terça-feira, 17 de janeiro de 2012

Para mudar o capitalismo...

...é preciso primeiro compreendê-lo.

Em baixo um texto que escrevi ontem à noite na sequência da participação em mais uma reunião aberta do CADPP.


« O que é fundamental é termos uma linha de pensamento simples e clara, e sermos capazes de passar essa linha de pensamento às outras pessoas. "Acumulação de capital", por exemplo, é algo que pode ser muito simples de entender para alguns, mas que claramente não nos servirá de grande coisa nesse objectivo mais fundamental.

Para mim, por exemplo, não existe burguesia. Existem pessoas com mais dinheiro do que outras. Já está. E não adianta muito tentar perceber se "eles estão unidos contra nós" ou não. É mais simples acreditar que cada um se quer safar por si o melhor que pode. Vejamos. Será que os trabalhadores estão unidos entre si ou não? Bom, toda a minha experiência, em escolas, empresas e todas as instituições por onde tenho passado, tal como toda a informação que me chega de todas as pessoas que conheço e com quem me dou, me dizem que os trabalhadores em geral se tentam safar com estratégias individuais. E as associações de trabalhadores, sindicatos e outro tipo de colectivos apenas existem enquanto os trabalhadores sentem que têm vantagens individuais em pertencer e apoiar esses colectivos. E isto quer dizer que a resposta à pergunta "os trabalhadores estão unidos ou não?" só pode ser "mais ou menos". Alguns estão por sua conta. Outros estão unidos. E hoje é assim, amanhã é assado, conforme as coisas vão evoluindo.

Se pensarmos nos empregadores, é o mesmo. E se pensarmos na malta que tem muito dinheiro e que vive dos rendimentos desse dinheiro, é o mesmo.

É evidente que isto está a apertar para todos. E eu, novamente, não vejo assim tanta diferença entre as pessoas como isso. Não vejo "burguesia" e "operários". Vejo que quando a procura desce, lixa-se o trabalhador a recibos-verdes (será patrão ou operário?), lixa-se o dono da mercearia da esquina, lixa-se o dono do stand de automóveis, e à conta disso lixam-se os seus vendedores, lixa-se o belmiro, lixa-se o banco, etc. E então o que é que as pessoas fazem?

(e perdoem-me o que vem a seguir, por ser extenso, por ser se calhar ao lado do que vos interessa mais, ou por ser demasiado simplista ou outra coisa qualquer)

Bom, há um pressuposto subjacente às teorias económicas que se ensinam em praticamente todas as escolas deste nosso admirável mundo ocidentalizado (o ensino da economia esqueceu-se que a economia é uma ciência social, e tratou de a normalizar tanto como ao pepino) e que é o de que todas as pessoas se comportam racionalmente. É o "homo economicus", esse bicho que tenta maximizar o seu quinhão. A verdade é que nem todas as pessoas são assim... Mas imaginemos que os ricos não tentam maximizar o seu quinhão. Bom, nesse caso tenderão a gastá-lo, rápida ou lentamente, e os seus descendentes provavelmente irão partir de uma situação mais desfavorável... quem sabe até terão de trabalhar como todos os demais para conseguir viver, e todos sabemos que não é a trabalhar que se faz dinheiro. A simples existência de ricos diz-nos que há pessoas que tentam maximizar o seu quinhão. E diz-nos mais. Diz-nos que mesmo que essas pessoas sejam poucas, as mais agressivas de entre elas serão as que conseguirão acumular mais riqueza. Podemos não ser todos "homo averentus", mas podemos ter a certeza que os que são, irão ficar com mais dinheiro.

E isto é assim porque vivemos numa sociedade e numa economia cujas regras favorecem o "homo avarentus". Mas se essas regras favorecem apenas os vencedores e não favorecem os vencidos, porque é que essas regras existem e estão em vigor? Em grande medida isso acontece porque os vencidos idolatram os vencedores e desejariam um dia ser como eles. Em grande medida isso acontece também porque os vencidos têm mais poder para fazer valer a sua vontade (lobbies, acesso aos media, etc.). Mas seja qual for o motivo pelo qual isso é assim, a verdade é que é.

E o que nós deveríamos estar a discutir era precisamente que regras idiotas são essas que promovem quem está melhor em detrimento de quem está pior e como mudar essas regras. Agora não nos percamos na discussão do modo de funcionamento dos mercados de derivados... Bom, adiante...

Tinha deixado no ar uma pergunta. A pergunta era: se a crise lixa todos, o que é que as pessoas fazem? A resposta é simples: fazem o que sempre fizeram, isto é, adaptam-se. Cada um, nas novas circunstâncias, adopta uma nova estratégia que pensa que será a que lhe irá conferir os maiores proveitos. E, novamente, pouco importa se todos fazem isso ou não, porque já sabemos que são os que fazem isso que vão moldar o que se passa na economia (pelo menos com as regras que temos actualmente).

Há outro pressuposto de base das teorias económicas que se ensinam, que é a informação perfeita. Isto quer dizer que se assume que, para os agentes poderem pôr a sua racionalidade em prática, eles têm de possuir informação correcta e atempada sobre tudo o que é relevante para as suas decisões. Ora este é, como não será difícil de compreender, um pressuposto muito forte, com elevada probabilidade de não estar correcto. Não só quem tem mais dinheiro tem em geral acesso a melhores fontes de informação (e às vezes a informação privilegiada, o que normalmente é ilegal mas não importa), mas também não há ninguém que tenha informação sobre tudo.

Ou seja, os ricos não são semi-deuses. Eles não sabem tudo. Não conseguem prever o amanhã. Não conseguem controlar completamente a economia. Enfim... são pobres criaturas de deus, coitados... e também têm os seus pesadelos. Claro que os têm! Porque o sistema que os acolheu é o sistema da competição!

O recordista mundial dos 100 metros também tem os seus pesadelos, claro que os tem! Foi o facto de ele ser um excelente atleta (para o qual contribuiu tudo e mais alguma coisa, como factores genéticos, o contexto social, o treinador que arranjou, os anabolizantes que tomou, etc.) e o facto de existir um jogo com determinadas regras, e a interacção entre os dois, que o tornaram no recordista mundial, e à conta disso lhe deram fama e proveito. Mas o mesmo sistema que lhe deu a glória e que por causa disso ele defende com unhas e dentes, é o mesmo que friamente o põe de lá para fora num abrir e fechar de olhos. Claro que sim! E por isso, antes de cada competição, ele tem medo. Claro que tem! E não lhe interessa nada se ele será sempre muito mais rápido do que todos os outros lá do bairro dele. Porque o que caracteriza os ganhadores é que olham sempre em frente, e nunca para os lados ou para trás. A solidariedade só atrasa!...

Portanto, na competição dos ricos, eles também ficam à rasca volta e meia. Foram eles que promoveram, para benefício próprio, as regras do jogo: a liberalização do mercado de capitais, a abolição de direitos aduaneiros dentro da zona Euro, a moeda única, os off-shores, a flexibilização do trabalho, tudo e mais alguma coisa. Foram eles que promoveram essas regras do jogo, com a anuência parva do resto da população (ninguém nasce ensinado...). Mas são essas mesmas regras que eles aprovaram que resultaram num aumento da competição, e que tanto lhes dão ganhos nunca dantes vistos como os podem atirar para o charco. O proteccionismo dos tempos da velha senhora não resultava só nas excursões a Badajoz para comprar caramelos e jogar nas slot-machines, resultava também na protecção dos ricos nacionais. E hoje eles não têm essa protecção.

Portanto, se eles, os ricos, os que têm muito mais dinheiro e acções e empresas e terrenos do que nós, estão unidos ou não?... Eles certamente unir-se-ão e abandonarão essas uniões consoante lhes pareça conveniente ou não. É simples.

E quanto à crise... volto ao início. É fundamental, a meu ver, que possamos entre nós chegar a acordo sobre uma linha de raciocínio simples, o mais simples possível, que tenha poder explicativo suficiente, à maneira do cientista (que opta sempre pelo modelo mais simples que seja capaz de explicar bem), e que sejamos capazes de passar essa linha de raciocínio simples aos outros.

A minha linha é simples e parece-me que explica bem as coisas. Imaginemos que temos dinheiro. E isso é simples, porque não é preciso muito dinheiro. Para além das pessoas que (como eu) vivem a sobreviver, qualquer pessoa que tenha umas poupanças de uns milhares de euros já estará nestas condições. Ora, nós quereremos sempre dar o melhor destino ao nosso dinheiro. E então o que é que poderemos fazer?

Uma hipótese é pôr o dinheiro, em notas e moedas, debaixo do colchão. Bom, mas isso será arriscado, pois as notas e moedas podem degradar-se ou podem ser roubadas. E além disso, como os preços das coisas misteriosamente estão sempre a aumentar, o dinheiro vai perdendo valor. Pôr o dinheiro debaixo do colchão não é uma boa estratégia.

Outra hipótese é gastar o dinheiro todo em coisas para consumir, como cervejas. Bom, mas nesse caso a história acabava aí.

Simplificando a coisa, temos três hipóteses: (1) ou investimos o dinheiro em aplicações financeiras, como depósitos a prazo ou ouro, (2) ou investimos o dinheiro em coisas que possamos alugar aos outros, como terrenos, apartamentos ou máquinas, (3) ou investimos o dinheiro em negócios, quer directamente, criando um negócio nosso, quer indirectamente, entrando no capital de outra empresa qualquer. Comprar acções de uma empresa é ao mesmo tempo optar pela estratégia (1) e (3), porque não só podemos vender as acções logo a seguir mais caras do que as compramos (se tudo correr bem), como podemos ficar com elas e receber uma parte dos lucros da empresa todos os anos (se tudo correr bem).

Em geral estas hipóteses, e as diferentes aplicações possíveis em cada uma delas, têm riscos diferentes (é mais seguro comprar certificados de aforro do que abrir um negócio próprio, por exemplo) e têm taxas de retorno diferentes. Por causa disso e porque pôr os ovos todos no mesmo cesto não é boa estratégia, a maioria das pessoas que tem algum dinheiro extra (ou muito, tanto dá) aplica-o em diversas coisas em simultâneo.

Só um pormenor de nomenclatura: toda a gente que o faz, que aplica as suas poupanças numa dessas três hipóteses, é um capitalista, uma vez que passa a receber rendimentos do seu capital, sejam eles juros, lucros, rendas, ou simples mais-valias resultantes de comprar barato e vender caro. Isto significa que a maioria das pessoas na nossa sociedade é, de um modo ou outro, capitalista. Será também burguês?... A mim, claramente, não me interessa saber se sim ou se não. O que me interessa é que há uns que têm mais e outros que têm menos, que em geral as regras favorecem quem tem mais, e que quem tem mais em geral tem-no porque foi e é mais ganancioso e menos solidário. E, portanto, é preciso mudar as regras do jogo...

Apesar desse espalhar do dinheiro pelos diferentes tipos de aplicação, a economia tem os seus ciclos, as suas modas, e num momento pode estar a render mais investir em empresas e noutro momento pode estar a dar mais investir em empréstimos.

Quando se diz que "a taxa de lucro começou a descer" o que se está a dizer é simplesmente que deixou de dar tanto dinheiro investir em empresas (sempre em termos relativos, isto é, relativamente àquilo que se investe). E isso pode acontecer por muitos motivos. As empresas operam do modo que todos conhecemos: têm instalações, têm trabalhadores, têm matérias, os trabalhadores transformam (muito ou pouco ou nada, pouco importa) as matérias nas instalações e depois vendem-nas aos consumidores. E as empresas fazem dinheiro do modo que também todos conhecemos: vendendo aos consumidores a um preço superior ao custo de produção. Esse extra é o lucro. Quem permitiu que esse lucro fosse feito foram os consumidores, que se lixaram pagando mais do que deviam pelos produtos, e foram os trabalhadores, recebendo menos do que deviam pelo seu trabalho. Mas isso agora não importa.

Então como é que as empresas começaram a dar menos lucros? Terá sido porque o custo dos trabalhadores aumentou?... Não me parece. Terá sido porque o custo das instalações aumentou? Também não me parece. Terá sido porque o custo das matérias aumentou? Bom, o preço da energia subiu um pouco... mas mesmo assim não me parece que os negócios tenham começado a ir ao charco por causa disso. A meu ver as empresas começaram a dar menos lucro porque começaram a vender menos e começaram e ter de diminuir o preço de venda (olá saldos e promoções) para aumentar a quantidade vendida. De uma forma ou de outra, o valor das vendas (produto do preço de venda pela quantidade vendida) desceu. E porque é que desceu? A meu ver isso aconteceu porque as pessoas começaram a comprar menos a cada empresa separadamente e a todas elas em conjunto. E porque é que as pessoas começaram a comprar menos?

Vários factores contribuíram para que as pessoas começassem a comprar menos. E vamos ver que em geral todos eles se agravam mutuamente... Daí a existência dos ciclos económicos, são coisas inerentes ao sistema capitalista. Isto é: com estas regras do jogo, o resultado é este. Por isso digo que o sistema capitalista não está em crise nenhuma. Pelo contrário, o sistema capitalista está a funcionar tão bem como sempre, produzindo o que é suposto produzir: ciclos de crescimento e crises. E não tarda, continuando assim, sairemos da crise. Podem registar para a posteridade: não se irá passar nada de mais, as regras do jogo (infelizmente) não serão muito alteradas, e se o forem serão para pior (do ponto de vista de quem tem menos) e apesar disso vamos sair da crise e vamos voltar a entrar num ciclo de crescimento. Isso acontecerá em menos de uma década. E isto parece-me mais provável, infelizmente, do que seria necessário para mudar esta chafarica toda: a maioria das pessoas acordar. Oxalá me engane...

Vamos lá às causas que levam as pessoas a comprar menos. (1) Em primeiro lugar isso acontece por causa do aumento da concorrência. O aumento da concorrência não faz com que as pessoas comprem menos em termos globais, mas faz com que deixem de comprar tanto a uma dada empresa (por exemplo uma empresa nacional) para passarem a comprar também a outra empresa (por exemplo uma empresa estrangeira). (2) Em segundo lugar as pessoas compram menos porque têm menos necessidade de comprar. Isto até pode parecer estúpido, mas pode acontecer. No jargão das empresas fala-se muitas vezes no "parque instalado", querendo dizer a quantidade de equipamentos que já foram vendidos e que já estão a ser utilizados pelos clientes. Se todas as pessoas comprarem adaptadores para a TDT (televisão digital terrestre) isso será um óptimo negócio para algumas empresas, mas à medida que o parque instalado aumentar, o consumo irá cair, porque ninguém estará muito interessado em continuar a adquirir mais adaptadores para a TDT. (3) Em terceiro lugar as pessoas compram menos porque têm menos rendimento disponível para comprar coisas. Isso pode acontecer por uma série de factores: (3.1) porque o seu salário diminuiu, (3.2) porque já não têm o mesmo acesso a empréstimos baratos como tinha dantes (ou não lhe emprestam mesmo ou a taxa de juro do empréstimo sobe e elas retraem-se na contracção de novos empréstimos), (3.3) porque os juros dos empréstimos contraídos no passado aumentaram (por exemplo o empréstimo à habitação), (3.4) porque os impostos aumentaram, ou (3.5) porque os preços de alguns produtos essenciais aumentaram (como por exemplo a gasolina, que é essencial para muita gente).

Ora, as próprias regras do jogo defendidas pelos ricos foram em grande medida responsáveis pela verificação de várias destas condicionantes. A globalização, o consumismo, o aumento da competição, da competitividade e da produtividade levaram a um aumento da concorrência (condicionante 1), a um aumento do parque instalado (condicionante 2... embora esta condicionante me pareça pouco relevante nesta análise) e a uma diminuição dos salários (3.1) (quer directamente, pagando menos a cada trabalhador, quer indirectamente, através de despedimentos, tornados possíveis pelos aumentos de produtividade).

Mas, para além disso, houve outra coisa muito importante que aconteceu: a subida das taxas de juro. Não sei ao certo se a subida das taxas de juro foi originalmente orquestrada por interesses que envolvem agências de rating (privadas, não esquecer... faz parte das regras do jogo), bancos e ricaços, ou se resultou de um simples processo de especulação (seja lá com o sub-prime nos EUA ou outra coisa qualquer, pouco importa) e dos tais "activos tóxicos" (que não são mais do que empréstimos, seja sob a forma de obrigações ou empréstimos normais ou outra coisa qualquer, a entidades que dificilmente poderão reembolsar esses empréstimos). Isso agora pouco importa, e novamente acho que é fundamental centrarmo-nos no essencial e não perdermos tempo com especulações.

A verdade é que as taxas de juro subiram. E à conta disso o acesso ao crédito diminuiu (3.2) e os pagamentos dos empréstimos tornaram-se mais gravosos (3.3).

Na mesma brincadeira que esteve na origem das taxas de juro, houve bancos a ameaçar falir. E para proteger os interesses das pessoas que tinham dinheiro nesses bancos, o Estado deu-lhes dinheiro. Como o Estado português já não pode emitir moeda (são as regras do jogo), ele teve de ir buscar esse dinheiro a algum lado. Em parte ele foi buscá-lo aos contribuintes, aumentando os impostos (3.4) e em parte foi pedi-lo emprestado aos bancos. Este último aspecto é uma clara brincadeira de mau gosto. Toda a gente poderia ter previsto o que se iria passar como consequência disso. No entanto, ninguém permitiu que o Banco Central Europeu (BCE) interviesse, emprestando dinheiro aos estados a juros baixos. Novamente, são as regras do jogo que os capitalistas tanto se esforçaram por implementar, com a anuência das populações que foram claramente enganadas. Bom, em vez de porem o BCE a intervir, preferiram deixar o FMI entrar em cena, e então é que foi uma alegria. Os bancos e o FMI emprestam ao Estado português. Como os juros são elevados, o Estado português recebe o dinheiro para pagar empréstimos antigos e fica ainda mais lixado com os novos... A armadilha da dívida, que já todos conhecem, e que até o Bagão Félix noutro dia na Antena 1 revelou (se se lembram).

Portanto, conseguimos de um modo ou de outro garantir que os consumidores passassem a comprar menos, diminuindo o lucro gerado pelas empresas. Em simultâneo verificou-se um aumento muito razoável das taxas de juro. Ora, nestas circunstâncias, o que é que fazem as pessoas que têm algumas poupanças? Entre aquelas três hipóteses de aplicação que enunciámos lá em cima, naturalmente as pessoas começarão a apostar mais na hipótese (1), as aplicações financeiras, empréstimos, obrigações, e por aí, e começarão a retirar dinheiro da hipótese (3), investir nas empresas.

O que é que resulta desta mudança de atitude, de (3) para (1)? Bom, resulta naturalmente que muitas empresas fecham portas. Ora isso resulta em muito desemprego, que é a forma mais radical de diminuir o salário das pessoas. Portanto, muitas pessoas deixarão de consumir, o que irá afectar negativamente as restantes empresas e agravar todo o ciclo. Além disso, essas pessoas desempregadas, se ainda tiverem a sorte de receber subsídio de desemprego, deixarão de ser uma fonte de receita para o Estado e passarão a ser uma fonte de despesa, o que fará com que o Estado tenha de pedir ainda mais empréstimos e aumentar ainda mais os impostos, agravando o ciclo.

(( Só um aparte sobre a questão de os empresários aumentarem os salários para com isso aumentarem a procura interna, aumentarem as suas vendas e aumentarem os seus lucros. De facto, a estratégia faz sentido e já foi aplicada muitas vezes no passado. Henry Ford, no início do século XX, pagava muito bem aos seus trabalhadores, porque sabia que eles seria os primeiros clientes dos seus automóveis. E é claro que pagar bem é mau para o lucro. Mas vender bem é ainda melhor, e no fim acaba por render. A questão é que não estamos no início do século XX. Estamos no início do século XXI. E hoje há muitos mais sítios onde gastar dinheiro. E portanto, se um empresário pagar mais aos seus trabalhadores, os trabalhadores podem gastar o dinheiro que têm a mais em todo o lado excepto em produtos da empresa onde trabalham. Mesmo se pensarmos no caso de uma economia em que só existem duas empresas concorrentes, estaremos num caso perfeito para aplicar a teoria dos jogos e algo parecido com o dilema do prisioneiro. Nomeadamente, se ambos os empresários aumentarem os salários, ambos aumentarão os seus lucros. No entanto, se apenas um deles aumentar os salários, ele verá os lucros diminuírem e o concorrente verá os lucros aumentarem. Nessas circunstâncias tudo indica que nenhum deles irá aumentar os salários. E isto com apenas duas empresas concorrentes, que fará com milhares! E com isto se demonstra que em determinados aspectos, os empresários não agem concertadamente. Só o fazem, como é natural, quando garantidamente isso lhes dá jeito. ))

A questão com o avanço do capitalismo é que as empresas tornaram-se mais supérfluas, porque os produtos que elas produzem também se tornaram mais supérfluos. Antigamente, as empresas produziam produtos que eram na sua maioria bens de primeira necessidade (comida, roupas, etc.). Hoje em dia, a maioria das empresas vende bens que não são de primeira necessidade (não vou listar produtos desse tipo, porque são aos milhões, e creio que os podem imaginar sem dificuldade). Isso significa que, quando o rendimento aperta, as pessoas muito mais facilmente deixam de consumir esses bens que não são de primeira necessidade. Significa, portanto, que as empresas se tornaram muito mais vulneráveis.

Além disso, o avanço do capitalismo e do seu motor que é a competição, também traz aumentos enormes na produtividade. E isso faz com que cada vez menos fábricas sejam capazes de abastecer um número cada vez maior de pessoas.

Por estes dois motivos, os ciclos podem-se tornar muito mais severos. Isto é, muitas empresas terão de ir à falência até que finalmente sobrem algumas, poucas, que realmente são mesmo necessárias para o fornecimento de bens essenciais, e essas então poderão ver o seu lucro aumentado (porque a sua procura não descerá muito, até pode aumentar com a falência das empresas concorrentes, e os salários dos trabalhadores e os preços de outras matérias descerão muito).

É este mecanismo, penso eu, que (...) tentaram explicar acerca da entrevista com o brasileiro. A ideia de que há demasiado capital que é necessário destruir antes que as taxas de lucro comecem novamente a subir. E que, portanto, acrescento eu, ainda estamos no começo do que está para vir!...

Outra coisa que deveria acontecer como consequência da mudança das atitudes das pessoas face às suas poupanças, apostando mais em empréstimos (1) e menos em empresas (3), é que o aumento do dinheiro disponível para aplicações financeiras deveria fazer com que as taxas de juro voltassem a descer. É o que nos dizem também as teorias económicas que se ensinam nessas escolinhas todas por aí, universidades ao barulho: aumenta a oferta do dinheiro, logo o preço do dinheiro desce. No entanto, ainda estamos para ver isso a acontecer. Até mais ver, parece que a tendência é para as taxas de juro se manterem elevadas ou até para aumentarem.

Sinceramente não tenho certezas sobre porque é que isto acontece assim. No entanto, tenho as minhas suspeitas. É que os mercados não são, ao contrário do que dizem as teorias neo-clássicas (felizmente há outras!...), lugares de encontro entre quem oferece e quem procura, onde as coisas são negociadas de igual para igual. O fundamental nos mercados é sempre a diferença de poder entre as partes que se encontram para transaccionar. Disso se alimenta o capitalismo... Vemos o que acontece, por exemplo, no mercado do trabalho. Mas adiante. O que acontece no mercado do dinheiro é que há devedores de empréstimos enrascados, que terão de pagar os seus empréstimos (se quiserem continuar a ser bem comportadinhos) aconteça o que acontecer à taxa de juro. Entre eles temos milhões de pessoas com créditos à habitação, milhares de empresas com créditos ao investimento, e muitos Estados com créditos para pagar outros créditos e bancos falidos. Nesse mesmo mercado do dinheiro, do outro lado, há as pessoas com dinheiro, que fazem gato-sapato do primeiro conjunto de necessitados. E isso tem um nome: chama-se agiotagem. Portanto temos agiotas que esmifram os outros tanto quanto podem. E enquanto os agiotas sabem que não podem esmifrar muito as pessoas, porque senão elas ficam simplesmente sem meios de pagar e não pagam mesmo, eles sabem que podem esmifrar os Estados à sua vontade, porque os estados nunca podem falir (se forem bem comportadinhos) e terão sempre de arranjar maneira de pagar. Por isso as taxas de juro não baixam. Não nos esqueçamos que, de cada vez que um Estado vai colocar títulos de dívida pública à venda, os investidores são livres de comprar a taxas de juro mais baixas se assim entenderem. E, portanto, se não o fazem é porque sabem que os Estados vão continuar a subir a taxa de juro oferecida até garantir que alguém compra aquilo, porque estão necessitados. Em consequência do gato-sapato que os agiotas fazem com o Estado português, nós vemos como o Estado português faz gato-sapato connosco. E fosse apenas através do aumento dos impostos... é muito mais do que isso... é preparar a caminha toda para a malta que tem dinheiro: desmantelando os serviços públicos da educação, da saúde, dos transportes, da segurança social, da electricidade, da água, e passando tudo para os privados; desregulamentando o mercado de trabalho e desequilibrando ainda mais as relações de poder em favor dos mais fortes; etc.

Mas um dia, mais ano menos ano, as pessoas estarão tão na merda que aceitarão de bom grado um trabalho com as condições que costumamos imaginar existirem nos países asiáticos (independentemente de existirem mesmo ou não, isso pouco importa). Nesse momento, se entretanto as taxas de juro tiverem baixado um pouco, voltará a ser interessante apostar nas empresas. E tudo voltará calmamente ao mesmo.

E são as regras que permitem que isto seja assim que nós precisamos de mudar! Desde as mais simples (como por exemplo o papel do BCE no meio disto tudo) até às mais fundamentais (como a simples existência do juro).

Deixo uma questão a debate, em jeito de provocação: e que tal fechar as fronteiras à circulação de mercadorias? O que resultaria daí? Ou outra: e que tal impedir a livre circulação de capitais? O que resultaria daí?

São regras como essas que permitem que estas coisas nos aconteçam, e são regras como essas que temos de repensar.

Fica este contributo.
Abraços.
al »

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