quarta-feira, 23 de fevereiro de 2011

Poemarma...



Que o poema tenha rodas, motores, alavancas,

que seja máquina, espectáculo, cinema,

que diga à estátua: sai do caminho que atravancas!

Que seja um autocarro em forma de poema,

que o poema cante no cimo das chaminés,

que se levante e faça o pino em cada praça,

que diga quem eu sou e quem tu és,

que não seja só mais um que passa.

Que o poema esprema a gema do seu tema

e seja apenas um teorema com dois braços.

Que o poema invente um novo estratagema

para escapar a quem lhe segue os passos.

Que o poema corra, salta, pule,

que seja pulga e que faça cócegas ao burguês.

Que o poema se vista subversivo de ganga azul

e vá explicar numa parede alguns porquês.

Que o poema se meta nos anúncios das cidades,

que seja seta, sinalização, radar,

que o poema cante em todas as idades,

que lindo, no presente e no futuro o verbo amar.

Que o poema seja microfone e fale,

numa noite destas, de repente, às três e tal,

para que a Lua estoire e o sono estale

e a gente acorde finalmente em Portugal!

Que o poema seja encontro onde era despedida,

Que participe, comunique e destrua para sempre

a distância entre a arte e a vida.

Que salte do papel para a página da rua,

que seja experimentado

muito mais que experimental.

Que tenha ideias sim, mas também pernas,

e até se partir uma não faz mal!

Antes de muletas que de asas eternas.

Que o poema assalte esta desordem ordenada,

que chegue ao banco e grite: abaixo a pança!

Que faça ginástica militar aplicada

e não vá como vão todos para França.

Que o poema fique

e que ficando se aplique

a não criar barriga

a não usar chinelos.

Que o poema seja um novo Infante Henrique

voltado para dentro e sem castelos.

Que o poema vista de domingo cada dia

e atire foguetes para dentro do quotidiano.

Que o poema vista a prosa de poesia,

ao menos uma vez em cada ano.

Que o poema faça um poeta de cada funcionário

já farto de funcionar.

Ah, que de novo acorde no lusíada

a saudade do novo, o desejo de achar.

E que o poema diga:

o longe é aqui!

E aponte a terra que tu pisas e eu piso,

ah, que o poema chegue ao pé de ti

e te diga ao ouvido o que é preciso.

Que o poema actue directamente sobre o real

nem que por vezes seja só um poeta em movimento.

Ah, que o poema para ser original

transforme em braços e acção o pensamento!

Que ponha sinos a tocar dentro das rosas

e seja, mais que rosa, flor de cacto.

Que o poema saiba ver dentro das coisas

a mão do Homem feita poema em acto.

Que o poema me dispa de tudo o que não presta

e me transforme na sua própria acção.

Nem quero outra glória, nem quero outra festa.

Morrer como Guevara na Bolívia da canção!

Só tu, povo fardado de ganga azul,

poderás dar-me a glória ou recusar-ma.

Aí vai o meu poema, a minha taça do rei de tudo.

Aí vai, para ser arma!


(de Manuel Alegre)

Sem comentários:

Enviar um comentário