Deus nos livre de semelhantes lavagens aos cérebros!... Que trapalhada! Como é que gente inteligente acredita em coisas tão estúpidas, meu deus!... De facto, custa a perceber como é que nós encaixámos nas nossas cabecitas que para sermos cidadãos cultos e informados devemos ler, ver e ouvir as notícias, ingerir sem digerir acontecimentos em segunda mão, seleccionados e apresentados de acordo com a vontade de outros, em vez de vivermos os acontecimentos em primeira mão e de os discutirmos com quem também o fez.
Em vez de sair à rua para viver, ficamos em casa com as notícias, que nos deixam informadinhos da vida!
Ora vejamos então o que se passou. Liguei a rádio e pouco depois chegou a hora das notícias. E foram elas assim por esta ordem:
1
Relatório da OCDE sobre Portugal aconselha (entre outras coisas) à diminuição dos impostos sobre os salários e ao aumento do IMI e do IVA. (ouvir)
A OCDE aconselha uma data de coisas, na realidade. Basicamente aconselha Portugal a crescer, uma vez que o seu problema é o crescimento! Sinceramente!... Mas vejamos com mais detalhe. Recomenda:
- aumento do IMI, e em relação a isso não digo nada, e do IVA, que é dos impostos mais injustos (se alguém quiser perceber porquê terei todo o gosto em explicar), em substituição do IRS, que além de incidir nos rendimentos do trabalho, também incide, e bem, nos rendimentos do capital (rendas, juros, lucros e outras mais-valias), e além disso fá-lo de forma escalonada, com taxas maiores para quem tem rendimentos maiores - muito bem OCDE!
- diminuição das contribuições para a segurança social dos patrões - muito bem OCDE!
- diminuição dos salários dos funcionários públicos - muito bem OCDE!
- aumento da poupança do Estado e dos particulares. Bem, nesta aqui deviam estar claramente a gozar connosco! Então vamos poupar o quê?... Só pode ser uma recomendação para os ricos... só pode! E nesse caso deve significar algo como: ricos, tratam de manter o vosso dinheiro paradinho, nada de o pôr a mexer! - muito bem OCDE!
- diminuição do consumo. É sobejamente sabido que diminuir o consumo costuma fazer muito bem às economias moribundas!... De qualquer modo não será muito difícil atingir este ponto, pelo andar da carruagem - muito bem OCDE!
- aumento do investimento em obras públicas de transportes, com especial referência para o novo aeroporto. Mas, será que a OCDE sofre de esquizofrenia?... Por um lado é preciso aumentar a poupança e diminuir o consumo, por outro é preciso aumentar o investimento?... Mas vá, há coisas que são mesmo necessárias para o desenvolvimento de um país. Não falamos de educação nem de bibliotecas ou de saúde ou de instalações desportivas ou algo do género. O que nós verdadeiramente precisamos para andar para a frente é de um novo aeroporto e de um TGV - muito bem OCDE!
- diminuir o défice do Estado. Sofre mesmo de esquizofrenia - muito bem OCDE!
- flexibilizar o mercado de trabalho. Claro! A culpa disto tudo é da porra dos trabalhadores que não fazem o que os outros querem que eles façam! Cambada de mal-educados!... Flexibilização nunca é demais! - muito bem OCDE!
- apostar na educação. Bom, parece uma boa recomendação, aqui tenho de dar o braço a torcer. Só me fica a dúvida sobre como é que se irá implementar isso... Não pode ser o Estado a tratar disso, que esse precisa de cortar nas despesas e precisa de aumentar a poupança e além disso o pouco dinheiro que tem é para o aeroporto e para o TGV. Por outro lado será difícil pôr as pessoas a pagar a sua própria educação, uma vez que elas verão os seus salários a diminuir e terão de poupar mais, se conseguirem, claro. Além disso também vão andar atrapalhadas a mudar de emprego, a mudar de local de trabalho, a tirar cursos e cursos profissionais e a trabalhar horas extra por causa da flexibilidade. Claramente isto deve ser um incentivo a quem tem dinheiro para apostar na sua própria educação, na base do "aprenda-você-mesmo", que aliás é o espírito destas reformas de Bolonha do ensino superior - muito bem OCDE!
- aumentar a produtividade. Bom, pode-se duplicar a produtividade duplicando os preços de venda. Há outras formas de o fazer. Mas seja o que for que estivesse no espírito de quem fez a recomendação, certamente isso será aproveitado para pôr os trabalhadores a trabalhar mais e pagar-lhes menos, que é a nossa forma usual de interpretar a questão - muito bem OCDE!
Reacção dos maiorais da nossa economia ao relatório da OCDE. Mira Amaral considera que "toda a gente sabe que a despesa tem de ser cortada" e que falar em aumentar os impostos o deixa perplexo. (ouvir) João Duque considera que é necessário "pensar seriamente como é que se vai tocar nos salários". (ouvir)
Transmite-se, portanto, a ideia de que a solução para os problemas nacionais, o que, subentende-se, é o mesmo que dizer a solução para os nossos problemas individuais, passa pela redução da despesa pública que, como toda a gente sabe, é em grande medida inútil.
Vai daí, podia-se começar a pensar nos carros de luxo dos políticos ou nos rios de dinheiro gastos em recepções de papas e de organizações como a NATO, mas não, porque toda a gente sabe que o problema são os salários dos funcionários públicos. E bem, nós até nem queríamos ter de mexer nisso... é uma pena... mas tem de ser!
3
Auxiliares de educação contratados pelo Estado a 3 euros por hora. (ouvir)
Cá está, de acordo com as notícias anteriores, uma medida óptima por parte do ministério da educação! Não só se aposta na flexibilização do emprego, como também se diminui as despesas do Estado! Além disso, também se diminui o consumo dos particulares, uma vez que eles assim mal têm dinheiro para sobreviver, o que está de acordo com as recomendações da OCDE!
O que está errado nesta notícia é que ela é apresentada como uma crítica à actuação do ministério!... Ora, sendo assim, afinal em que é que ficamos? Devemos contratar auxiliares de acção educativa como deve ser, dando-lhes contratos com direitos e um salário justo, ou devemos fazer o que está a ser feito?
É assim que o cidadão se informa e se cultiva... Boas notícias!
4
PSP vai receber 5 milhões de euros para se apetrechar para a conferência da NATO a decorrer em Lisboa em Novembro. (ouvir)
Veículos anti-motim, material para informação e contra-informação e para bloqueio de telemóveis, escudos, viseiras, capacetes, gás lacrimogénio, etc.
Tudo isento de concurso público, qual cereja no bolo!
Não sei bem se isto está de acordo com as recomendações da OCDE ou as do bom senso, ou até as minhas, mas concluo que tenho uma amálgama de coisas na cabeça suficiente para me sentir culto e informado e portanto esqueço um pouco a telefonia e vou tomar banho...
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