Excerto do capítulo XIX de "Salgalhadas na Lusolândia" de José Luís Felix:
(...)
O debate já tinha de facto começado.
No meio de um grande burburinho, discursava na altura o
Francisco Matacães, líder do PWD, que a certa altura vociferou, “Os senhores
traíram os trabalhadores, estão a criar uma situação insustentável entre vastas
massas populares, entre os jovens e os pequenos e médios empresários. Por isso
cresce a insegurança, mas esta insegurança é fruto da vossa insensibilidade. Só
querem farras e abandonam os valores de Abril. A insegurança alastra e vocês
são os responsáveis.
Têm de combater o grande capital e ouvir as aspirações do
povo, que estão consubstanciadas nas propostas do nosso Partido. Mas o
Arquitecto Aristóteles pratica o autismo em relação aos apelos populares, não
lhe interessa a insegurança que grassa entre o nosso povo, não corresponde aos
valores da democracia. Não passa de uma marioneta ao sabor dos interesses do
grande capital monopolista...”. Nesta altura a confusão estalou e ninguém se
entendia.
O Presidente da Assembleia, que se encontrava dormitando
confortavelmente, numa atitude beatífica, devidamente acompanhado por mais de
uma dezena de confrades das várias colorações partidárias, despertou do seu
torpor e, enquanto martelava furiosamente a bancada à sua frente, berrou de
forma descomunal, “Silêncio! Silêncio! Silêncio! Silêncio ou mando evacuar a
sala. Olhem que eu não estou a brincar, senhores deputados”.
O ambiente serenou e, enquanto os distintos representantes
do povo se olhavam assarapantados, o líder do Berloque Sinistro, professor
Piscelim, colocando por uma vez fora de acção a sua característica vozinha que
parecia provinda do além, berrou, o senhor Aristóteles é uma personagem
mefistofélica que persegue os portugueses. O senhor tem de voltar imediatamente
para os confins do inferno de onde fugiu para infernizar a vida dos lusolandos!
Esta intervenção lançou o fogo ao capim e os deputados do PF
desataram a lançar todos os impropérios do seu vasto arsenal em alta gritaria
sobre o chefe do Berloque Sinistro, com a consequente resposta dos seus colegas
do Sinistro. Não tardou muito que todos os deputados opostos ao governo se lançassem
por sua vez numa barragem de artilharia verbal sobre o chefe do PF. Não podiam
de modo algum deixar o protagonismo para o Professor Piscelim, tanto mais que,
como bem lembrara o Dr. Picassinos, as televisões estavam a transmitir
directamente aquele espectáculo para todo o país.
Esta escalada verbal teve a resposta imediata. Os deputados
do PF, convenientemente enquadrados pelo Boneco de Resina, utilizavam os
máximos argumentos para desmantelar os adversários, o menor dos quais, berrado
em coro por todos eles, proclamava, “Grosseiros! Carroceiros! Grosseiros!
Carroceiros!”. O ambiente tornou-se escaldante, todos os deputados berravam e
insultavam e, quando o Presidente da Assembleia pediu algum decoro, ninguém o
quis ouvir. A gritaria ensandecia completamente as meninges dos representantes
do povo e não tardou nada que, contaminados pela febre que se estendia por todo
o salão, os visitantes da Assembleia se juntassem a este fervor.
Do alto dos lugares destinados ao público a delegação de
desempregados e trabalhadores precários ali presente estendeu uma faixa onde se
lia “Queremos viver como gente! Estamos fartos das promessas dos políticos!”,
enquanto gritavam “Nem políticos nem capital! Demagogos! Demagogos!” De
imediato se lhes juntou uma delegação de representantes da polícia, também
sentada naquela tribuna, que, a exemplo dos primeiros, também levantou uma
faixa que dizia, “Sem melhores condições não podemos exercer a autoridade”, e
berravam em coro perfeito numa forma surpreendentemente afinada, “Sem melhor
rendimento a polícia não actua a todo o momento!”, “Sem melhores cacete e
couraça a nossa acção não tem graça!”.
A atmosfera tornou-se irrespirável, todos berravam a plenos
pulmões e ninguém se entendia. O Presidente da Assembleia martelava com força,
mas em vão, até que, também ele de cabeça perdida, assentou o martelo na tábua
à sua frente, com a máxima força que as suas banhas ainda podiam desenvolver.
Através deste expediente arrancou gigantescos sons audíveis a centenas de
metros, uma, duas, três vezes, sem que os antagonistas à sua frente se
comovessem, até que, por fim, um embate ainda mais violento teve um resultado
inesperado. A força bruta das pancadas deixou-lhe ficar apenas o cabo na mão,
enquanto o martelo voava por sobre as cabeças dos membros do governo e
realizando uma surpreendente trajectória foi-se abater sobre a bancada
parlamentar em frente, a do XDS. Aqui rasou perigosamente o capachinho do Dr.
Picassinos e foi repousar no cadeirão da fila de trás. Era o lugar do
Engenheiro Eugénio Bacamarte, que felizmente se encontrava ausente na ocasião.
O prestigiado parlamentar, figura de proa do XDS, presidente da Marcenaria
Democrática, rival da sua homóloga Lusitana, com larga influência nos negócios
Palopianos, encontrava-se no Bar. Dirigira-se para lá havia já mais de uma
hora, onde na companhia de algumas dúzias de colegas das diferentes bancadas e
de umas goladas de whisky velho assistia a um jogo de futebol da selecção
portuguesa. O entusiasmo reinante entre os clientes do Bar só tinha equivalente
na apologia da selecção nacional, prodigalizada nos anúncios das mais
prestigiadas empresas, que não perdiam a ocasião de lembrar à população,
através dos mais diversificados meios de informação, que o bom povo português
não podia deixar de erguer a bandeira nacional para apoiar esta gesta da equipa
nacional de futebol, a “de todos nós”, como relembravam a cada instante.
As maiores empresas a operar no país, como os Hipermercados
Incontinente, a Cerveja Sabes, a Caixa Geral de Repolhos, o Banco do Espírito
Tonto, a TNT, a petroleira Golp e a Koka-Koka, patrocinavam a façanha que
abalava todos os lusolandos.
Com este incidente, o ambiente tornou-se ainda mais pesado.
Por sorte o voo do martelo não atingira o velho engenheiro, devido à sua feliz
ausência, ou por intervenção divina, “devido a mais um milagre da santa”, como
iria assegurar mais tarde o Picassinos, mas as altercações parlamentares
cresciam a cada instante e ameaçavam transformar aquele debate parlamentar numa
pura agonia.
(...)
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