Sempre me surpreendeu esta ideia que por vezes encontro nos outros de uma greve ser algo de errado. Segundo o seu juízo, a greve é má. Não deviam. Não deviam poder. Não tem jeito nenhum. Depois quem sofre... somos nós! Nós, os consumidores. Nós enquanto consumidores. Não podem fazer greve nos transportes, senão ficamos sem transportes, nem nos hospitais, senão ficamos sem hospitais, nem na padaria, senão ficamos sem pão. Só deviam poder fazer greve nas empresas e serviços públicos que não fazem falta a ninguém, tipo... tipo... sei lá... nesses! Que me interessa a mim que queiram salários mais elevados! Eu também quero ganhar mais e não ando para aí a fazer greves! Como se recusar-me a ir trabalhar alguma vez me pudesse fazer ganhar mais! Eles querem é não fazer nenhum, tal como os sindicatos. Depois faltam ao trabalho às sextas-feiras para poderem fazer um fim-de-semana prolongado! Preguiçosos, é que eles são! Se querem ganhar mais, então que trabalhem mais! Assim é que tem de ser!... Eu bem quero ir trabalhar, mas não tenho camioneta, porque os motoristas estão em greve! Depois quem se lixa sou eu!
Pois, pois é. Quem se lixa és tu. Mas não és só tu. É todo o mexilhão. E tu lixas-te também, porque também és um mexilhão. Ou julgas que não?
Lixas-te porque tens de ir trabalhar, todos os dias, levantar cedo, ir e voltar de camioneta, regressar tarde e cansado, e repetir tudo no dia seguinte, e no seguinte, e no seguinte, até estares pronto para mais nada, por não prestares mais, e olhares para trás e ficares orgulhoso que conseguiste pagar os estudos aos teus filhos, porque assim como assim, mesmo que não consigam emprego, já são doutores!
Talvez seja o mesmo com o tipo que, ao contrário de ti, resolveu fazer greve. Também ele seja um mexilhão. Talvez ele também se lixe, tanto ou mais do que tu. Já reparaste que quando ele decide fazer greve, ele perde o seu salário?
Tu achas que a preguiça é má, porque para ti o que está certo é todos matarem-se a trabalhar como tu, e chamas preguiça a tudo o que os outros fazem e tu também gostarias de fazer, mas não podes, porque tens de estar sempre a trabalhar para conseguir sobreviver. Os preguiçosos dormem até mais tarde, vêem filmes, vão passear. Tu também querias... mas não pode ser! Imaginem só se toda a gente agora fosse passear? Quem é que ia fazer os pães frescos que eu gosto tanto de comer?
O facto de nos últimos cem anos os trabalhadores, pessoas como tu, trabalharem praticamente sempre o mesmo número de horas ao longo do ano, apesar de agora termos computadores e automatização por todo o lado, a ti não te diz nada. Tu vês o luxo passar-te à frente dos olhos, viagens ao espaço e o sei lá que mais, e não és capaz de ligar os pontos. Pelo contrário, quando vais à estação dos correios, que também era tua, mas agora é só de alguns, para quem vai o resultado líquido da sua actividade, compras o último livro que te fala das mentes brilhantes dos bilionários que ditam as regras das economias do nosso planeta. Tu não os criticas, porque gostavas era de poder ser como eles.
Tu não criticas o teu patrão, ou chama-lhe empregador, ou empreendedor, ou o que queiras, porque gostavas era de poder ser como ele, e ainda ficas à espera das migalhas que possam sobrar para ti à conta da obediência, admiração e bajulação sistemática que praticas.
Tu criticas as greves nos outros, mas sabes que beneficias com elas. Se alguma coisa delas resultar a favor dos trabalhadores, será a favor de todos os trabalhadores, ou colaboradores, ou como lhes queiras chamar, tu incluído, mesmo que para isso não tenhas tido de mexer uma palha. Mas se das greves nada resultar, tu terás pelo menos tido mais uma oportunidade de mostrar ao teu chefe quem é que está do seu lado, ao contrário dos outros que estão contra ele, que acima de quererem condições de vida mais dignas para si, querem é tramar os patrões e acima de tudo os pobres dos clientes... Malditos grevistas, que a camioneta nunca mais chega!
Ai se fosses tu a mandar!... Não era?...
Para ti o exercício de liberdade é simples e só um: queres este trabalho com estas condições ou não queres? Se queres, queres. Se não queres, desanda, que há outros que queiram! És livre de escolher! E se fosse contigo, quem fazia greve ia logo para a rua e já estava! Uma limpeza! Que é disso que o país precisa, não é?
Uns têm pouco. Outros têm muito. E outros têm muito mais do que os que já têm muito. Depois é só construir um sistema legal e um aparelho repressivo que assegure que ninguém pode tocar na propriedade alheia. O que tu sabes que está certíssimo, apesar seres um mexilhão que faz parte do grupo dos que não têm pevide, e de racionalmente ser muitíssimo mais saudável e inteligente da tua parte pensar que os que têm imenso deviam partilhar contigo um pouco do que têm. Mas isso não te ocorre. Ocorre-te o medo de perderes as migalhas que já conseguiste. Ocorre-te olhares para o mexilhão que está ao teu lado e assegurares-te que ele nunca consegue nada para si com menos esforço do que tu tiveste para conseguir algo igual.
Nasceste com pouco? Azar! Também eu! Agora faz-te à vida, ou seja: trabalha, trabalha e nunca deixes de trabalhar, e se receberes pouco, trabalha ainda mais e ainda mais.
Encontro por aí quem pense assim.
Talvez um dia organize uma festa para os teus filhos. Nessa festa, farei uma corrida. Quem quiser comer ou beber, terá de participar na corrida, e só os que chegarem nos primeiros lugares irão poder beber ou comer. Depois irei, conforme a minha vontade momentânea, colocar as crianças a distâncias diferentes da meta. Umas crianças serão mais crescidas, outras mais novas, umas serão mais e melhor desenvolvidas e aptas para a corrida do que outras. Eu poderia escolher o ponto de partida de cada uma, e assim a sua distância à meta, de forma a compensar essas diferenças. Mas não. Logo à partida as crianças que eu considerar mais bonitas irei colocá-las mais próximo da meta. Assim como as que sejam filhas dos meus amigos. Enfim, será um exercício bastante arbitrário, em que irei exercer o meu poder conforme me apetecer.
Suspeito que não irás concordar ou gostar nada desta minha festa, e terás muitas críticas a fazer. Suspeito até que te possa ouvir falar de algum conceito de justiça. Suspeito, contudo, que não irás fazer as ligações entre as coisas e irás continuar a julgar os preguiçosos que fazem greve e impedem que isto ande para a frente.
E eu suspeito que nunca irei deixar de me surpreender, mesmo já estando bem fartinho de saber!
Sem comentários:
Enviar um comentário