terça-feira, 3 de dezembro de 2013

O IKEA, o consumo, a produtividade, o crescimento, a competitividade e o diabo-a-sete que faz sempre bem à economia...




"Espero que todos compreendam a importância que este investimento tem. Importância para a economia portuguesa, claro está. E importância para o 'cluster' imobiliário em Portugal. Importância para a indústria portuguesa."



Vamos desculpar ao Sócrates a confusão entre imobiliário e mobiliário. De resto, tudo o que ele disse aquando da inauguração da fábrica da IKEA em Paços de Ferreira é verdade. O que talvez escape às pessoas é que o que é bom para a economia não é necessariamente bom para elas, porque neste contexto, economia não é o mesmo que pessoas. Aliás, este é um tema que já aflorei um pouco no passado, por exemplo aqui, aqui ou aqui. Troquem-se ligeiramente as palavras e já o discurso de Sócrates (ou de qualquer outro político do PS, do PSD ou do CDS ou qualquer empresário ou representante dos seus interesses) faz todo o sentido:

"Espero que todos compreendam a importância que este investimento tem. Importância para os empresários portugueses, claro está. E importância para os empresários do 'cluster' do mobiliário em Portugal. Importância para os industriais portugueses." - era assim que o discurso deveria ter sido, para ser mais claro.

A história é sempre a mesma. De cada vez que um senhor feudal ou empresário ou empreendedor ou investidor, interno ou externo, decide que vai gastar dinheiro (e quanto desse dinheiro são apoios ao investimento financiados pelos contribuintes que somos nós?), logo a ideia é vendida às pessoas como se isso fosse o paraíso na terra, aquilo de que todos precisamos para sermos felizes. Se há coisa que uma população de gente esfaimada compreende muito bem é a palavra "emprego". Emprego é a possibilidade de, a troco de mais uns meses ou anos de escravidão, continuar a ter pão para a boca. Para quem tem dificuldade em arranjar o pão para a boca, isso soa a paraíso, claro está.

É assim que qualquer investimento que crie empregos é considerado por todos como algo de verdadeiramente maravilhoso! Criar empregos é uma coisa maravilhosa! Sempre deu, ao longo da história, direito a bustos dos senhores feudais, financiados, claro está, pelos empregados.

E quanto mais empregos o investimento criar, melhor o investimento é. Mais importante o investimento é... para a economia portuguesa... claro está.

Na república dos bananas (que somos nós... a república... e os bananas também... claro está) há regras. Há por exemplo uma regra que diz que as empresas têm de pagar imposto sobre os seus lucros, ao qual se chama IRC. Há também regras relativamente ao ordenamento do território que incluem o respeito pela reserva agrícola nacional (RAN) e pela reserva ecológica nacional (REN). E há outras regras, como por exemplo a que diz que se eu precisar de um pedaço de terreno para construir uma casa para poder viver nela, tenho de pagar forte e feio e o Estado está-se a marimbar para isso.

Mas quando se anuncia um investimento com criação de muuuuitos postos de trabalho, tudo se modifica. É que os PIN (projectos de potencial interesse nacional) também são uma regra que funciona como um 'joker' das cartas e se sobrepõe a todas as outras regras. De repente passa a poder construir-se em plena reserva ecológica ou agrícola (ou até em plena paisagem protegida, como aconteceu em Tróia), o IRC praticamente desaparece, os terrenos do Estado são vendidos ao desbarato, e tudo são benesses.

Sabemos que o Estado celebrou com o IKEA um acordo para essas benesses todas. Infelizmente, depois de pesquisar um pouco na Internet, não consegui aceder ao conteúdo desse acordo. Porque será?...

Só há uma regra que os tipos do IKEA e do governo e restantes empresários e empreendedores e malta fixe continuam a cumprir escrupulosamente: a regra do salário mínimo. Em 2010 a maioria dos 1000 trabalhadores da fábrica da IKEA em Paços de Ferreira auferiam 475 € de salário mensal. E as condições de trabalho eram de modo a que a produtividade estivesse sempre ao rubro... De 2010 para cá, as coisas não podem ter melhorado. Talvez agora também lá tenham estágios não remunerados e espalhem aos quatro ventos que estão a dar formação gratuita às pessoas!...

Ainda este ano a IKEA voltou a ser acusada pela Quercus de construir em RAN. Mas, novamente, isso não é nada que uma classificação de PIN não ultrapasse, a bem da economia nacional, claro está.


Esta última imagem, publicada no Jornal de Notícias de 31 de Maio de 2008 tinha a seguinte legenda "Maria José, Zélia e Custódia arranjaram emprego". E que bem que elas ficam de jardineira azul e t-shirt branca... Tal como no vídeo de lá de cima, enquanto o Sócrates diz que é bom para a economia e mostra como se serram troncos, estes 'recursos humanos' ficam sempre muito bonitos... há que tratá-los com o jeitinho necessário... olha se algum ganha uma doença?... e depois é uma chatice!... tem que se mandar abater...

A economia, organizada nestes moldes, mais do que perniciosa, é fétida. A ideia de que a criação de empregos é algo divino e que merece todo o nosso respeito e até subserviência é a demonstração evidente de como a ideologia capitalista está enraizada dentro das pessoas. Não interessa que os empregos sejam mal pagos, não permitam a evolução espiritual ou material das pessoas, não as emancipem, não permitam nunca que elas se apoderem dos seus próprios destinos, e que a fatia de leão do produto do seu trabalho seja apropriada pelo empresário ou investidor ou o raio que o parta!

Entretanto, em simultâneo, o IKEA e as outras multinacionais que todos conhecemos neste início de século vão extinguindo inexoravelmente os pequenos produtores. As leis do jogo, a competitividade, a produtividade, e o diabo-a-sete, ditam isso mesmo.

Há tempos pensei que me daria muito gozo poder fazer trabalhos em madeira. Pensei mesmo em tornar-me aprendiz de carpinteiro. Depois constatei que nas cidades que melhor conhecia já quase ninguém recorria a carpinteiros, que os poucos que ainda sobreviviam faziam-no com dificuldade, que toda a gente se abastecia em IKEA e coisas do género. Pensei que nos sítios mais recônditos fosse diferente. Há uns anos, em Rio do Onor, em conversa com um velhote de lá, constatei que afinal é o mesmo em toda a parte.

E hoje mesmo percebi que a madeira da criptoméria, árvore introduzida há cerca de duzentos anos nos Açores para fins comerciais (e que ajudou a dar cabo da flora original do arquipélago), também está a dar o seu lugar aos aglomerados de pinho de outros tantos IKEA deste planeta. É o que as pessoas preferem...

Mas vamos ter esperança, que já se fala na "criação do cluster silvo-industrial da 'criptoméria dos Açores'". A postura e a linguagem é toda a mesma: recursos naturais, cluster da fileira florestal, desenvolvimento rural sustentável, plano de marketing, fomento do conhecimento e da inovação, exportação para novos destinos intra e extra-comunitários, desafios e oportunidades, melhorar o valor económico do sector florestal, novas oportunidades de mercado, sectores emergentes, gestão sustentável, papel multifuncional das florestas, valorização do papel da floresta na protecção dos recursos naturais e do ambiente.

"Valorização do papel da floresta na protecção dos recursos naturais e do ambiente"???... O que é que isto quer dizer?...

Mas somos alertados que "primeiro será necessário organizar a produção e certificar quer a gestão florestal sustentável dos seus povoamentos, quer toda a cadeia de transformação a jusante". Ou seja, primeiro será necessário criar os nossos próprios IKEA, geradores de muitos postos de trabalho lindos... Claro está!



Agora sabemos porque é que os produtos da IKEA são baratos: porque nos comemos a nós próprios. É claro que quando compramos no IKEA somos nós a montar os móveis, mas também nos estamos a alimentar de florestas e de pessoas...

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