu me hei-de preocupar com o despedimento de 222 trabalhadores da fábrica de calçado Gabor, se eu não trabalho lá, nem os conheço, e a fábrica fica em Barcelos quando eu vivo nos Açores?
E lá vêm os poucos ansiosos e deprimidos, porque mais preocupados, porque mais informados, tentar elucidar-me que o mesmo capital que está investido naquela fábrica estará de seguida investido na minha terra, onde irá "oferecer-me" trabalho, e as mesmas regras que esse capital dita lá fora, irá impor também aqui, e se eu não tomar partido já, é muito provável que no futuro venha a ser eu mesmo a sofrer as mesmas represálias. E ainda me explicam mais: que o despedimento doutros trabalhadores poderá ter efeitos na economia local, os quais por sua vez acabam por se repercutir nas economias com ela relacionadas; que os desempregados irão precisar de subsídios que irão ser pagos com os meus impostos; que alguns deles poderão necessitar de outro tipo de apoios do Estado, entre os quais assistência na saúde ou na habitação. Enfim, mostram-me, a custo, e apelando ao meu egoísmo, que quando outros trabalhadores sofrem, isso também coloca em risco a minha posição. Tentam fazer-me ver um pouco mais além, nas consequências das minhas acções e omissões. Em troca, eu digo que esses activistas são uns frustrados, que deviam era ir para as suas casas tratar dos seus assuntos, que a minha vida é só comigo e ninguém tem nada com isso, que eles são propagandistas, que são partidários, que só querem é tachos e mamar.
É preciso um esforço tremendo para chamar para uma luta global todas as pessoas que estão em situações de relativa fragilidade, sobretudo quando há tanto sofrimento, tanta sede de prazer, tantas distracções e fontes de prazer imediato, tanto cansaço e falta de pachorra para abordar assuntos sérios e deprimentes, tanta falta de conhecimento, tantas vezes intencional, ignorância essa que num mundo cada vez mais sofisticado e complexo vai crescendo em termos relativos, mesmo com todos os investimentos colectivos que fazemos na formação dos nossos jovens, a qual visa quase exclusivamente o "mercado de trabalho".
Nesse esforço de apelo à luta, num contexto de moralidade egoísta, é da maior importância a explicitação dos elos que nos unem, que unem isto tudo cá por dentro e à nossa volta.
Isto anda tudo ligado, ouvimos de vez em quando alguém dizer. Pode ser um chavão, mas não é de chave na mão, permitam-me a chalaça, porque não é nada fácil entender o modo como isto anda tudo ligado. Se eu até consigo perceber, enquanto trabalhador assalariado, que o despedimento de 222 trabalhadores assalariados na Gabor pode ter um impacto indirecto na minha vida, mais difícil será perceber o impacto que terá na minha vida as agressões racistas ocorridas em Lisboa, quando eu sou branco e vivo nos Açores, ou a violência doméstica contra mulheres, quando eu sou homem, ou o massacre dos palestinianos quando eu não tenho nada a ver com eles.
Uma forma de esclarecer, de trazer à tona, e à mostra, a estrutura dos problemas, é generalizá-los.
Todas as generalizações são perigosas, incluindo esta. Generalizar é aplicar a um universo mais estendido as conclusões retiradas da observação de apenas uma amostra. É passar dos casos isolados para o conjunto de casos, e daí para o todo. E o risco neste processo deve ser evidente: se eu vejo um homem a agredir uma mulher, talvez não deva precipitar-me para a conclusão de que todos os homens agridem as mulheres.
Apesar do grande risco associado às generalizações, elas são essenciais na aprendizagem, na apreensão da realidade, no avanço do nosso conhecimento. Quando eu escolho uvas, eu aprecio a sua textura, a sua cor, o seu cheiro, o seu tamanho... na tentativa de achar algum padrão que me permita saber de antemão se elas são doces ou não sem ter de as provar. Eu só aprendo a escolher uvas quando consigo identificar um tal padrão e quando repetidas experiências demonstram que esse padrão é efectivamente útil na selecção das uvas doces. Se eu não for capaz de generalizar, nunca poderei aprender a escolher uvas.
O que é que há em comum entre, por exemplo, o genocídio em Gaza e os despedimentos na Gabor? Ou entre isso e a violência doméstica ou o assédio no local de trabalho ou a exploração mineira na Argentina ou o trânsito automóvel ou o aquecimento global ou a venda de armas? Será que existe uma luta comum na base de todos estes problemas? Se sim, será importante colocar essa comunhão em evidência?
Será que em todos esses problemas, e tantos outros de que a humanidade é prolixa, podemos identificar agressores e agredidos, relações de poder, estruturas que incluem instituições, culturas, modos de agir e pensar, ideologias que permitem a perpetuação dessas relações?
No entender de muitos desses preocupados mentais, entre os quais me incluo, a institucionalização da opressão é global e recorre a estratégias e mecanismos globais. E só conhecendo esses mecanismos globais, só apreendendo o modo como isto anda tudo ligado, é que estaremos em condições de decidir o que é melhor em termos de acção local. Por isso é tão importante pôr em cima da mesa, a nu, essas linhas que unem todos estes problemas. Por isso vale a pena o tremendo esforço que é o de compreender o que é que umas coisas têm a ver com as outras, de forma clara, para que todos possamos estar igualmente empenhados numa luta que, bem vistas as coisas, é de todos.
E é neste contexto, com este enquadramento, imbuído deste espírito, que vejo com muita preocupação, e desde há tanto tempo, o empenho que tantos colocam em lutas mais pequenas, mais circunscritas, sem dedicarem o mesmo empenho à união de todos os que, noutros formatos, são vítimas da mesma violência global.
Tomemos o caso dos bancos alimentares contra a fome. É claro que a fome é um problema sério que merece medidas urgentes para a sua mitigação. Também devia ser claro que essas medidas não deviam basear-se na caridade, mas sim em sistemas mais justos decididos pela sociedade como um todo. O que infelizmente parece ser ainda menos claro é que tão ou mais importante do que combater a fome, é reformar ou mesmo destruir o sistema que produz a fome!
Se eu confrontar os voluntários dos bancos alimentares contra a fome com esta questão, tenho poucas dúvidas de que todos estarão de acordo comigo. No entanto, finalizada a campanha, nada é feito até à campanha seguinte. E assim lá vamos seguindo, de campanha em campanha, ao longo dos anos e das décadas. E, qual cereja no topo do bolo, no final de cada uma ainda nos vangloriamos na medida da quantidade de fome que conseguimos adiar.
Cada pessoa que sofre directa ou indirectamente com uma agressão, e que abraça a luta contra esse tipo de agressão, sente-se identificada com isso, com a luta, com a própria agressão, como se isso fosse uma parte de si, como se isso fosse em certa medida sua pertença. Algumas pessoas são capazes de levar este sentimento tão longe, ou tão profundamente, que expulsam da sua luta as pessoas que consideram "não ter nada a ver com isso". Como se uma manifestação pela defesa dos direitos da Palestina fosse pertença apenas de palestinianos e só esses nela pudessem participar. Como se apenas as mulheres pudessem lutar contra a violência sobre as mulheres. Como se apenas os desalojados pudessem reivindicar políticas justas de habitação.
Mas esses serão casos extremos. Na maioria dos casos quem luta por uma causa sentir-se-á melhor se outras pessoas aderirem a essa luta, mesmo que essas pessoas não sofram directamente do respectivo problema.
No entanto, em qualquer caso, a referida sensação de identificação e propriedade sobre o problema pode gerar sentimentos negativos face a discursos que tentam comparar problemas, que relativizam, que generalizam. De algum modo, é como se aquele problema concreto deixasse de ser o centro das atenções, deixasse de ser a coisa mais importante no universo, o que tantas vezes é o caso para as suas vítimas directas.
Talvez requeira alguma generosidade, alguma abnegação, alguma capacidade de refrear a sensação de urgência, para permitir que o nosso problema deixe de ser o verdadeiro problema, para passar a ser uma peça, em conjunto com tantas outras, num problema maior que a todos abarca. Certo é que não só muitas vítimas não se empenham na extracção dos pontos em comum com outros tipos de agressão, como por vezes reagem mal perante quem o tenta fazer.
Haverá certamente muitas outras razões para a inexistência do que considero ser a indispensável união na luta contra as agressões a nível global.
Nos últimos anos tenho assistido à proliferação de tipos de luta muito específicos. Não tenho dúvidas de que é bom e importante que a luta de um homossexual pelo reconhecimento dos seus direitos, da sua plena e igual legitimidade, seja feita em conjunto com outras pessoas na mesma condição e em todas as circunstâncias. Ainda bem que assim é. No entanto, e insistindo na necessidade de expor o funcionamento da máquina global de opressão, não posso deixar de ficar preocupado perante a falta de união que me parece existir entre as lutas das mulheres, dos pobres, dos desalojados desta ou daquela cidade, dos emigrantes deste ou daquele país, dos deficientes de um ou outro tipo, dos doentes de uma ou outra maleita, dos idosos, dos jovens, dos estudantes, dos estagiários, dos bolseiros, dos desempregados desta ou daquela empresa, dos transexuais, dos que se opõem à construção da incineradora na sua aldeia, dos que se preocupam com o fecho das urgências dos hospitais, ou das escolas, dos que são contra as portagens, dos que reivindicam horários de trabalho menores, etc., etc., etc., etc., etc., etc., etc., etc.
Por vezes, ao contrário de ver as pessoas empenhadas nessa união, vejo pessoas empenhadas precisamente no oposto, isto é, na clara demarcação entre as lutas, na identificação das suas diferenças, de modo a que não haja confusões, e cada macaco no seu galho.
Para quem é vítima de uma dessas lutas, poderá haver o tal sentimento de pertença, de identificação ou até de posse. Para quem não é vítima, poderá haver uma sensação de conhecimento mais profundo, e talvez por aí uma melhor posição para a luta, ou uma maior capacidade empática para com as vítimas. Certamente existirão outras razões que eu não consigo identificar para este comportamento de atomização das lutas e, por vezes, de desconforto ou mesmo de ataque a quem tenta destruir essa atomização, salientando os aspectos comuns com outras lutas em vez de realçar as particularidades de cada uma.
Regresso à minha analogia com os bancos alimentares contra a fome. A fome existe. Cada caso é um caso. São necessárias medidas urgentes para atacar cada um dos casos individuais. Isso é um ponto assente. Mas também devia ser um ponto assente que é necessário compreender o mecanismo que produz gente com fome, por mais complexo que seja, para o poder atacar sistemicamente. Só assim podemos almejar a um futuro sem fome. Não há outro modo!
Reconheço, portanto, a existência de cada problema concreto e a importância da acção para a sua eliminação. Mas, se compreendo que "primeiro vieram buscar os palestinianos" é um grito de alerta urgente e de extrema importância para todos nós, palestinianos e não palestinianos, então não posso deixar de expressar a minha vontade de que o empenho nas lutas individuais seja acompanhado de um empenho de igual grandeza na luta global.
Que luta é essa? Pois vamos tratar de identificá-la.
No caminho com Maiakovski
de Eduardo Alves da Costa
Assim como a criança
humildemente afaga
a imagem do herói,
assim me aproximo de ti, Maiakovski.
Não importa o que me possa acontecer
por andar ombro a ombro
com um poeta soviético.
Lendo teus versos,
aprendi a ter coragem.
Tu sabes,
conheces melhor do que eu
a velha história.
Na primeira noite eles se aproximam
e roubam uma flor
do nosso jardim.
E não dizemos nada.
Na Segunda noite, já não se escondem:
pisam as flores,
matam nosso cão,
e não dizemos nada.
Até que um dia,
o mais frágil deles
entra sozinho em nossa casa,
rouba-nos a luz, e,
conhecendo nosso medo,
arranca-nos a voz da garganta.
E já não podemos dizer nada.
Nos dias que correm
a ninguém é dado
repousar a cabeça
alheia ao terror.
Os humildes baixam a cerviz;
e nós, que não temos pacto algum
com os senhores do mundo,
por temor nos calamos.
No silêncio de meu quarto
a ousadia me afogueia as faces
e eu fantasio um levante;
mas amanhã,
diante do juiz,
talvez meus lábios
calem a verdade
como um foco de germes
capaz de me destruir.
Olho ao redor
e o que vejo
e acabo por repetir
são mentiras.
Mal sabe a criança dizer mãe
e a propaganda lhe destrói a consciência.
A mim, quase me arrastam
pela gola do paletó
à porta do templo
e me pedem que aguarde
até que a Democracia
se digne a aparecer no balcão.
Mas eu sei,
porque não estou amedrontado
a ponto de cegar, que ela tem uma espada
a lhe espetar as costelas
e o riso que nos mostra
é uma tênue cortina
lançada sobre os arsenais.
Vamos ao campo
e não os vemos ao nosso lado,
no plantio.
Mas ao tempo da colheita
lá estão
e acabam por nos roubar
até o último grão de trigo.
Dizem-nos que de nós emana o poder
mas sempre o temos contra nós.
Dizem-nos que é preciso
defender nossos lares
mas se nos rebelamos contra a opressão
é sobre nós que marcham os soldados.
E por temor eu me calo,
por temor aceito a condição
de falso democrata
e rotulo meus gestos
com a palavra liberdade,
procurando, num sorriso,
esconder minha dor
diante de meus superiores.
Mas dentro de mim,
com a potência de um milhão de vozes,
o coração grita - MENTIRA!