Excerto do capítulo XVI de "Salgalhadas na Lusolândia", de José Luís Felix:
(...)
Com esta revelação gerou-se um alvoroço crescente entre os
circunstantes, e com tal rapidez ele crescia, acompanhado, temos de reconhecê-lo,
por um temor difuso, inquietante para todos os presentes, que o Aristóteles se
sentiu na obrigação de acalmar os espíritos da sua gente, “Calma, Calma! Calma
meus amigos e minha amiga!”. Face às suas palavras sucedeu um fenómeno não
inédito mas sempre digno de observar. Aquelas doutas criaturas foram
abandonando o remexer e o cacarejar que as possuía e, aos poucos, deixaram-se
vogar para o paraíso que povoa as mentes e os corações dos poderosos e dos
pobres de espírito.
“Temos um plano bem concebido para fazer abortar todas estas
veleidades e vamos levá-lo à prática. Com êxito garantido, posso-vos assegurar!
Nós temos a coragem indispensável para executar os consertos necessários e
meter essa gente na ordem. Bem podem manifestar-se que não iremos desistir,
prosseguiremos sem nos perturbarmos, insistiremos com valentia, até atingirmos
todos os nossos objectivos. Não daremos um passo atrás, nem mesmo que realizem
uma manifestação com cinco milhões de pessoas. Afinal depois destas
manifestações regressam todos a casa e acaba-se tudo.
Seguem-se, é verdade, as tradicionais negociações com os
chefes da oposição, mas esse é o nosso terreno privilegiado. Não devemos
esquecer-nos disso”.
(...)
“Será anunciada publicamente quanto tivermos a nossa reunião
de governo em mangas de camisa no Allgarve. Iremos lançar uma obra prodigiosa
no domínio dos transportes. O metro do Allgarve, de Vila Real de Santo António
a Sagres, que irá resolver os problemas das estradas congestionadas com que se
deparam os nossos turistas. Esta será a obra do século, o maior metro do mundo,
que muito honrará o nome da Lusolândia”.
A audiência ficou siderada com esta revelação. Boquiabertos
olhavam-se uns aos outros e, mudos de espanto, não proferiam palavra. Assim
permaneceram largos momentos, baloiçando entre a incredulidade e o
divertimento, até que o mais pragmático entre eles, o José Cifrão, Ministro da
Aritmética, inquiriu tonitruante, “Mas, se isto é verdade vai custar somas
inauditas. Como é possível metermo-nos em semelhante empreendimento, ainda para
mais com as finanças públicas depauperadas?”.
Ainda não tinha acabado e já lhe respondia o Aristóteles,
com cara de poucos amigos, que as dúvidas nunca lhe agradavam, “Não há nada
mais sério do que este projecto. Trata-se de uma operação público-privada, na
qual o consórcio que ganhar o concurso ficará concessionário da linha durante
90 anos. Os custos da execução da obra ficarão a cargo das empresas vencedoras
com o apoio do estado”.
“Mas, mesmo assim, onde é que essas companhias vão conseguir
as somas necessárias para encargos tão vultuosos?”, insistiu o Ministro da
Aritmética. “Na banca, naturalmente”, ripostou o outro orgulhoso, “O Governo
dará todas as garantias que a banca precisar e adiantará também as quantias
relativas às receitas previstas durante os primeiros 30 anos de exploração.
Posso ainda adiantar que esperamos que o retorno do investimento seja obtido
após os primeiros 20 anos de exploração e que estes investidores estarão
isentos de encargos fiscais durante os 40 anos iniciais do investimento. Para
assegurar a boa execução de todo o projecto já temos negociações muito
adiantadas com o administrador da grande empresa de obras públicas SOBETÃO, o
nosso bom amigo dr.Jonas Capitone, bem como com o Engenheiro Verdete, Administrador
do Banco dos Crentes.
“Mas assim o Estado é que paga tudo”, atreveu-se o Ministro
da Felicidade.
“Deixemo-nos de demagogias também entre nós. Todos sabemos
que o Estado não tem vocação para gerir um empreendimento desta natureza. O que
se torna importante é encontrar uma empresa de elevado gabarito para um
empreendimento desta dimensão”, fulminou o chefe do governo.
Tudo parecia esclarecido, mas o Ministro da Aritmética não
pensava assim. Possuído pelo seu espírito de contabilista remoía contas e mais
contas no seu íntimo, como o seu olhar abracadabrante denunciava, até que, não
conseguindo mais conter-se, explodiu, “E o défice, o défice o que vai
acontecer-lhe? Sim, porque assim o Estado vai aumentar enormemente as suas
despesas e lá se vão as contas e o tecto dos 3% de défice que a União Europeia
nos impõe. É tudo muito bonito, mas não podemos aguentar despesas desta ordem”.
“Mas podemos reduzir noutras despesas para compensar”,
garantiu o Aristóteles de sorriso aberto. Já está tudo pensado, agora só faltam
os pormenores que de tu próprio irás tratar. Por exemplo, vamos cortar mais com
os funcionários públicos. Nos próximos 5 anos teremos de colocar 100.000 deles
na rua. Nesse período também iremos reduzir enormemente as despesas com os
serviços públicos. Serão abolidas todas as actividades do estado em localidades
com menos de 50.000 habitantes, com excepção dos serviços de segurança, claro
está. Além disso serão extintos todos os serviços públicos situados nas
localidades a mais de 100 quilómetros do mar. Já viram bem o que iremos poupar
com estas medidas?”
Semelhante pergunta obteve uma resposta unânime, a alegria
manifesta que transparecia no rosto de todos. A boa disposição reinava entre os
ministros, com excepção do Ministro da Aritmética que insistiu, “Mas será essa
contenção de despesas suficiente? Convinha também obter alguma receita
extraordinária”.
O chefe de governo não desarmou e adiantou, “Também já
pensámos nisso. Oh Pedro Goulão, tu que participaste em tudo isto, explica lá o
que se prevê sobre esta questão”.
O Ministro da Pátria não hesitou e apressou-se a
corresponder às instruções do seu líder, “Bem, a solução encontrada é muito
simples.
Para obtermos uma arrecadação fiscal considerável teremos de
lançar um novo imposto. Por isso admitimos criar o imposto pedonal. Cada
indivíduo que ande pelas ruas, em deslocações que não estejam ligadas à sua
actividade profissional, terá de pagar um imposto, o imposto pedonal,
proporcional à distância percorrida. Todos os pormenores para levar à prática estas
inovadoras orientações na área fiscal serão naturalmente do pelouro do
Ministério da Aritmética”.
Todos os presentes se mostravam entusiasmados com as
palavras do titular da Pátria e os seus olhares dirigiram-se imediatamente na
direcção do confrade da Aritmética. O José Cifrão sorriu-se e declarou com a
solenidade que o caracterizava, “Caros companheiros é necessário dar os
parabéns ao nosso grande líder. Mais uma vez o Arquitecto Aristóteles
demonstrou a sua soberba imaginação. Desta vez no domínio da fiscalidade, uma
área em que a criatividade se torna cada vez mais necessária e é bem difícil,
eu que o diga. Pois muito bem, o Ministro da Aritmética terá o máximo orgulho
em contribuir para a implementação deste original projecto. Contem comigo, meus
amigos e minha amiga!”.
O ambiente parecia finalmente tranquilo, todos se
felicitavam pelas medidas propostas. Apenas a Ludovina Ranholas colocou mais
uma vez o dedo e o nariz no ar e advertiu, “Mas os colegas já viram que desse
nome, Metropolitano Regional do Allgarve, irá resultar uma sigla horrorosa, que
se pode prestar a todo o tipo de trocadilhos. Sim, porque a sigla será MERDAL,
nem mais nem menos”.
(...)
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