Zelensky e Trump falaram numa sala que se chama oval, e que aparentemente o é. Disseram umas coisas um ao outro. Os países a cujos governos presidem continuam de pé, tal como esses governos. As políticas neoliberais continuam em força. As fábricas continuam a produzir armamento e ele continua a ser utilizado em todas as guerras que alimentam esta economia de parábolas projectadas. Mas as pessoas à minha volta ficaram muito agitadas.
Foi revelador.
Quando duas pessoas têm posições distintas, mas é necessária uma tomada de posição conjunta, ou as duas pessoas negoceiam, ou rompem a sua relação, ou uma se impõe à outra. Há muitas situações em que uma das partes não pode simplesmente romper a sua relação com a outra e seguir a sua vida. Se um país poluir muito a atmosfera, o outro não pode decidir mudar-se para onde a atmosfera seja mais limpa, porque o ar circula independentemente das fronteiras. Se dois países vizinhos se guerreiam, um deles não pode simplesmente abandonar a guerra e ir passear para outro sítio. Por outro lado, para que uma das partes imponha a sua vontade é necessário que exista um correspondente desequilíbrio de poder. Ora, quando há negociações, tipicamente as partes distribuem entre si os ganhos ou perdas potenciais em função dos respectivos poderes.
Em síntese, há muitas situações em que a negociação é o único caminho possível, e os resultados das negociações tipicamente espelham as diferenças de poder entre as partes em conflito.
Negociar implica caminhar no sentido do nosso oponente. No reino da diplomacia são bem-vindas a flexibilidade, a abertura de espírito, a empatia. O excesso de franqueza não é bem-vindo: afirmar algo só porque do nosso ponto de vista é verdadeiro, sem preocupação com as consequências negativas que terá no outro e na nossa relação com ele é no mínimo pouco cuidadoso, mas pode também ser tremendamente estúpido.
Não precisamos de pensar nas negociações entre países em guerra. Podemos pensar na negociação diária entre duas pessoas que têm uma relação amorosa. Onde queres ir jantar, querida? Ao Rei-dos-Chocos? Mas tu só gostas de comida que não presta?...
Aquilo que é verdadeiro para nós pode não o ser para o outro, e a afirmação da nossa verdade pode resultar apenas em consequências negativas para os outros e para nós próprios.
Uma coisa que é marcadamente nefasta em qualquer tentativa de negociação (e talvez da própria interpretação de toda a realidade) é a demonização da outra parte. Infelizmente, essa demonização é-nos conveniente. Uma visão maniqueísta do mundo é, bem vistas as coisas, uma lufada de ar fresco! Onde antes víamos tudo em tons de cinzento, encontrando aspectos positivos e negativos em tudo e todos, a classificação de tudo e todos como simplesmente bom ou mau torna tudo muito mais fácil. Assim que podemos classificar um inimigo como mau, como demoníaco, facilmente podemos colocar tudo o que ele faz ou pensa ou sente, tudo o que ele representa e inspira, na mesma classe.
Certamente os soldados que estão nas frentes de batalha agradecem uma visão demoníaca do mundo, com contrastes bem marcados. Imaginem como seria se de cada vez que o soldado tivesse de premir o gatilho pensasse no outro como um ser humano, que também tem medos, que também erra, mas que também sente arrependimento, e compaixão, e também tem uma família e gosta de ver os pássaros na natureza. Como seria?
Desse ponto de vista, a guerra e a negociação podem considerar-se em extremos opostos: na guerra convém identificar o inimigo e tratá-lo como um demónio a abater; na negociação convém entender os sentimentos e os pensamentos do oponente e identificar de que forma são diferentes ou semelhantes aos nossos.
Há décadas eu convenci-me que as guerras estavam em vias de extinção. O meu raciocínio baseava-se no interesse comum que identificava em todos os poderosos: o desejo da obtenção do máximo poder com o mínimo custo. Acreditava eu que o esclarecimento crescente dos povos, para o qual contribuiria não apenas uma maior e melhor instrução formal ou informal, mas também as viagens entre países e o acrescido contacto com outros povos, os iria tornar mais avessos a guerrearem-se entre si. O resultante aumento do custo da guerra iria tornar esta opção preterível, para os poderosos, em favor das guerras económicas, cujas regras (mercados, transferências de capitais, tarifas alfandegárias, etc.) eram crescentemente universais.
O estado actual do mundo atesta o meu engano. Parece-me que sobrestimei o dito esclarecimento dos povos, enquanto subestimei a capacidade destes serem manipulados pelos poderosos. O que se tem passado com as guerras na Ucrânia e na Palestina é profundamente revelador a esse nível. Ao mesmo tempo, parece-me que subestimei a ira e a folia dos ambiciosos cuja ascensão ao poder através dos mercados não corre conforme eles esperariam. Finalmente, confesso que julgava que os poderosos deste mundo não eram tão retrógrados nos seus métodos... a sério que acreditei que eram já mais sofisticados. Mas parece que não.
Seria a sala mesmo oval?... Certamente a conferência de imprensa de Trump e Zelensky tinha dois focos. Uma oval com dois focos é uma elipse. Qualquer que seja o ponto da elipse em que nos encontremos, a soma da distância aos dois focos permanece constante. Por mais voltas que se dê.
Trump falou precisamente como aquilo que eu há décadas imaginava que todos os poderosos do mundo viriam a ser: pessoas sem escrúpulos, apenas interessadas no dinheiro. Vá lá, pronto, faltou-lhe uma pontinha para chegar aí, ao ter insistido várias vezes que a guerra na Ucrânia tinha provocado muitos mortos, que esses mortos eram sobretudo soldados jovens, de ambos os lados, que tinham famílias, e que essas mortes deviam ser evitadas, porque as vidas humanas valem mais do que o dinheiro. Se quiserem acreditar que Trump acredita mesmo nisso, estão à vontade. Ao meu entendimento pareceu-me da sua parte apenas uma ponta de diplomacia.
Tirando isso, o discurso de Trump foi directo ao assunto que, a meu ver, devia ser compreensível a todo o aspirante ao poder no século XXI: negócio sem escrúpulos. Ele falou, com total desprezo pelos problemas ambientais do planeta, na "desprotecção" de zonas protegidas para permitir a mineração, e na exploração, venda e uso de combustíveis fósseis. Ele demonstrou total interesse nos recursos minerais existentes no subsolo ucraniano, com total desprezo pelos efeitos que isso possa ter nas vidas de quem quer que seja, começando pelos próprios ucranianos e norte-americanos. Trump foi verdadeiro, foi directo, e dentro da lógica neoliberal, ou seja, dentro das regras do jogo expressa ou tacitamente aceites por todos os poderosos e todos os governos dos países ditos "ocidentais", foi correcto. Ele falou de negócios. E falou de negócios do ponto de vista de um negociador, isto é, sabendo que existe um bolo para ser comido, e mostrando abertura para repartir esse bolo por todos os intervenientes, sejam eles os oligarcas dos EUA, da Ucrânia, da Rússia, ou de onde for.
Trump foi directo, claro, explícito, ao afirmar essa regra básica que equaciona qualquer negociação em função dos poderes das partes sentadas à mesa.
Imagino a surpresa de Trump e da respectiva comitiva quando Zelensky demonstrou não entender ou não estar interessado nessas regras básicas das economias neoliberais e, independentemente disso, de qualquer negociação. Porque foi isso que aconteceu: Zelensky mostrou reiteradamente não ter interesse em negociar com Putin, afirmando que ele é um mentiroso e não é possível negociar com mentirosos.
Não é necessário que um país seja conquistado por outro, numa guerra à moda antiga, que aparentemente perdura, para que um povo seja subjugado. A Ucrânia está, desde há vários anos, a afundar-se numa subjugação cada vez mais profunda, independentemente de parte do seu território ser conquistado pela Rússia ou não.
Atentemos ao que se tem passado no nosso próprio país. Desde há décadas que insistimos numa subjugação auto-infligida. Cada vez mais deslocámos os centros do poder, ou seja, da nossa própria soberania, para longe, para fora do nosso controlo. Desistimos de qualquer voto a nível de política alfandegária, monetária, cambial, a favor de instituições e directivas estabelecidas algures num gabinete qualquer fora do nosso país. O mesmo com o posicionamento geoestratégico, com a política militar (seja de defesa ou de ataque), com o controlo das fronteiras, com o funcionamento da economia e dos mercados, com os subsídios às pessoas ou às empresas, com a política fiscal. Basicamente, aceitámos a cartilha neoliberal de mão beijada e deixámos que os outros governassem por nós. Ainda não tinha reparado? Então olhe mais atentamente.
Mas a subjugação não se fica por aí. À medida que a concentração do poder a nível mundial foi aumentando, em conjunto com a globalização dos circuitos comerciais e dos fluxos de informação, fomos aprendendo a falar inglês e fomos adoptando os seus termos e os respectivos modos de pensar. Hoje temos dificuldade em substituí-los por termos portugueses. Vemos os mesmos programas de televisão, os mesmos filmes, ouvimos a mesma música, conduzimos os mesmos automóveis, compramos os mesmos chocolates, usamos as mesmas redes sociais, lemos os mesmos livros e as mesmas notícias que tantos outros povos em tantos outros países.
Talvez não sintamos isso como uma subjugação. Talvez até consideremos confortável a sensação de estarmos em casa, onde quer que nos encontremos dentro deste universo "ocidental" ou ocidentalizado. Mas a verdade é que quem tem o poder de determinar tudo isto, o que se faz ou não se faz, se existirá ou não salário mínimo e qual será o seu valor, se o sistema de saúde será público ou privado, se haverá transportes públicos ou só automóveis, se estes consumirão combustíveis fósseis ou baterias de lítio, se vamos ou não aniquilar a Amazónia, se vamos ou não ouvir a Mariah Carey e comprar presentes plastificados no Natal, quem determina isto tudo são os oligarcas do neoliberalismo, gente sem rosto e longo braço armado (socorrendo-me de Manuel da Fonseca), cada vez mais os Musks, os Gates, os Zuckerbergs.
Papámos isso tudo. Não só não foi preciso vir de lá um exército, como nós até acreditamos que o fizemos por vontade própria, em pleno exercício da nossa liberdade de escolha!
Trump diz a Zelensky: meu amigo, temos aqui a perspectiva de um negócio que será muito bom para ambas as partes. Nós temos petróleo, vocês têm terras raras (os elementos químicos que ficaram conhecidos como terrasraras não são terras, e também não são raros, à excepção do lantânio). Vamos trocar. Zelensky responde: e o Putin? Trump tenta apaziguar: também tenho negócios com Putin. Há um bolo comum, Putin ficará com uma parte, eu com outra e tu com outra. Zelensky insiste: e o Putin?
Qual será, terão perguntado Trump e os seus assessores a eles mesmos, e perguntamos nós agora, qual será a parte da negociação que Zelensky não estava a entender?
As pessoas que me rodeiam, as mesmas que ficaram muito agitadas com estas conversas focais e elípticas entre Zelensky e Trump, caem às vezes na tremendamente apetecível tentação de simplificar a realidade, separando os bons dos maus. Nesse modus operandi é usualmente importante definir-se "quem é que começou". É assim uma coisa ao estilo da escola primária: ó senhora professora, foi ele que começou. Ao que o outro, se quiser brincar também, terá de responder: não, não... tu é que começaste. Na guerra da Ucrânia há os simplistas, que dizem que isso começou com a invasão russa em 2022 e há os que se socorrem da história para explicar a origem dos povos há milénios atrás. Na guerra da Palestina é o mesmo: rios de tinta e de baba enraivecida têm fluído de tantas bocas e canetas acerca da origem do conflito, cada um alegando que a sua origem é mais originária e original que a origem alheia.
Discutir a origem histórica das coisas talvez seja importante. Mas mais importante, parece-me, e sobretudo em contextos de guerra, será discutir a criação presente de uma realidade desejável, começando pela paz.
Assim, e por uma vez que seja, deixemo-nos de indagar quem iniciou, ou porquê, a guerra na Ucrânia. Perguntemo-nos, alternativamente, o que poderiam ter feito as partes envolvidas para evitar a guerra ou para a terminar, depois de ela já ter começado.
Aos olhos de todos nós parece ser claro o que Putin deveria ter feito para evitar a guerra: simplesmente deveria não ter invadido a Ucrânia, seja isso uma operação militar muito, pouco ou nada especial. E isso independentemente de ter ou não razões válidas para o fazer. Sejamos um pouco mais simples, para variar: se Putin quisesse evitar a guerra, não teria invadido a Ucrânia. Ponto assente. Mas, e os outros? O que é que Zelensky poderia ter feito se quisesse mesmo evitar a guerra? O que é que a União Europeia poderia ter feito se quisesse mesmo evitar a guerra? O que é que os EUA poderiam ter feito se quisessem mesmo evitar a guerra?
Se ainda há, como certamente haverá, quem acredite que a resposta a estas questões é "nada", esses deveriam reconsiderar, sobretudo depois de todos termos ouvido as claras palavras de Trump, afirmando que se ele estivesse no poder em 2022 a guerra não teria sido iniciada. Teremos nós razões para duvidar destas palavras de Trump? Que poder teria o presidente dos EUA para contribuir para o início ou não de uma guerra noutro país?
E, se nos permitirmos finalmente abandonar os pensamentos simplistas, que poder teriam os outros actores, todos eles, para impedir o início daquela guerra?
Não me parece que Zelensky tenha feito tanto para impedir a guerra como fez para a perpetuar. E se isso pode ser controverso para alguns, aquilo que se passou na elipse da Casa Branca foi, novamente, muito esclarecedor: quando confrontado com a necessidade de negociar uma solução pacífica, Zelensky insiste e insiste e insiste em mais armas e mais armas e mais armas.
Isso não é heróico. É criminoso. E, nesse aspecto ao menos, ele não é diferente dos outros artistas todos desta tragédia.
Essa foi a atitude de Zelensky desde o início da guerra: um apelo constante à ajuda militar e a rejeição sistemática de qualquer possibilidade de negociação, sempre justificada com a obra diabólica do diabolizado oponente Putin. Ai, ai, que os russos malvados vêm aí!...
O que é que motivou e continua a motivar Zelensky nessa cruzada insana contra os infiéis?
Responder-me-ão que ele luta pela defesa do seu povo e da integridade do respectivo território. Mas fazer isso com apelo às armas contra um inimigo muito mais poderoso, sabendo que daí inevitavelmente irão resultar muitas mortes e muitos estragos materiais, não me parece que seja uma opção de quem está no seu perfeito juízo.
Imaginemos, como esclarecedor exercício mental, que o conflito era entre a Guatemala e os EUA, depois destes terem invadido aquele (o que, de uma ou outra forma, já aconteceu) e que a posição do presidente da Guatemala era de sistemática rejeição da negociação e de insistência no apelo às armas para combater os EUA. Seria isso razoável?
Será Zelensky assim tão estúpido que não entenda que o fim desta guerra só poderá acontecer com negociações de paz? Será ele assim tão estúpido que acredite que a Ucrânia e os aliados têm mesmo que derrotar a Rússia? Será ele assim tão estúpido que não veja as oportunidades de negócio que lhe estão a ser lançadas? Será ele assim tão estúpido que não entenda que numa economia neoliberal e global o povo ucraniano será subjugado e evangelizado pelos poderes económicos dos maiores oligarcas, sejam eles russos ou chineses ou norte-americanos ou doutro país qualquer, independentemente do desfecho desta guerra?
Uma coisa é certa: a perspectiva de que Zelensky é muito corajoso e é um herói defensor do seu povo deve muito à realidade dos factos, e deve muito ao esclarecimento ético sobre o que deve ou não ser defendido por todos nós.
Outra coisa que pessoalmente me parece mais acertada, é que Zelensky deve ter uma inteligência comparável à de Trump ou Putin ou qualquer dirigente europeu. Assim, porque é que confrontado com a possibilidade de terminar a guerra no seu país, através de negociações de paz promovidas pelos EUA, Zelensky parece optar pela insistência no apelo a mais armamento?
Na mesma linha: porque é que os dirigentes europeus fazem figura tão triste e igualmente estúpida quando mantêm o discurso do "mais armas para a Ucrânia"? Se eles também não são estúpidos, o que é que os move? Quando as economias da Europa mostram sinais de fragilidade, quando as assimetrias económicas dos povos europeus aumentam, quando aparentemente falta dinheiro para os cuidados básicos como a habitação e a saúde, porque é que os dirigentes europeus insistem no discurso da diabolização da Rússia e na necessidade de gastar mais dinheiro em armas? O que é que os move?
E nós? O que é que nos move? Porque é que os nossos filhos vão estudar um curso em vez do outro? Porque é que depois do curso vão viver para um país ou para outro? Porque é que vivem no centro da cidade ou na periferia? Porque é que nós temos mais ou menos tempo livre e mais ou menos liberdade de o usarmos a nosso gosto? Qual é o peso que o dinheiro tem nas decisões que tomamos ao longo da vida, no nosso crescimento, na nossa saúde, na nossa educação, na nossa cultura, no modo como olhamos para a organização da sociedade?
Se nós somos tão conduzidos pelo dinheiro, porque é que acreditamos que os nossos dirigentes são diferentes de nós nesse respeito?
O discurso de Trump foi muito esclarecedor: ele afirma-se como um homem de negócios que quer fazer dinheiro. E a mim o que me surpreende é que isso possa surpreender alguém! Então não vivemos numa economia neoliberal? Não aprendemos nas escolas sobre o homo economicus? Não defendemos que a procura do lucro privado conduz ao bem comum? Não construímos afincadamente os mercados e erguemos altares à sacrossanta propriedade privada, por mais alarve que seja? Não somos todos nós, orgulhosamente, homens e mulheres de negócios? Não nos gabamos dos bons negócios que fazemos? Não justificamos aos amigos as nossas opções matrimoniais, universitárias, laborais, residenciais com base no dinheiro? Porque é que Trump havia de ser diferente de nós?
Porque é que Zelensky havia de ser diferente de nós? Ou de Trump? Porque é que Von der Leyen havia de ser diferente de Putin? Porque é que António Costa havia de ser diferente de Christine Lagarde?
Não acredito que as pessoas sejam todas iguais. Mas lanço estas perguntas provocatórias numa tentativa de realçar que devemos ter boas razões para acreditarmos que alguém é diferente de nós ou da média dos demais. Na ausência de boas razões, devemos suspender os nossos juízos e, na dúvida, talvez seja melhor considerar que todas as pessoas são meros mortais.
Em vez disso parece que as pessoas sentem uma grande necessidade de concluir apressadamente sobre o carácter heróico ou diabólico dos personagens.
Não consigo evitar, por muito que pareça fútil, traçar um paralelismo com o cinema. Aos meus olhos, uma das características distintivas dos filmes de Hollywood face aos filmes europeus ou de muitos outros países, é precisamente essa coisa de ter personagens heróicos e diabólicos, lutas do bem contra o mal, heróis vingativos, senhores dos anéis, dunes, eteceteras e tais. E isso parece resultar melhor na atracção de público do que filmes onde tudo é mais complexo. Será que a complexidade da vida é cansativa e simplesmente precisamos de momentos catárticos onde a simplicidade ajuda a expiar e expurgar as nossas raivas?
Como é que as pessoas que agora difundem imagens da cara de Zelensky criticam as enormes imagens de Mao Zedong, os cartazes de Ayattolah Khomeini ou Arafat, os quadros de Salazar ou Marcelo Caetano, as t-shirts de Che Guevara, os panfletos de Hitler ou Mussolini, as estátuas de Lenine? Do seu ponto de vista a resposta poderá parecer simples: porque a pessoa X tem qualidades que devem ser admiradas, ao contrário de Y ou Z. Não entenderão elas que o culto da personalidade tem em todos os casos os mesmíssimos fundamentos? Que a argumentação utilizada para defender a pessoa X é da mesma índole da utilizada para defender a pessoa Y?
A agitação que a conversa elíptica da sala oval gerou talvez tenha a ver com isso: a necessidade de escolha de símbolos, de bandeiras, de caras, bradando-as aos quatro ventos numa tentativa de evangelizar o mundo na nossa verdade.
Talvez a realidade seja bem mais prosaica. Temos nos nossos governos homens de negócios tão básicos como quase todos nós. E por mais que nos esforcemos na escolha dos símbolos e das pessoas a idolatrar, e na construção de justificações para essas escolhas, continuamos sem ser capazes de identificar onde está a ferida e de nela pormos o dedo certo, como aquele menino que se diz em tempos ter evitado a inundação dos Países-Baixos.
Por algum motivo rejeito racionalmente a natural propensão para o simbolismo, mesmo que, na prática, os símbolos sejam ubíquos e eu deles nunca possa escapar. Talvez seja um problema auto-imune.
Trump, Zelensky, Putin, Montenegro, Lagarde, todos eles defendem os seus interesses. Já era hora de nós defendermos os nossos!