segunda-feira, 12 de maio de 2014

Salgalhadas na Lusolândia (3/4)...

Mensagem original

Excerto do capítulo XIX de "Salgalhadas na Lusolândia" de José Luís Felix:


(...)
O debate já tinha de facto começado.
No meio de um grande burburinho, discursava na altura o Francisco Matacães, líder do PWD, que a certa altura vociferou, “Os senhores traíram os trabalhadores, estão a criar uma situação insustentável entre vastas massas populares, entre os jovens e os pequenos e médios empresários. Por isso cresce a insegurança, mas esta insegurança é fruto da vossa insensibilidade. Só querem farras e abandonam os valores de Abril. A insegurança alastra e vocês são os responsáveis.
Têm de combater o grande capital e ouvir as aspirações do povo, que estão consubstanciadas nas propostas do nosso Partido. Mas o Arquitecto Aristóteles pratica o autismo em relação aos apelos populares, não lhe interessa a insegurança que grassa entre o nosso povo, não corresponde aos valores da democracia. Não passa de uma marioneta ao sabor dos interesses do grande capital monopolista...”. Nesta altura a confusão estalou e ninguém se entendia.
O Presidente da Assembleia, que se encontrava dormitando confortavelmente, numa atitude beatífica, devidamente acompanhado por mais de uma dezena de confrades das várias colorações partidárias, despertou do seu torpor e, enquanto martelava furiosamente a bancada à sua frente, berrou de forma descomunal, “Silêncio! Silêncio! Silêncio! Silêncio ou mando evacuar a sala. Olhem que eu não estou a brincar, senhores deputados”.
O ambiente serenou e, enquanto os distintos representantes do povo se olhavam assarapantados, o líder do Berloque Sinistro, professor Piscelim, colocando por uma vez fora de acção a sua característica vozinha que parecia provinda do além, berrou, o senhor Aristóteles é uma personagem mefistofélica que persegue os portugueses. O senhor tem de voltar imediatamente para os confins do inferno de onde fugiu para infernizar a vida dos lusolandos!
Esta intervenção lançou o fogo ao capim e os deputados do PF desataram a lançar todos os impropérios do seu vasto arsenal em alta gritaria sobre o chefe do Berloque Sinistro, com a consequente resposta dos seus colegas do Sinistro. Não tardou muito que todos os deputados opostos ao governo se lançassem por sua vez numa barragem de artilharia verbal sobre o chefe do PF. Não podiam de modo algum deixar o protagonismo para o Professor Piscelim, tanto mais que, como bem lembrara o Dr. Picassinos, as televisões estavam a transmitir directamente aquele espectáculo para todo o país.
Esta escalada verbal teve a resposta imediata. Os deputados do PF, convenientemente enquadrados pelo Boneco de Resina, utilizavam os máximos argumentos para desmantelar os adversários, o menor dos quais, berrado em coro por todos eles, proclamava, “Grosseiros! Carroceiros! Grosseiros! Carroceiros!”. O ambiente tornou-se escaldante, todos os deputados berravam e insultavam e, quando o Presidente da Assembleia pediu algum decoro, ninguém o quis ouvir. A gritaria ensandecia completamente as meninges dos representantes do povo e não tardou nada que, contaminados pela febre que se estendia por todo o salão, os visitantes da Assembleia se juntassem a este fervor.
Do alto dos lugares destinados ao público a delegação de desempregados e trabalhadores precários ali presente estendeu uma faixa onde se lia “Queremos viver como gente! Estamos fartos das promessas dos políticos!”, enquanto gritavam “Nem políticos nem capital! Demagogos! Demagogos!” De imediato se lhes juntou uma delegação de representantes da polícia, também sentada naquela tribuna, que, a exemplo dos primeiros, também levantou uma faixa que dizia, “Sem melhores condições não podemos exercer a autoridade”, e berravam em coro perfeito numa forma surpreendentemente afinada, “Sem melhor rendimento a polícia não actua a todo o momento!”, “Sem melhores cacete e couraça a nossa acção não tem graça!”.
A atmosfera tornou-se irrespirável, todos berravam a plenos pulmões e ninguém se entendia. O Presidente da Assembleia martelava com força, mas em vão, até que, também ele de cabeça perdida, assentou o martelo na tábua à sua frente, com a máxima força que as suas banhas ainda podiam desenvolver. Através deste expediente arrancou gigantescos sons audíveis a centenas de metros, uma, duas, três vezes, sem que os antagonistas à sua frente se comovessem, até que, por fim, um embate ainda mais violento teve um resultado inesperado. A força bruta das pancadas deixou-lhe ficar apenas o cabo na mão, enquanto o martelo voava por sobre as cabeças dos membros do governo e realizando uma surpreendente trajectória foi-se abater sobre a bancada parlamentar em frente, a do XDS. Aqui rasou perigosamente o capachinho do Dr. Picassinos e foi repousar no cadeirão da fila de trás. Era o lugar do Engenheiro Eugénio Bacamarte, que felizmente se encontrava ausente na ocasião. O prestigiado parlamentar, figura de proa do XDS, presidente da Marcenaria Democrática, rival da sua homóloga Lusitana, com larga influência nos negócios Palopianos, encontrava-se no Bar. Dirigira-se para lá havia já mais de uma hora, onde na companhia de algumas dúzias de colegas das diferentes bancadas e de umas goladas de whisky velho assistia a um jogo de futebol da selecção portuguesa. O entusiasmo reinante entre os clientes do Bar só tinha equivalente na apologia da selecção nacional, prodigalizada nos anúncios das mais prestigiadas empresas, que não perdiam a ocasião de lembrar à população, através dos mais diversificados meios de informação, que o bom povo português não podia deixar de erguer a bandeira nacional para apoiar esta gesta da equipa nacional de futebol, a “de todos nós”, como relembravam a cada instante.
As maiores empresas a operar no país, como os Hipermercados Incontinente, a Cerveja Sabes, a Caixa Geral de Repolhos, o Banco do Espírito Tonto, a TNT, a petroleira Golp e a Koka-Koka, patrocinavam a façanha que abalava todos os lusolandos.
Com este incidente, o ambiente tornou-se ainda mais pesado. Por sorte o voo do martelo não atingira o velho engenheiro, devido à sua feliz ausência, ou por intervenção divina, “devido a mais um milagre da santa”, como iria assegurar mais tarde o Picassinos, mas as altercações parlamentares cresciam a cada instante e ameaçavam transformar aquele debate parlamentar numa pura agonia.
(...)

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