terça-feira, 22 de fevereiro de 2011

À volta dos jovens licenciados...

Eduardo Sá e Isabel Stilwell no seu melhor, na rubrica "À Volta dos Dias", da Antena 1, no passado dia 17 (se não estou em erro). Podem carregar aqui e ouvir o programa que passarei a comentar. Se não quiserem, eu de seguida faço um resumo dos factos, ou dos argumentos, mais interessantes aí referidos.

Vem o programa a propósito da já cansativa saga em torno do “que parva que eu sou” dos Deolinda. Canção que suscitou no psicólogo a vontade de se rebelar contra as criancinhas mal educadas deste país. O programa é uma pequena conversa entre os dois acerca dessa manifestação do Eduardo Sá sobre os resultados da “industrialização da educação”, expressão que não deixa de apanhar o seu autor em contramão, conforme adiante se verá.

Passemos então a enumerar algumas (quase todas) coisas que aí são ditas:

  1. “A industrialização da educação está a instruir as crianças mas não as educa como devia. (...) A família e a escola produzem funcionários e o mundo exige pessoas.”
  2. “Eles [os jovens “sabichões” que se identificam com a letra da referida música, presume-se] consideram-se... no fundo estão a dizer que são escravos, porque estudaram e aprenderam e são muito sábios e ninguém os emprega...”
  3. “...mas na realidade eu acho que não aprenderam, porque se tivessem aprendido tinham formas de lidar com esta situação.”
  4. “... aquilo começa pelos que não estão empregados, mas depois vai ver: Direito, 5% não está empregado; não sei quê... mas os 95% estão! Porque é que não se fala dos 95% que estão?”
  5. “Os licenciados em Portugal têm uma remuneração francamente acima, francamente acima, da média dos países da OCDE. (...) E quem faz uma licenciatura em Portugal ganha em regra o dobro do rendimento médio...”
  6. “Se são sabichões, se são vaidosos... no fundo estiveram a estudar, com tanto orgulho, mas não estiveram a aprender!”
  7. “Eu acho que estes são os filhos da nação, do pós 25 de Abril e do pós integração europeia. São filhos do desafogo económico das famílias.”
  8. “...são jovens que foram instrumentalizados...”
  9. “...são também filhos de pais... sobretudo parvos.”
  10. “Porque realmente um país onde não há uma racionalidade dos recursos de maneira a criarem-se nomeadamente licenciaturas que sejam exequíveis, que sejam viáveis, obviamente que são filhos de uma enorme parvoíce, que é transversal [olha lá Eduardo, se calhar também te apanhou!]”
  11. “Eu há um tempo fiquei sentada ao lado de um embaixador Finlandês (...) que me perguntava porque é que os nossos jovens não trabalhavam nas férias!”
  12. “...mas noutras coisas não têm nenhum hábito, nem acham que tirando um curso vão poder trabalhar num bar ou numa coisa qualquer ou num restaurante ou a ajudar ou a fazer não sei quê... querem ir directos para o lugar!”
  13. “Eu uma vez tive um estagiário que eu entrevistei que me disse... eu perguntei-lhe ‘mas o que é que você quer? (...)’ e ele disse ‘eu quero o seu lugar’! eu disse ‘tá bem... então olhe, não está vago, não tenho lugar para si’ (risos da Isabel)”

E agora passemos à crítica deste imenso rol de tremenda parvoíce:

  1. Concordo plenamente que a escola produz funcionários e que o mundo precisa de pessoas. Plenamente.
  2. Eu, que me identifico com o que é dito na referida música, conheço muita gente que também está nessa situação. Curioso é que quase todas essas pessoas, eu incluído, estão empregadas e a trabalhar, ou então estão a trabalhar e não sabem bem se estão empregados ou não... coisas das economias modernas! Estas pessoas, que trabalham, e sobretudo estas, que trabalham, é que se sentem escravas, mais do que as outras que estão desempregadas, senhora Isabel! A crítica do Eduardo e da Isabel centra-se nos desempregados, mas sinto que lhes escapou o “full picture” da coisa. A letra da música tem suscitado tanto sururu precisamente porque fala da situação de muitas pessoas, muito para além do problema do desemprego nos jovens licenciados. Já iremos à questão do desemprego. Mas o que está aqui em causa, penso eu, e mais do que pensar, sinto, é sobretudo a situação dos jovens que têm empregos que até não são maus de todo em termos de conteúdo, aliás muitas vezes até têm uma dose de responsabilidade muito considerável, mas que em termos de ambiente, de remuneração, de reconhecimento, são uma lástima. No fundo é uma questão de dignidade. Os jovens que trabalham sentem que estão a ser tratados como cidadãos de segunda, às ordens de uma geração instalada que tem a faca e o queijo na mão e faz deles gato-sapato. Chiça!... Dá vontade de acrescentar “compreenderam bem, senhores psicólogos que só se movem em meios de embaixadores?... ou querem um croqui?...”
  3. O que está aqui a ser insinuado é que a escola deve ensinar as pessoas a desenrascarem-se na economia onde vivem. Ou no mundo em que vivem, uma vez que se presume que a escola também deve ensinar coisas como “meu amigo, o mercado de trabalho é mau na tua terra? então emigra!”. São as regras do jovem bem sucedido do século XXI. Eu sei uma regra muito boa, que ninguém me foi capaz de dizer directamente, porque as pessoas ainda conservam, apesar de tudo, alguma consciência e alguma vergonha, mas que suspeito que nos dias que correm já pode ser dito à boca cheia: para ter sucesso despe-te completamente de escrúpulos. Lambe botas, manda-chuva, faz o que tiveres de fazer e logo verás que tens sucesso. Foi isto que os jovens não aprenderam, não foi?, a tal forma de lidar com a situação. Porque o que se quer dizer é simples, e todos o sabemos, porque afinal neste aspecto o Eduardo e a Isabel não estão sós: que se não se consegue encontrar um determinado tipo de trabalho, temos de nos sujeitar ao que houver. Lindo! Sublime! Gostava de ver o senhor Eduardo e a senhora Isabel a sujeitarem-se ao que houver!... É isto que se defende, e ao mesmo tempo não se compreende a analogia com a escravatura. Sinceramente...
  4. Esta tirada é magnífica pelo absurdo!... Cheira até a um pouco de surrealismo!... Dá vontade de rir!... Ora vamos lá ver... se morrerem 10000 pessoas numa explosão no centro de Coimbra (ou outra cidade qualquer com dimensão para isso), aconselha-se então que as parangonas sejam “99,9% da população portuguesa está bem”.
  5. Estou a reescrever este ponto. Tinha escrito aqui tanta coisa que só este ponto ameaçava ser maior que todo o texto (ao estilo de "isto não é um cachimbo"). Vou resumir. Vejam este estudo. Chama-se "O investimento em educação em Portugal: retornos e heterogeneidade". Se o Eduardo Sá estivesse mais atento, poderia ter reparado na palavra "heterogeneidade". No estudo pode-se ler que em 2006 o salário médio ilíquido dos licenciados era de 1625 € por mês, contra os 805 € para a média de toda a economia. Só que esse valor é uma média que inclui, por exemplo, o senhor Belmiro e muitos administradores de bancos e de grandes empresas (presumo que a maioria sejam licenciados). Além disso hoje a situação não é tão favorável (o próprio estudo lança as bases para uma previsão do sucedido, se lido com atenção). Mas não há estudos que cheguem ao conhecimento do que se passa no terreno. E o que se passa no terreno é que muitos amigos meus com licenciatura não descolam dos 1000 €, muitos andam a saltar de trabalho precário em trabalho precário (coisas que nada têm a ver com a sua formação) e muitos outros (felizmente menos) nem trabalho conseguem. Quanto à afirmação de que os licenciados em Portugal têm uma remuneração francamente acima da remuneração na OCDE (mesmo considerando que o valor utilizado é para a média dos licenciados e que Portugal é um dos países da OCDE com maior desigualdade na distribuição do rendimento), eu cruzei dados deste relatório com dados da própria OCDE e estimei que os licenciados em Portugal só devem ganhar mais que os licenciados na Turquia, na Polónia, na Hungria e na República Checa. Para compensar, em países como a França, a Irlanda (pré-crise) e o Luxemburgo os licenciados devem ganhar cerca de 3 vezes mais que os portugueses. Eu não sei onde o Eduardo foi buscar os dados, mas gostava de ter acesso a eles!...
  6. Sem comentário.
  7. A primeira frase deste trecho não acrescenta nada. É um facto inócuo, tão válido como dizer que esta é a sociedade do pós-idade-do-ferro ou do pós-restauração-da-independência. A segunda parte é mais interessante, porque novamente faz pensar no que o Eduardo sabe que nós não sabemos... Somos filhos do desafogo económico das famílias?... Afinal estamos todos bem e não sabíamos, não é?... Bem, não vou comentar, que já basta de investigações nos números. Façam-na vocês, se quiserem, e depois mandem os resultados ao Eduardo, com os meus cumprimentos. Digam-lhe para deixar de frequentar ambientes de embaixadores, que pode ser que descubra um Portugal real, de jovens reais que se licenciaram, e que tiveram de se esforçar muito, eles mesmos e/ou os pais, para o conseguir...
  8. São jovens que foram instrumentalizados?... Deixa-me lá ver se compreendo, como se fosse realmente parvo: quer isso dizer que nós, idiotas não pensantes, fomos transformados em ferramentas por outros, e somos utilizados por esses outros, como ferramentas, para eles atingirem os seus objectivos. É isso? E nós vamos na onda, certo?... Pois... Certo... E de cada vez que há uma manifestação também é a instrumentalização dos panfletos dos comunistas, não é?... Pois é, pois é... Este mundo está cheio de desmiolados e de malta perversa, manhosa, que ataca pela calada.
  9. Sem comentário.
  10. Alguém dizia que as contradições são o espelho de uma mente pequena. Eu não vou tão longe, mas ainda assim acho que as contradições não auguram nada de bom acerca dos seus autores! Aqui vemos que o Eduardo defende licenciaturas que sejam viáveis, que sejam exequíveis, isto é, que sejam adequadas ao mercado de trabalho ou, acreditando que o mercado é Deus, como muitos fazem, com ou sem a consciência disso, cursos que correspondam às nossas necessidades económicas. Precisamos, portanto, de funcionários, isto é, pessoas que exercem funções, mesmo que sem pensar ou sem sentir muito acerca disso ou do que quer que seja. Se alguém achar que o mercado precisa de outra coisa, por favor avisem-me que nesse caso eu ando a dormir há muito tempo! Ora bem, agora confrontem isto com o que ele mesmo diz logo no início deste programa e tirem as vossas próprias conclusões. Um jovem que tiver uma paixão por arqueologia deve fazer o quê então, senhor Eduardo? Ou uma pessoa com pê grande é alguém que sabe desistir das suas paixões em função do mercado de trabalho?
  11. Senhora Isabel, qualquer dicionário a poderá elucidar sobre o significado do substantivo “férias”. No meu diz que férias são “dias feriados em que se suspendem os trabalhos judiciais, escolares, etc.; período de repouso concedido pelas entidades patronais aos seus empregados, todos os anos; (fig.) descanso”. Portanto, os jovens não trabalham nas férias, porque se trabalhassem não seriam férias. Vá... eu sei que a senhora Isabel sabe o que é que essa palavra quer dizer. Mas é bom colocar as coisas desta forma para pôr a nu a questão que aqui está em causa. Porque o que se defende é que as pessoas devem trabalhar nas férias. E, a ser assim, as férias têm de adquirir um novo nome... sei lá... se forem no verão podem simplesmente passar a chamar-se... verão?... ou trabalho de verão?... qualquer coisa, mas férias é que não, porque não o são! E por que razão as pessoas deverão trabalhar nas férias? Porque é formativo, não é? Pois... Saibam então os senhores Eduardo e Isabel que é precisamente esse o argumento mais utilizado para manter a escravidão de todos os jovens que trabalham, verões e sábados e domingos e noites e tudo! É que é sempre muito formativo. Nós, os jovens, calha de nunca termos a experiência pretendida, calha de nunca termos aquele diploma necessário, aqueles anos a exercer aquela função... calha de faltar sempre qualquer coisa. E calha também, de tudo o que se faça no trabalho, seja lá o que for, ser muito bom para a nossa formação. Por isso temos de agradecer se trabalhamos à borla, se trabalhamos horas extraordinárias (mesmo extraordinárias!) não remuneradas, se recebemos uma “bolsa” em vez de um “salário” com um pouco mais de dignidade... E, como diz um amigo meu, vamos todos acabar, aos cinquenta e cinco anos de idade, debaixo da ponte e com um currículo do caraças, cheiinho de formação! Isso mesmo! Férias? Nem pensar! Que parvos que somos a pensar em semelhante disparate!
  12. Os jovens têm de se sujeitar... lá está a doutrina. Que também soa um pouco à praxe... É da praxe ser da praxe que a praxe implique que os jovens sejam praxados... Isto é, que se sujeitem a tudo e mais alguma coisa antes de poderem exercer o cargo para o qual se prepararam. Sobretudo, nunca deixar que um deles chegue lá na flor da idade, com o seu potencial ao máximo, não vá ele demonstrar que os que já lá estão há décadas afinal podiam fazer as coisas um pouco melhor! Por isso mesmo os jovens em Portugal têm de sofrer décadas a fio, sempre aliciados com a cenourinha, até serem formatados e adquirirem aquela pátina que lhes permite saltar para os lugares, se tal chegar a ocorrer, e não alterar absolutamente nada ao status quo. Calha de noutros países deste planeta azul os jovens, incluindo alguns portugueses, saltarem logo para os lugares. Aí esses jovens destacam-se. Calha de por vezes nesses países fazem coisas mais valiosas que os que têm o queijo e a faca na mão aqui no nosso país. Calha que esses países são quase sempre mais desenvolvidos que o nosso, não só neste aspecto. Calha... Mas a praxe é a praxe... e é da praxe respeitar a praxe.
  13. Este ponto não acrescenta nada de novo, a não ser que o jovem não deve achar graça nenhuma à situação, mas a Isabel claramente ri-se com ela.

Bem, fiquei chocado, simplesmente chocado, com a atitude demonstrada pelo Eduardo Sá e a Isabel neste programa. Fico a pensar em quantos milhares ou milhões de pessoas neste país partilharão das suas opiniões!... Mas vá, benevolência, que como já alguém disse antes de mim, não vale a pena explicar com maldade aquilo que pode ser explicado com estupidez ou ignorância.

Eça, excerto da carta de Inglaterra que recebeu o título de “o Natal”, no final do século XIX:

“Já não falo de gregos e romanos: ninguém hoje tem bastante génio para compor um coro de Ésquilo ou uma página de Virgílio; como escultura e arquitectura, somos grotescos; (…) nunca ninguém tornou a falar como Demóstenes – e o servo, o escravo, essa miséria da Antiguidade, não era mais desgraçado que o proletário moderno.”

E nós para lá caminhamos, que me parece que as diferenças entre os nossos jovens trabalhadores e os proletários dessa época já foram maiores.


PS - Entendo alguns argumentos do Eduardo Sá e da Isabel Stilwell e de entre esses até concordo com um ou outro. Percebo a tentativa de promoção da máxima instrução (e educação) dos jovens, posição com a qual concordo. Aprender nunca é demais e faz sempre bem, não apenas à bolsa. E não esqueço a solidariedade necessária, muitíssimo necessária, com todas as outras pessoas que se encontram em situações piores, porque não faço e nunca fiz distinções entre licenciados e não licenciados a esse respeito.

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