terça-feira, 25 de fevereiro de 2025

Democracia versus capitalismo...

Um dos intervenientes deste vídeo, disponível no canal do youtube do The Real News Network, faz a certa altura a seguinte intervenção, que transcrevo em tradução minha:

"E então a Inteligência Artificial (IA)? A minha reacção a isso é igual à de questões como "e então os computadores?", "e então os robots?", e então qualquer um dos grandes avanços tecnológicos? Eles foram sempre ferramentas que podiam ser utilizadas de modos diversos. Não ouçam quando alguém vos disser que a IA ou a electricidade ou os robots têm de ser de uma determinada maneira. E vou explicá-lo com um exemplo simples, porque é bom para veicular a mensagem. Suponhamos que existe uma máquina, IA, um robot, qualquer coisa, que torna os trabalhadores duas vezes mais produtivos do que costumavam ser. Então, em vez de 10 produtos por hora, eles agora conseguem produzir 20. O que acontece no capitalismo é o seguinte: o capitalista diz "óptimo!", compra a máquina, despede metade dos seus trabalhadores, porque já não precisa deles, porque a outra metade tem agora o dobro da produtividade. O que é que ele faz com o dinheiro que poupa por ter despedido metade dos trabalhadores? Fica com ele: mais lucro para si próprio! Ele fica todo contente, e é assim que ele usa este avanço tecnológico. Agora deixem-me dar-vos uma alternativa. Suponhamos que existe uma empresa que repara na IA, ou robot, ou o que quer que seja, e diz "uau! é duas vezes mais produtivo! vamos fazer o seguinte: vamos comprar esse equipamento, não vamos despedir ninguém!, vamos reduzir o dia de trabalho de 8 horas para 4 horas. Porquê? Porque agora, com o novo equipamento, 4 horas de trabalho conseguem gerar o mesmo que antigamente se conseguia gerar em 8 horas. Podemos dispensar as outras 4 horas. Em vez de despedir pessoas, diminuimos o dia de trabalho". Agora deixem-me fazer-vos uma pergunta: se vivêssemos numa democracia, onde a maioria mandasse... nós saberíamos qual destas alternativas a maioria quereria adoptar - dêem-me metade do meu dia de trabalho para lazer, porque eu posso ser mais produtivo nas horas restantes. Nós não fazemos o que é democrático. Nós fazemos o que é lucrativo para a minúscula minoria de pessoas que são donos do negócio. Portanto eles despedem metade dos trabalhadores. Por isso é que estamos com medo. Não é a IA que é o problema! É o capitalismo, que usa cada avanço tecnológico para fazer o que eles lá em cima dizem que vão fazer: maximizar lucros. Eu ensinei em escolas de negócios! Isso é o que homens e mulheres de negócios pensam que é o seu trabalho: maximizar o lucro. Mas isso ajuda as pessoas que ganham lucros, não ajuda as pessoas que vivem de salários! Mas estes são a maioria! Um local de trabalho democrático tomaria as decisões que fossem as melhores para a maioria! Nós não vivemos num sistema assim. O capitalismo é o inimigo da democracia, e sempre o foi."


Nos últimos muitos anos, creio que esta foi a forma mais directa, simples, acessível, nua e crua de explicar porque é que o capitalismo não é compatível com a democracia. A razão é muito simples: na democracia, cada pessoa tem um voto, enquanto no capitalismo, cada euro tem um voto.

E uma vez que a maioria dos euros está com uma minoria de pessoas, seria expectável que, racionalmente, as pessoas entendessem que defender o capitalismo é dar um tiro no pé.

Mas não. Como já muitos estudos demonstraram, ser-se mais letrado nem sempre nos ajuda a chegar mais próximo da verdade; muitas vezes ajuda-nos apenas a reforçar o ponto de vista que já tínhamos desde o início, e que muitas vezes corresponde ao ponto de vista do grupo social em que estamos inseridos ou com o qual nos queremos identificar.

Muitas pessoas ainda vivem no tempo do "xê menino, não fala política". Muitas pessoas vivem vidas tão agitadas que não querem pensar em nada complexo, muito menos algo que as faça pôr em causa aquilo que sempre consideraram verdadeiro. Muitas pessoas entendem que pôr em causa o capitalismo é próprio de radicais, anarquistas, comunistas, fanáticos, excêntricos, lunáticos, e que isso é tudo mais ou menos a mesma coisa. Muitas pessoas entendem que aceitar o que existe, sem barafustar, ser honesto e trabalhar muito é o que define uma vida escorreita, pelo que não devemos questionar, muito menos questionar as bases do sistema económico que a todos alimenta (mesmo que muito a poucos e muito pouco a muitos). Enfim, há sempre um motivo para nos identificarmos com pessoas que seguem uma destas ondas, e portanto há sempre um motivo para não querermos pôr em causa o capitalismo, mesmo quando se pode demonstrar, por a mais bê, conforme foi feito em cima, que esse é um sistema económico que beneficia muito poucos à conta de todos os demais que somos nós.

Formei-me em economia, numa das melhores escolas de economia do país, com uma das médias mais elevadas, em 1997. Quando entrei para aquela escola, não sabia ao que ia, nem sequer sabia o que era a economia. Quando me apercebi das ideias e das pessoas que povoavam aquele meio, de como umas geravam outras e outras geravam umas, senti asco. Pensei em desistir. Mas parecia que fazia parte de mim acabar as coisas que começava, pelo que, sentado nas últimas cadeiras das salas de aulas, fui engolindo aquele longo sapo e papagueando o expectável.

A economia, enquanto ramo do saber, não tem culpa nenhuma disso. A meu ver, e à posteriori, nem sequer aquilo era economia. Aquilo era uma produção, selecção e reprodução de teses e teorias adequadas à prossecução dos fins. Não era, de modo algum, uma tentativa de investigação isenta da realidade económica da humanidade. Era assim, e continuou a ser. Também eu cheguei a ensinar disciplinas de economia em instituições do ensino superior. Infelizmente, também eu cumpri os programas pré-definidos pelas comissões muito científicas, que deixam muito pouco espaço para o pensamento. E, nos raros momentos em que pude soltar a minha rebeldia na sala de aula, ela chocou frontalmente com as ideias pré-concebidas já inculcadas nas cabeças dos alunos. Eram alunos. Estavam a aprender aquelas matérias, formalmente, pela primeira vez. Mas já estavam formatados, fechados a novas perspectivas, agarrados à sua visão sobre a realidade. Quem fez esse trabalho? A sociedade. Todos nós. Na nossa vida, na nossa actividade económica, nos nossos grupos, com os quais nos identificamos, os tais, que não querem questionar o capitalismo.

Tenho lutado, muito mais fora das salas de aulas, e com os parcos recursos, energia ou tempos de antena que tenho tido ao longo da vida, para chamar a atenção para a ignorância generalizada sobre o saber económico. Para a ignorância escondida atrás de um véu de sabedoria feita das ideias pré-concebidas que emana da cartilha neoliberal. Como sempre, os que se formam na área são os piores, porque as nossas escolas, ao invés de abrirem a mente, fecham-na, entopem-na de certezas, das certezas que lhes são conveninentes, daquelas que definem o "mainstream" e o "status-quo". Preto no branco, as classes dominantes definem as ideologias dominantes, se quiserem fazer o favor de reparar.

Tenho lutado, e estou a ficar cansado. Por exemplo, tenho tentado alertar para esta contradição intrínseca e inultrapassável entre democracia e capitalismo. Tenho tentado alertar para a importância extrema disso e doutros assuntos relacionados com a economia. Custa-me, por exemplo, ver tantas pessoas tão empenhadas a discutir identidade de género, racismo, xenofobia, aquecimento global, etc., mas ao mesmo tempo a negligenciarem o problema da economia. Cansa-me tentar alertar para o facto de a economia ser um problema transversal que, em grande medida, subjaz a esses outros problemas todos.

É bom, portanto, poder encontrar outras vozes que dão mais força a estes alertas. É melhor ainda quando elas conseguem traduzir de forma simples ideias complexas. Numa sociedade complexa, com um sistema económico complexo, e com pessoas complexas e cansadas do seu quotidiano, é importante conseguir ir directo ao cerne das questões. Creio que este senhor fez isso mesmo com o exemplo que nos deu. E perdoem-me se não sei o nome dele, porque sou também um iconoclasta que não acredita em argumentos de autoridade e acredita que todos devemos julgar as afirmações pelo seu conteúdo e não pela boca que as profere.

Finalmente, recomendo a visualização do vídeo completo, e igualmente os outros vídeos deste The Real News Network. Infelizmente vivemos num tempo em que os canais públicos de difusão contribuem muito mais para a preservação do estado das coisas, via entretenimento, do que para o esclarecimento e a emancipação das pessoas. Esse papel parece ter ficado agora dependente do jornalismo independente, a cujos obreiros tenho sempre de agradecer muito, mas cuja existência é sempre precária.

Sem comentários:

Enviar um comentário