sexta-feira, 9 de novembro de 2012

A religião, o ópio e o povo...


Pois então é necessário um equilíbrio? Concordo. O problema com isso, como com uma data de outras coisas, incluindo as tais pessoas equilibradas do aforismo número cinco, é que o equilíbrio de uns é o desequilíbrio de outros. E aquilo que é um equilíbrio hoje, pode ser um grande desequilíbrio amanhã.

Depois da grande depressão de 1929, vários grupos musicais dos Estados Unidos da América que antes se tinham especializado em tocar “blues”, um género musical soturno, evoluíram para “big-bands” tocando músicas muito mais alegres. As pessoas estavam psicologicamente deprimidas com a depressão económica e era preciso alegrá-las.

Aí está um exemplo de um equilíbrio dinâmico que se adapta às circunstâncias. E à partida tudo parece estar bem. Mas atentemos um pouco mais.

Um jovem aluno de liceu deverá também ele encontrar um equilíbrio entre o tempo e o esforço dedicados ao estudo e à brincadeira com outros jovens. Este equilíbrio pode também ser dinâmico e adaptar-se às circunstâncias. Nesse caso, quando os problemas lectivos aumentarem, ele pode aumentar ou diminuir o tempo e o esforço dedicados a ultrapassar esses problemas. As duas opções são possíveis e correspondem a duas estratégias diferentes de lidar com os problemas.

O mesmo exemplo pode ser transposto para muitas outras situações. Pode ser citado acerca de qualquer drogado cujos problemas com essa droga aumentam. Imaginemos o caso de um jovem adulto que fuma e cujo pai, que também fumava muito, morre de cancro do pulmão. Esse jovem adulto pode deixar de fumar ou pode passar a fumar mais. E o mesmo tipo de escolha entre diferentes estratégias se pode aplicar aos problemas sociais e económicos que vivemos hoje em dia.

Em geral, as duas estratégias em confronto são: por um lado, a atitude de parar para pensar, de identificar os problemas, de os encarar de frente e de os tentar resolver com lógica, com método e com conhecimento das relações de causa e efeito que o afectam; por outro lado, a atitude de meter palas nos olhos, de encontrar uma justificação qualquer para não ter de pensar no assunto, para evitar o confronto com ele, e procurar fontes de prazer que tragam um bem-estar imediato e façam esquecer os problemas.

Penso que não teremos dificuldade em considerar que a primeira destas duas estratégias é mais responsável, mais madura, e é a única que é efectivamente consequente na resolução definitiva dos problemas. Apesar disso, quer no caso das “big-bands”, quer no caso da fuga para a frente que a actual crise estimula nas pessoas (que vão dizendo umas para as outras e de si para si que está tudo bem, que tudo se há-de remediar, que já se verá, que... vamos ao cinema), a estratégia aparentemente mais comum é a segunda, a tentativa de ignorar o verdadeiro problema.

Porque é que isto é assim?...

Na busca de razões que o justifiquem há três que se podem tornar mais evidentes. A primeira razão é que muitas pessoas podem possuir os meios capazes para garantir a si próprias um bem-estar duradouro, mesmo que esse bem-estar seja conseguido com custos elevados para terceiros. Muitas pessoas podem não possuir efectivamente esses meios, mas podem julgar que os possuem. A segunda razão é que os custos infligidos a terceiros por aquilo que traz bem-estar a um sujeito podem não ser percepcionados por esse sujeito. Isto é, o sujeito pura e simplesmente desconhece que as suas acções e omissões implicam custos para outros, ou para si próprio, mesmo que num futuro mais distante. E isto está relacionado com a terceira razão.

A terceira razão para se optar pela estratégia da fuga em frente é a da percepção de poder ou da sua falta que as pessoas possuem sobre os problemas que as afligem. Quando alguém sente que não tem qualquer poder para alterar um determinado problema, torna-se perfeitamente racional tentar evitar o problema em vez de o enfrentar. Do mesmo modo, quando não se é toureiro e não se possui qualquer arma, a atitude mais normal é de fugir do touro, não é de o enfrentar.

Imaginemos, por um instante, um mundo onde só existem consumidores e traficantes de droga, sendo que ninguém acumula estas duas características. Neste mundo, os traficantes alimentam-se do consumo que os outros fazem da sua droga. Se essa droga trouxer muito prazer mas também muitos prejuízos aos seus consumidores, eles terão um problema. Poderão encarar esse problema de frente e compreender que terão de diminuir o consumo de droga para evitar os respectivos prejuízos.

No entanto, é razoavelmente evidente que em semelhante mundo os traficantes preferem que a estratégia seguida pelos consumidores seja a de tentar evitar o problema, continuando a consumir a mesma droga ou até aumentando o seu consumo. Não é difícil de imaginar também que nesse enquadramento os traficantes possuam maior poder de influência do que os consumidores. Se assim for, decorre que será apenas natural que eles utilizem esse mesmo poder para transmitir aos consumidores a ideia de que não há problema ou então de que o problema não pode ser resolvido por eles.

E embora nesta situação o problema seja da responsabilidade de ambos, consumidor e traficante, a verdadeira ultrapassagem dos problemas do consumidor exige que ele se consciencialize de que tudo depende de si. Por isso mesmo um psicólogo irá tentar convencer (mesmo que lhe dê outro nome) um tóxico-dependente que a culpa da sua situação é só sua, mesmo quando isso não é verdadeiro. É que pode até não ser verdadeiro, mas é o mais útil, o mais eficaz, na resolução do problema.

Não será demais chamar a atenção para o paralelismo entre este exemplo da droga e a situação actual da crise económica. Neste caso, os consumidores de droga correspondem às pessoas que sofrem com a crise económica, e isso somos a grande maioria de nós, e os traficantes correspondem às pessoas que beneficiam com a crise económica. Se alguém tiver dúvidas acerca da existência de pessoas que beneficiam da crise, basta saber que nunca a riqueza esteve tão concentrada como hoje, ou que os juros todos que pagamos de todo o tipo de dívidas são sempre o rendimento de outras pessoas, que recebem rios de dinheiro sem terem de mexer uma palha.

Nestas circunstâncias, não é de estranhar que quem tem mais poder (sejam as pessoas mais ricas, sejam os políticos do poder, sejam os fazedores de opinião, seja quem for) utilize esse mesmo poder (materializado num determinado discurso que é propalado sistematicamente pelos meios conhecidos) para nos fazer acreditar que a resolução dos nossos problemas económicos está para além da nossa esfera de influência. No fundo, fazem-nos acreditar que nada podemos fazer, que não há nada a fazer, que não há alternativas. Por vezes mesmo fazem-nos acreditar que a única hipótese é insistir, com ainda mais intensidade, no consumo da droga que nos trouxe até à situação actual. É esse o discurso de quem insiste que para sairmos da crise temos de trabalhar mais, de ser mais competitivos, temos de cortar nos gastos sociais do Estado, etc.

Nestas circunstâncias, não é de estranhar que a estratégia que a maioria das pessoas adopte para lidar com os problemas seja a fuga em frente. Acreditando que nada podem fazer, as pessoas agem como o aluno cujo aproveitamento escolar é mau e em vez de se dedicar ao estudo entrega-se às coisas que o fazem esquecer e lhe dão algum prazer imediato.

Portanto, quando se diz que é necessário encontrar um equilíbrio entre o divertimento e esforço que exige o encarar os problemas de frente, a questão é a de saber que equilíbrio é esse. Aparentemente o equilíbrio encontrado pelas pessoas, motivadas pela crença de que não existe alternativa e de que a resolução efectiva dos problemas está para além do seu poder, é o das “big-bands” dos anos 30.

Folia e mais folia, até ao dia em que o problema se resolverá por sua conta, até ao dia...

Mesmo sabendo nós que o alcoólico que afoga os seus problemas em mais álcool dificilmente ultrapassará esse problema.



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