No seguimento do último artigo aqui publicado sobre a produção de ciência, uma reflexão própria acerca deste tema.
Há muitas coisas que estão profundamente erradas na ciência, enquanto método de produção de conhecimento, tal como é praticada nos nossos dias.
Podemos distinguir, mesmo que artificialmente, dois tipos diferentes de investigação: a fundamental, que procura descortinar os fundamentos dos fenómenos observáveis, e a aplicada, que procura resolver uma situação concreta através da aplicação de conhecimentos em grande medida já existentes.
Nos dias de hoje, ambos os tipos de investigação se desenrolam de modo muito diverso do que era feito em tempos idos. Em qualquer caso, a investigação sempre necessitou de um excedente de recursos, incluindo tempo. Sem tempo nem materiais disponíveis para além dos necessários à sobrevivência, toda a investigação se tornava mais difícil ou mesmo impossível. Além disso, especulo, a apropriação dos ganhos da investigação seria também muito importante. Quem não tivesse tempo ou materiais ou não pudesse ficar com o fruto da investigação para si não teria grande motivação ou capacidade para se dedicar a essa actividade. Pelo contrário, quem dispusesse de tempo e materiais e pudesse apropriar-se dos benefícios da investigação, só precisaria de juntar o ingrediente da curiosidade ou da vontade de mudança e melhoria para levar a cabo a investigação.
A investigação seria assim, nos seus primórdios, uma actividade conduzida por um indivíduo isolado, e eventualmente alguns subalternos. Mas com o passar do tempo, e à medida que as descobertas mais fáceis e os conhecimentos mais triviais eram consolidados, a investigação e o alcance de conhecimentos novos foi-se tornando cada vez mais difícil. Foi surgindo cada vez mais a necessidade de construção de equipamento próprio e dedicado à investigação, a necessidade de especialização de cada indivíduo numa determinada área do saber, a necessidade de medição mais precisa, a necessidade de colaboração entre diversos indivíduos. Foram então proliferando os pequenos laboratórios particulares, os livros e as cartas que eram trocadas entre investigadores. A ciência foi-se dividindo nos seus ramos.
Alguns séculos se passaram e actualmente tudo isto foi levantado a um novo expoente. Hoje em dia, a investigação científica recorre em grande medida a equipamentos muito sofisticados, é muito especializada, requer muito tempo, muita dedicação, muita colaboração de vastas equipas de cientistas...
No entanto, a questão primordial que devemos sempre colocar, aquela questão aparentemente ingénua mas que não deve ser contornada, é a de saber para quê: qual é o objectivo actual da investigação científica?
Como sempre, a resposta evidente é: a investigação científica é conduzida para que possamos dar resposta às questões que ainda não a têm e finalmente para que possamos todos viver melhor. No entanto, e contrariamente àquilo que pode parecer evidente, para podermos saber se a ciência nos permite viver melhor, precisamos antes de mais nada de saber do que verdadeiramente precisamos para viver melhor. Do que é que as pessoas verdadeiramente precisam para viverem bem?
Precisarão as pessoas de televisores, de telemóveis, de automóveis? E de televisores tão finos como uma folha de papel, telemóveis minúsculos e carregadíssimos de funcionalidades e automóveis pejados de electrónica e super-potentes?
E de afecto, precisarão as pessoas de afecto?...
Uma das coisas que seria expectável como fruto da actividade científica seria o aumento do conhecimento de toda a população. Esse aumento de conhecimento pode dar às pessoas uma mundivisão mais abrangente e mais coerente, e pode também dar-lhes um maior domínio sobre si próprias e sobre o mundo que as rodeia, fazendo-as sentir mais capazes e mais úteis e dando mais sentido às suas vidas. Parece-me que isso seria algo muito importante para aumentar o bem-estar das pessoas neste planeta.
No entanto, agora que a investigação científica se concentra em questões de âmbito cada vez mais restrito e mais difíceis de alcançar, cabe perguntar se o seu fruto permitirá verdadeiramente que as pessoas vivam melhor.
A especialização do saber e das actividades acarreta efeitos secundários indesejáveis. A tecnologia sofisticada também. No fundo, os avanços na ciência também. E é importante e necessário colocar tudo isto na balança.
Mais especificamente é necessário saber até que ponto é importante canalizar recursos para a produção de conhecimento novo ultra-especializado, quando há investimentos gigantescos por fazer na interligação e na disseminação do conhecimento já existente.
Não será a espécie humana já detentora do conhecimento suficiente para acabar com a fome no mundo, para acabar com a obesidade, para despoluir os rios e as florestas, para implementar modos de vida mais ecológicos e saudáveis, para aumentar a qualidade de vida de todos?
No entanto, se atentarmos bem, grande parte da investigação científica, sobretudo a mais ligada às ciências da física, da química, da biologia e afins, e que requer investimentos maiores, é orientada pela obtenção de lucro. Há quem acredite que o lucro é o motor da economia e que isso está muito bem assim, pois ele baseia-se na satisfação das vontades individuais. No entanto, basta lembrarmo-nos do caso das drogas para sabermos que há algo de errado nesse modelo.
Há sempre o caso paradigmático da investigação médica. No entanto, mesmo nesse caso devemos levantar algumas questões fundamentais. Será que queremos mesmo viver para sempre?... Quais as consequências disso?... Quais as consequências do actual envelhecimento da população nos países mais desenvolvidos?... Como atacar as questões por ele levantadas?...
Bom, mas passemos a questões mais concretas sobre o modo como se processa a investigação científica. Em geral a investigação científica é realizada por uma data de indivíduos muito bem intencionados, no auge das suas capacidades, chamados bolseiros, e por outra data de indivíduos potencialmente menos bem intencionados, chamados professores de ensino superior.
Os bolseiros são jovens que em geral têm currículos académicos bons, têm curiosidade, têm criatividade, querem saber mais, querem desenvolver coisas novas, e não arranjam melhor maneira de o fazer do que trabalharem para uma instituição a troco de um mau salário sem quaisquer garantias do que quer que seja. Os bolseiros são trabalhadores precários. Os chefes dos bolseiros são uma mistura entre investigadores seniores e gestores (há gestores, investigadores, investigadores-gestores e gestores-investigadores), cuja principal preocupação é a de conseguirem financiamento para os projectos da sua instituição. O financiamento é conseguido sobretudo através da candidatura de projectos que possam dar à instituição um reconhecido prestígio público, apenas no caso das instituições públicas, ou, o que é mais comum, que possam dar a instituições privadas alguma perspectiva de lucro acrescido no futuro.
Os professores do ensino superior, público, particular ou cooperativo, universitário ou politécnico, têm como principal função... será ensinar?... Não. A sua principal função, de acordo com os seus interesses particulares, é manterem ou melhorarem a sua posição. A manutenção e a progressão na carreira de professor requer avaliações positivas. E as avaliações positivas requerem produção científica. Não sei bem quem engendrou este sistema, mas a verdade é que, na profissão de professor do ensino superior, a capacidade de motivação dos alunos, de educação e de transmissão de conhecimentos é o que menos interessa. O que é avaliado é a produção científica.
Em ambos os casos, dos professores e dos bolseiros, a quantidade da produção científica é em geral avaliada pela quantidade de artigos e outros documentos publicados e a qualidade é avaliada pelo contexto em que esses documentos são publicados.
A questão que se levanta é a seguinte: se alguém está na vanguarda do conhecimento numa determinada área do saber, como é possível avaliar a qualidade do seu trabalho? Quando é possível, como consequência do novo conhecimento alcançado, fazer previsões que facilmente se demonstrem adequadas, a avaliação torna-se fácil. Mas quando assim não é...
Desde há bastante tempo que a avaliação da qualidade do trabalho científico é feita entre pares. De resto é assim com todas as outras actividades humanas. Um bom músico prefere ser reconhecido por outros que ele também considere bons músicos, e não por leigos. Desde há poucos séculos, as sociedade científicas desempenhavam esse papel. Eram o local onde se reuniam as pessoas que mais sabiam de uma determinada área do saber e onde as ideias eram discutidas e de algum modo avaliadas.
Hoje em dia, no entanto, a necessidade de um reconhecimento expresso que possa ser apresentado como prova no momento de avaliação e de progressão na carreira transformou as discussões informais na formal publicação de artigos em revistas e conferências. E a avaliação desses artigos é feita por painéis de supostas sumidades na matéria.
O que é que acontece quando as próprias sumidades são avaliadas de acordo com o mesmo método, e quanto tudo isto é transformado em transacções com contrapartida monetária?...
Bom, o que acontece é o seguinte:
- como é sabido que todos os investigadores (bolseiros ou professores ou outros) são avaliados pelos artigos publicados em revistas ou conferências, a possibilidade dessa publicação passa a ter um preço, isto é, cobra-se a publicação de artigos em revistas ou em conferências;
- as revistas e as conferências científicas transformam-se assim num negócio onde prestígio e dinheiro estão relacionados das mais diversas formas e onde aparentemente todos ficam a ganhar. Quem organiza fica com o dinheiro e com o prestígio, os participantes juniores ganham prestígio a troco de dinheiro, os participantes seniores ganham prestígio e conferem prestígio à conferência e aos juniores, etc. A revisão de artigos é também um processo onde se troca prestígio e dinheiro;
- como a publicação de artigos é em geral muito cara, os investigadores que não estejam associados a uma instituição com alguma capacidade financeira ficam prejudicados. Ao mesmo tempo, essas instituições, para não incorrerem apenas nos custos elevados de publicarem artigos dos seus investigadores, promovem também as suas conferências e as suas revistas próprias. Assim o dinheiro circula entre as instituições.
É assim que o mundo está pejado de investigadores seniores que se divertem a saltar de conferência em conferência nas paisagens e nos hotéis mais aprazíveis do planeta, enquanto os bolseiros e os professores juniores que tentam preservar a sua situação vão suando as estopinhas.
Ah, ia-me esquecendo... O número de vezes que um artigo é referido noutros artigos é também utilizado como critério de avaliação da qualidade da produção científica. E nesse sentido surgiram os chamados "clubes de citações"... Isto é quase como o jogo do software de vírus e de anti-vírus. Nisso a imaginação humana é imbatível! :) E depois há o milagre da multiplicação dos artigos, em que cada parcela de produção científica serve de base para uma multidão de artigos apenas ligeiramente distintos uns dos outros...
O que acontece, em suma, é um imenso jogo de influência, de poder, de dinheiro, o mesmo que noutros círculos sociais, e através do qual se perde a oportunidade de concentrar esforços naquilo que é verdadeiramente mais importante, a oportunidade de dar vidas dignas às pessoas, e de homogeneizar um pouco mais o conhecimento em toda a população.
Pelo meio, lá vão resultando algumas coisas que verdadeiramente funcionam. Mas fica sempre a questão: serão elas verdadeiramente necessárias?...
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