Em resposta a uma amiga...
“Eu assim de ânimo leve diria, que temos que fazer por nós próprios o suficiente para nos mantermos equilibrados e dar o que tivermos para dar, porque como dizia um amigo meu para dar de beber a alguém é preciso ter o jarro cheio. Se damos o que não temos logo de seguida cobramos, mesmo sem saber.”
Dizes “temos que fazer por nós próprios o suficiente para nos mantermos equilibrados e dar o que tivermos para dar”. Concordo plenamente. Como dizia uma professora minha do secundário, se cada um fosse capaz de tratar de si já este seria um mundo bem melhor! Acho que o imperativo “temos” se aplica bem a uma condição que é, para além de suficiente, necessária, porque é o exigível a cada um de nós: tratarmos de nós e um pouco dos outros.
No entanto, o seguimento da frase insiste na ideia de que não podemos dar o que não temos para dar, como que insinuando já uma justificação para aquilo que não fazemos, para aquilo que não damos. Para dar de beber a alguém é preciso ter o jarro cheio? À partida parece lógico. Mas vamos analisar a questão com mais profundidade. É claramente possível dar de beber a alguém tendo o jarro apenas cheio por metade, ou metade vazio, conforme se queira. Quando se diz “ter o jarro cheio” o que se está a querer dizer é que nós próprios devemos estar completamente saciados, antes de podermos dar aos outros. Ora isso levanta-me três questões:
- O que é isso de estar completamente saciado? Todas as pessoas serão capazes de justificar a sua avareza com tal palavreado. Porque é sempre possível dizer “não me chega”. Alguém com a barriga completamente cheia de alimento poderá sentir necessidade de ter ainda bastante alimento armazenado na despensa, porque “nunca se sabe o dia de amanhã”. Há outras coisas para as quais não existe despensa, acerca das quais as pessoas podem nunca estar completamente saciadas, como o afecto. E há outras para as quais só existe despensa como o dinheiro.
- A ideia de que para dar é preciso estar saciado esconde uma simplificação abusiva: a transformação da análise de algo que é muito complexo numa análise unidimensional. A vida, no entanto, é multidimensional. É possível ter o jarro cheio de uma coisa e ter outro jarro vazio doutra. Aliás, essa será a circunstância mais comum. Eu diria, numa generalização pouco fundamentada, que quase toda a gente está apta a dar alguma coisa de si aos outros, mesmo que seja ela própria muito carente de outras coisas. (E poderia ir até mais além. Porque se duas pessoas, cada uma com os ovos contados para a semana, trocarem alguns ovos entre si, ficarão na mesma em termos materiais, mas ganharão em termos imateriais...)
- Do ponto de vista do economista, a acumulação de água no jarro é feita com ganhos marginais decrescentes. Isto é, cada porção de água que se acrescenta à que já existe no jarro, tem um valor menor. Até que, finalmente, o jarro enche e a água que transborda tem um valor aproximadamente nulo. Ora dar coisas que não têm valor, ou que têm para nós um valor muito reduzido, é algo que todos podemos fazer sem grande esforço, sem dúvida, mas que dificilmente poderá ser qualificado como um acto generoso.
E no entanto, prossigo eu, actos generosos existem aos magotes à nossa volta. (Poderemos chamar às pessoas que praticam actos generosos “pessoas generosas”, mesmo sabendo que pessoas generosas também podem ser avaras. Mas esse é um problema que não me preocupa aqui e agora.)
Não se pode dar o que não se tem. Certo. Mas pode-se dar aos outros o que nos faz falta, isso sim. Há quem inclusivamente chegue ao ponto extremo, e bastante inútil, de dar aos outros coisas que esses outros valorizam menos que o ofertante. Se isso é possível? É sim. Isso acontece.
Afirmas então que os actos generosos até podem existir, quando analisados isoladamente, mas que a sua magia é logo de seguida anulada por aquilo que chamas de cobrança. Se damos o que não temos (que é o mesmo que dizer que damos o que temos, mas que nos faz falta, que nós valorizamos), logo de seguida cobramos, mesmo sem saber, afirmas. Cobrar, no sentido de exigir, de uma exigência muda, aos outros as mesmas atitudes que temos para com eles, e sem as quais se gera em nós um sentimento de injustiça e auto-compaixão. Se isso acontece? Sim, acontece. Se tem de acontecer sempre? Não, não creio.
Além de mais, a análise é aqui novamente simplificada. Há quem dê um pouco na esperança de receber muito. Na minha terra, não sei se aqui também, diz-se que essas pessoas são interesseiras. (O que é interessante. Porque interesseiro vem de interesse, que em inglês se diz interest, que nessa língua também significa juro, que é aquilo que cobramos pelo que emprestamos aos outros!) Há quem dê na esperança de ser ressarcido e ficar quite. Mas há também quem dê muito na esperança de receber apenas um pouco. E não vejo razão para considerarmos impossível que exista quem dê sem esperança de receber algo em troca (quem sabe se esperando um funeral grandioso ou uma entrada no céu ou na enciclopédia! :) tudo coisas bastante inúteis...).
Na realidade, quem dá recebe sempre algo em troca. Se o que se dá é valorizado por quem o recebe, e assim deveria ser sempre, então quem dá recebe sempre a satisfação de estar a melhorar a condição do outro, a satisfação de saber que está a agir bem, a satisfação consigo mesmo. E para quem gosta de qualificar esse gosto com os próprios actos, esse narcisismo, como um fenómeno egoísta, penso que esse é um egoísmo que bem podemos aceitar, e do qual, sinceramente, o mundo precisa em quantidades muito maiores do que as que tem.
“O outro merece ser ajudado, e nós que somos o outro também, também merecemos.” Ai ai, aquilo que as pessoas merecem!... Às vezes as pessoas merecem umas boas chapadas!... Eu não entendo o merecimento. É um conceito que não tem lugar na minha religião. Eu entendo a justiça. As acções, as omissões, as situações, as pessoas são mais justas, menos justas ou injustas. A ideia de merecimento, sobretudo quando tacitamente referida a coisas boas, traz atreladas as ideias de prémio e de recompensa. E isso, usando as tuas próprias palavras, é todo um paradigma que, usando mais uma vez as tuas palavras, me cheira a coisas de céu e de inferno.
Não defendo o prémio. E daqui podia partir para a crítica da tão consensualmente defendida cultura do mérito (que quer dizer nada mais que merecimento) e por aí adiante. Não o farei, porque não há papel para tanto. Mas do prémio falo. Quem pensa em merecimento tem o prémio metido na cabeça logo à partida. Faz o que faz a pensar no karma, no prémio, em tudo o que vai passar a merecer, todos os direitos que vai adquirir. E isso, digo eu, é feio.
Enquanto estudava engenharia mecânica fui várias vezes um dos melhores alunos da instituição onde estava. Existia, e provavelmente ainda existe, uma coisa estipulada numa lei qualquer chamada “bolsa de mérito” e que basicamente é um prémio em dinheiro, cinco salários mínimos, que era atribuído anualmente a um número pré-determinado de melhores alunos de cada instituição. Eu recebi várias vezes esse prémio. Insurgi-me contra isso, e no entanto recebi o prémio feliz da vida e não o partilhei com ninguém. Contraditório? Vejamos...
Insurgi-me contra tal prémio com os seguintes argumentos: o prémio é de tal modo difícil de obter que no meu curso, de engenharia mecânica, ele só era atribuído a um aluno de todos os anos do curso. Era mesmo para o melhor aluno de todos os alunos de todos os anos daquele curso. E, como tal, não funcionava de todo como incentivo a um melhor desempenho dos alunos. Isso era um facto. Todos já sabiam quem eram os melhores alunos que estavam na corrida para o prémio: aí uns dois alunos por ano, no máximo, isto é, bem menos de 1% dos alunos daquele curso. Na melhor das hipóteses, coisa que na verdade nem sequer se verificava, o prémio serviria de incentivo para os alunos que já eram muito melhores que os demais se tornarem ainda melhores.
Por outro lado, os melhores alunos que entravam na corrida e que ganhavam o prémio eram em geral alunos privilegiados logo desde a partida. Não tenho um estudo onde me possa fundamentar, mas arrisco dizer, correndo um risco pequeno de me enganar, que esses alunos eram os melhores alunos porque, na maioria dos casos, tinham à partida melhores condições que os demais: pais mais instruídos e mais cultos, cabeças mais inteligentes, mais livros em casa, acesso a computadores, ausência de dificuldades físicas, psicológicas e económicas (que está relacionada com tudo o resto), etc.
Entretanto, um número muito considerável de alunos vivia com dificuldades económicas. O estado possui um sistema de bolsas de apoio a esses alunos carenciados. No entanto, o processo de atribuição das bolsas, para além de ser permeável à falcatrua, era em geral apertado e com montantes muitos modestos.
Do confronto destes dois lados da questão resulta o seguinte: um aluno possui todas as condições para ser o melhor aluno, e isso em geral inclui as condições económicas, e é-o. Outro aluno possui todas as condições para ser um aluno sofrível, e isso em geral inclui as condições económicas, e é-o. Pois não basta ao melhor aluno sentir que esteve ao nível das suas capacidades, que subiu mais um degrau no sentido de ter uma vida de sucesso, que conquistou o respeito dos colegas e dos professores, e toda a demais satisfação que advém de se ser o melhor aluno, não lhe basta isso tudo, ainda tem de receber um prémio em dinheiro que é geralmente superior ao valor de uma bolsa de estudo de um aluno carenciado durante um ano inteiro! Um prémio, saliente-se, que não altera nada no comportamento dos alunos, porque os que podem ser os melhores, geralmente esforçam-se de qualquer modo por atingir esse estatuto.
E eu, recebendo tal prémio, e munido de tal argumentação, porque não o rejeitei? Porque, ao contrário do que é mais comum, eu era um desses alunos carenciados (na altura vivia com duzentos euros por mês para pagar tudo excepto a renda da casa que me foi cedida muito gentilmente por um grande amigo) e que nem sequer tinha direito a uma bolsa da “acção social escolar”. O dinheiro fazia-me muita falta... muita mesmo.
Mas, e esse é que é o ponto desta história, a injustiça da minha situação não tornava mais justo o injusto prémio que recebia. O que seria justo nesta situação seria atribuir o dinheiro a quem dele mais necessitasse. E o prémio para o melhor aluno deveria ser apenas esse: o de ser o melhor aluno.
De igual modo, em tudo na vida, o prémio do vencedor deve ser precisamente esse: o de ser o vencedor. Quando faço uma corrida com os amigos eu dou o meu melhor e não espero um prémio no final. Quando jogo jogos com eles acontece o mesmo. O prémio que se dá ao vencedor serve em geral para melhorar a condição de quem já está bem. E eu não vejo nisso justiça nenhuma. Nem beleza. E o paralelismo com a ideia do merecimento fica aqui tacitamente traçado. As coisas não devem ser feitas a pensar no merecimento que daí possa resultar. As coisas devem ser feitas simplesmente porque são as coisas correctas. Só isso.
Mas vamos à frase que deu origem a esta conversa acerca do merecimento, e troquemos o “merecer” pelo “precisar”. Ficaria então: o outro precisa de ser ajudado, e nós, que somos o outro também, também precisamos. Pois, aí já teria menos a acrescentar... Se calhar é bem verdade que todos precisamos de ser ajudados.
E aqui voltamos à questão do jarro cheio. Se todos precisamos de ser ajudados, se todos precisamos de nos ajudarmos uns aos outros, coisa em que acredito (“together we stand, divided we fall”), como poderemos fazê-lo se acreditarmos nessa coisa do jarro?... Só se aparecer um filho ou um sobrinho ou enteado qualquer de Deus!... A solução passa a meu ver por percebermos, aliás na onda do que já dizia ali em cima, que às tantas todos nós podemos dar, nem que seja apenas um pouco, nem que seja apenas de uma coisa.
A frase do merecimento parece-me que é apresentada como mais uma justificação para a nossa inacção. Mas não colhe. E já me debruçarei um pouco mais sobre isso no final deste texto.
Abordemos então a frase seguinte. Ela fala-nos da necessidade, na senda do que nós não podemos dar porque o nosso jarro não está cheio, e na senda do que nós merecemos, de “relaxar um bocado com a preocupação do bem e do mal”. De como merecemos esquecer-nos volta e meia dessas questões, a bem da nossa sanidade mental, ou coisa que o valha.
A relaxação acerca dos juízos sobre o bem e o mal... Isso, se bem estou a ver as coisas, equivale a um “tanto faz”. Está bem... Será que te posso apanhar num desses momentos de relaxação e fazer-te alguma coisa má?... Se calhar teria de me pôr a pau (“put myself on the stick”) para não seres tu primeiro a fazer-me uma coisa má!... Enfim, não sei se compreendo bem esse conceito de relaxação acerca do bem e do mal... Ou se calhar compreendo tão bem que me está a custar bastante encaixá-lo...
Porque eu não acredito na maldade das pessoas. Pode haver uma ou outra pessoa que tenha prazer em fazer mal aos outros. Mas não acredito que isso seja comum, e não acredito que isso seja marcante na construção do mundo que nos rodeia. O mundo é como é, construído por pessoas como nós, que procuram acima de tudo o bem próprio. E como a prossecução dos interesses próprios conflitua muitas vezes com a prossecução do bem dos outros, torna-se cansativo tentar conciliar as duas coisas. Torna-se muito cansativo, com o passar dos anos, fazer as coisas correctas e ao mesmo tempo alcançar tudo aquilo que julgamos que merecemos. E ainda mais quando percebemos que muitas vezes fazer as coisas correctas nos coloca ainda mais longe dessas coisas que julgamos que merecemos.
E por isso nós, todos nós, todos os que construímos o mundo tal como ele é, relaxamos um bocado com a preocupação do bem e do mal. Relaxamos um pouco, um poucochinho, um nadinha mesmo, ou um grande pedação... é conforme. Mas independentemente dessa conformidade, há uma outra conformidade entre a nossa relaxação e as coisas más que existem no mundo.
E há também uma verdade nua e crua acerca disso: é que quando as coisas más nos afectam directamente, é difícil relaxar um pouco que seja. Essa relaxação é um luxo a quem se pode dedicar quem não tem um ferro quente a queimar-lhe as costas ou uma arma apontada à cabeça. É um luxo a quem se pode dedicar quem sente a necessidade de readquirir o tal equilíbrio e a tal paz de consciência de quem tem dificuldades em conciliar as coisas que acha serem correctas com as coisas que o beneficiam.
Enquanto nós relaxamos, os outros tramam-se. E isso faz-me lembrar algumas passagens do texto do José Mário Branco intitulado “FMI”:
“...estás desiludido com as promessas de Abril, hein? as conquistas de Abril eram só paleio a partir do momento em que tas começaram a tirar e tu ficaste quietinho, não é filho? e tu fizeste como o avestruz, enfiaste a cabeça na areia: não é nada comigo, não é nada comigo... não é? e os da frente que se lixem! e é por isso que a tua solução é não ver, é não ouvir, é não querer ver, é não querer entender nada. precisas de paz de consciência, não andas aqui a brincar, né filho? precisas de ter razão, precisas de atirar as culpas para cima de alguém...”
“...entretém-te que o ministro do trabalho trata da saúde aos delegados sindicais, entretém-te filho que a oposição parlamentar trata da saúde ao ministro do trabalho, entretém-te que o Eanes trata da saúde à oposição parlamentar, entretém-te que o FMI trata da saúde ao Eanes, entretém-te filho... e vai para a cama descansado, que há milhares de gajos inteligentes a pensar em tudo neste mesmo instante, enquanto tu adormeces a não pensar em nada...”
“...entretém-te meu anjinho entretém-te, que eles são inteligentes, eles ajudam, eles emprestam, eles decidem por ti, decidem tudo por ti: se hás-de construir barcos para a Polónia ou cabeças de alfinete para a Suécia, se hás-de plantar tomates para o Canadá ou eucaliptos para o Japão, descansa que eles tratam disso, se hás-de comer bacalhau só nos anos bissextos ou se hás-de beber vinho sintético de Alguidares de Baixo... descansa, não penses em mais nada, que até neste país de pelintras se acha normal haver mãos desempregadas e se acha inevitável haver terras por cultivar... descontrai babe, come on, descontrai. afinfa-lhe o Bruce Lee, afinfa-lhe a macrobiótica, o bio-ritmo, o horoscópio, dois ou três ovniologistas, um gigante da ilha de Páscoa e uma Grace do Mónaco de vez em quando para dar as boas festas às criancinhas.”
“...quanto menos souberes a quantas andas, melhor para ti.”
É... descontrai, descontrai babe, come on...
Acrescentas então que “tirando alguns actos francamente maus, que evitaremos cometer [sim, acrescento eu, porque os que são apenas ligeiramente maus são quase bons, tal como o chocolate, feito com o fruto do cacaueiro e com a cana de açúcar, é praticamente uma salada], é preciso mudar um bocadinho o paradigma: ora bem, será que tudo o que fazemos pelos outros deixa de ter valor se nos sabe bem e portanto se pode dizer que o fazemos para nos sentirmos bem?”.
Quanto a isto, se eu bem entendi a insinuação, penso que estamos de acordo. Conforme um texto que publiquei há pouco tempo, eu afirmo peremptoriamente que os actos que fazemos com o objectivo principal de melhorar a condição dos outros podem ser classificados como actos altruístas, mesmo que possam simultaneamente ser classificados como egoístas, no sentido em que ninguém nos obriga a fazê-los e os fazemos porque isso também nos dá prazer. Afirmo que a classificação desse tipo de actos como egoístas é uma classificação inútil. E afirmo, ainda nesse mesmo texto, que nem sempre actos altruístas, assim definidos, poderão ser considerados como bons ou como valiosos.
Portanto, respondendo à tua questão, eu diria que as coisas que fazemos pelos outros não são à partida valiosas só por causa disso (podemos bem querer ajudar alguém e só fazer asneira no processo), mas se o forem, não deixam de o ser por nos darem prazer.
Mas isto de atribuir maior ou menor valor às coisas e aos actos é um terreno muito pantanoso por onde não queria entrar muito... Porque embora afirme que as coisas que fazemos não perdem valor por nos darem prazer, também não deixarei de afirmar que terão, pelo menos segundo o meu juízo, maior valor um acto e um actor, de entre vários em tudo o resto perfeitamente iguais, que impliquem um maior esforço.
Assim, à tua pergunta “será que só se pode valorizar o que fazemos pelos outros e nos custa fazer?” a minha resposta é um rotundo não.
Quanto à cultura do pecado e da culpa. Se bem entendo o que dizes, a ideia que criticas é a de que só tem valor o sacrifício. Uma ideia que faz lembrar alguém a chicotear as suas próprias costas já ensanguentadas, como expiação dos pecados e como afirmação da sua devoção a uma ideia de bem, que pode ser uma ideia de divindade. Dizes que esse comportamento, não necessariamente o das vergastadas nas costas, talvez algo menos físico, e o modo de pensar e de agir associados estão muito enraizados na nossa cultura.
Bom, eu nasci e cresci no Porto, lidando com todo o tipo de gente do norte do país. Creio que estaremos de acordo se disser que há uma tradição religiosa mais arreigada no norte que no sul do país. Encontrei várias pessoas que tinham bem marcada na sua consciência a ideia de pecado, e que agiam genuinamente em função dessa ideia. Vivi e partilhei muitas experiências da minha vida com uma dessas pessoas. Sei muito bem, porque isso me afectou de forma directa e indirecta durante muitos anos (não apenas por causa daquele relacionamento) o terror que é viver com essa ideia de pecado a espreitar a cada esquina.
E portanto, embora compreenda o tom de crítica negativa quando dizes que essa cultura “começa a mostrar-se profundamente desajustada”, na realidade não compreendo exactamente o que queres dizer. Será que em alguma altura foi ajustada? E ajustada ou desajustada a quê?
Esse modo de pensar e agir existe e tem consequências que a meu ver são extremamente negativas. No entanto, não posso deixar de dizer que me parece uma ilusão pensar que isso está muito enraizado na nossa cultura. Porque apesar de conviver com gentes de todos os tipos e feitios do norte do país, as pessoas que conheci para quem o pecado era algo verdadeiramente a evitar sempre foram uma muito pequena minoria. O que me parece que prevalece é uma cultura não de pecado, mas de aparência. Isso sim. Imenso. Em quase toda a gente, ontem e hoje, e com pujança para continuar a ser assim durante muito tempo. O que isto significa é que as pessoas evitavam o pecado apenas se soubessem que isso ia ser conhecido pelos amigos e familiares... porque de resto, venha de lá o pecado! :)
Defendes então: “passemos a outro paradigma onde o bem e o altruísmo, o mal e o egoísmo, e outras tantas dicotomias deixam de estar aos pares, em lados opostos da barricada. Onde o egoísmo pode ser bom o altruísmo mau, e vice-versa.”
Podemos então passar a dicotomias aos trios! :) Estou a brincar, como é evidente!
Eu não costumo utilizar muito a palavra paradigma porque sinto que as coisas não andam ordenadas nas cabeças das pessoas, e menos ainda nos sentimentos, de acordo com paradigmas. E isso aplica-se bem ao egoísmo e ao altruísmo. Quando se fala em termos abstractos há essa tendência, de dizer que o altruísmo é bom e o egoísmo é mau. Mas se deixarmos de falar em abstracto e passarmos a falar de coisas bem concretas, os nossos juízos são outros. Por exemplo, não teremos dificuldade em confidenciar que aquela insistência que a nossa mãe tem para nos impingir mais comida é difícil de suportar, mesmo sabendo que ela só quer o nosso bem. E também não teremos dificuldade em sugerir a um amigo que se dedique a si próprio quando precisa de descansar ou de melhorar a sua condição física, ou de estudar para um exame ou qualquer outra coisa.
Nesse mesmo texto que publiquei recentemente eu chamo a atenção precisamente para isso, que egoísmo nem sempre é mau e altruísmo nem sempre é bom. E portanto parece-me que a este respeito estamos razoavelmente de acordo. É uma dicotomia em trio! :)
Porém, não posso deixar de salientar, embora reserve para o fim uma nota mais extensa sobre o assunto, que a tua apologia me parece um: porque não um salve-se quem puder? onde não há juízos de valor muito claros, onde tudo é mais ou menos bom, ou mais ou menos mau? ou bom e mau ao mesmo tempo?...
Finalmente afirmas “os conceitos que não se podem arrumar muito direitinhos na nossa cabeça podem deixar-nos inseguros, mas ser capaz de viver na insegurança é fundamental, na imperfeição, enfim”. Quanto a termos de ser capazes de viver na insegurança e na imperfeição... bom... todo o mundo está bem pejado de insegurança e de imperfeição (seja lá isso o que for), pelo que todos nós, que aqui vivemos, já passámos nesse teste. O que não é claro para mim é perceber o significado que tem aqui a palavra “fundamental”. A dúvida que me fica é se a palavra “fundamental” tem aqui alguma conotação com a palavra “bom”, se quando dizes que é fundamental ser capaz de viver na insegurança e na imperfeição, estás de algum modo a dizer também que é bom ser capaz de viver na insegurança e na imperfeição...
Por outro lado também fico na dúvida se a frase contém algum cheiro de crítica negativa à arrumação muito direitinha dos conceitos na nossa cabeça... No fundo, no fundo, toda a frase me cheira um pouco ao mesmo, ao que já vinha de antes, à defesa da tese de que o mundo é como é, que nós não somos ou não devemos ser encarados como responsáveis por isso, e à apologia do regabofe, em todos os sentidos.
Assim, e fazendo finalmente um balanço deste teu comentário, que eu indubitavelmente e sem ironia aprecio (quem dera as pessoas todas soltassem assim o que lhes vai por dentro, se é que lá lhes vai alguma coisa), depois de uma série de ideias, algumas das quais estamos em desacordo, outras em que concordamos, a ideia geral que me fica é a de uma apologia, uma defesa, de uma desculpabilização, de uma desresponsabilização, perante os nossos actos.
Há tempos explicava a uma nossa amiga o conceito de energia de activação. Na química, chama-se energia de activação à energia que é necessário fornecer aos reagentes para que o processo de reacção prossiga depois de forma autónoma. Por exemplo: todos sabemos que um fósforo arde bem, e de forma autónoma. Mas todos sabemos também que para isso aconteça é necessário friccioná-lo com força na lixa da sua caixa, ou aquecê-lo bastante com outra fonte de calor. Essa energia inicial que é necessário fornecer ao fósforo para que depois a reacção química prossiga por sua conta é a energia de activação.
O mesmo conceito pode ser transposto para a física. Quando lhe explicava isto tinha em cima da mesa um objecto qualquer com forma paralelepipédica. Imaginemos um livro. O livro fica mais estável na mesa se estiver deitado. No entanto, se o pusermos de pé, ele assim permanecerá. E apesar de estar numa posição mais instável, ele só passará para a sua posição mais estável se de algum modo o empurrarmos, isto é, se lhe fornecermos o equivalente à energia de activação.
Podemos prolongar a analogia para as pessoas e as sociedades. Quando adormecemos no sofá é porque nos faltou a energia de activação necessária para passarmos para a cama, onde dormiríamos melhor. E quanto à sociedade, é quase infindável a quantidade de coisas que poderiam ser melhores se as pessoas fizessem um esforço nesse sentido. Se as pessoas colocassem lá a energia de activação necessária para que depois tudo funcionasse de forma autónoma. É assim que passámos o tempo a dizer “ai, nos países nórdicos é que aquilo funciona bem” e no entanto nunca fazemos como eles.
A grande falácia em que vivemos é a de que as coisas se alcançam sem esforço. Fez-se a ponte entre o esforço e o pecado para defender atabalhoadamente um hedonismo cego que faz tábua rasa de todos os valores. Bem, todos não... porque agora as pessoas defendem as plantinhas e os animaizinhos... desde que isso não implique para nós grande esforço. É o tempo em que as lutas se fazem clicando em botões que permitem assinar petições electrónicas. Porque somos todos muito ecológicos, mas só deixamos de andar de automóvel no dia em que alguém (alguém... sabe-se lá quem... alguém!) inventar e implementar um sistema de transporte alternativo, mais ecológico, mais barato, mais rápido e mais cómodo.
E o discurso que adoptamos é o discurso do coitadinho. É a era dos traumas, dos psicólogos e psiquiatras e psicoterapeutas, das terapias alternativas, dos ovniologistas como dizia o outro, da libertação da ansiedade e da agressividade e do diabo-a-sete... Somos todos muito frágeis, precisamos todos de muitas coisas... Aliás, temos direito a elas! Temos direito a preocuparmo-nos apenas com o que é nosso e a esquecermos todos os outros, a coisa pública, os outros países, seja o que for. Temos direito a férias anuais no outro lado do mundo, mesmo que isso ajude a destruir o planeta. Temos direito a ser bem tratados por todos, mesmo que nos estejamos a borrifar para eles. Temos direito a afecto, a sexo, a chocolate, a televisão, a facebook. É uma exigência... Porque sem essas coisas ficamos com angústias, solidões, depressões, recalcamentos, ansiedades, esgotamentos, remorsos, ressentimentos, insatisfações, negações, introversões, descompensações, obsessões e muitos outros ões... Coitadinhos...
E no entanto não somos coitadinhos nenhuns. Eu não sou, tu não és, e quase toda a gente que conheço não é. Somos coitadinhos nas nossas cabeças apenas. Conheço pessoas cá em Portugal que são muito mais coitadinhas que praticamente toda a gente que anda para aí e que são ao mesmo tempo mais generosas. E não cobram. E se pensar noutros países e noutras pessoas, ainda o nosso discurso de coitadinho se torna mais ridículo.
O nosso discurso de coitadinho alterna com discursos em que somos os maiores. Temos necessidade de projectar assim o nosso ego nas alturas, coitadinhos, porque sem isso não nos sentimos gente. Oscilamos entre o herói e o coitado. E não somos nem uma coisa nem outra. Somos gente mimada, somos pouco resilientes, algo incapazes de sacrifício, um pouco perdidos... só isso.
Nunca na história tivemos, nós o povo, tantas armas para construir um mundo melhor, e nunca na história dedicamos uma fracção tão pequena do que temos a ajudar os nossos vizinhos, os nossos amigos e os nossos familiares (que infelizmente os outros nunca foram muito ajudados de qualquer maneira).
E perdemo-nos na multiplicação de justificações para os nossos pesos de consciência.
E o amor? O tal amor dos homens que se exprime... ou deveria exprimir... Quem ama não sujeita a doação a tamanho condicionalismo.
Ainda o José Mário Branco e o seu mesmo texto:
“...assim mesmo, como entrevi um dia, a chorar de alegria, de esperança precoce e intranquila, o azul dos operários da Lisnave a desfilar, gritando ódio apenas ao vazio, exército de amor e capacetes. Assim mesmo na Praça de Londres o soldado lhes falou: olá camaradas. Somos trabalhadores. Eles não conseguiram fazer-nos esquecer. Aqui está a minha arma para vos servir.”
“A minha arte é estar aqui convosco e ser-vos alimento e companhia na viagem para estar aqui de vez. Sou português, pequeno burguês de origem, filho de professores primários, artista de variedades, compositor popular, aprendiz de feiticeiro. Faltam-me dentes. Sou o Zé Mário Branco, 37 anos, do Porto. Muito mais vivo que morto. Contai com isto de mim, para cantar e para o resto.”
Que justificações poderia ele ter inventado para se furtar à solidariedade?
Acerca disto deixo uma sugestão de leitura: “a era do vazio” de Lipovetsky. (Tens aqui uma ligação para uma tradução que parece manhosa, mas legível)
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