sexta-feira, 9 de maio de 2014

Salgalhadas na Lusolândia (2/4)...

Mensagem original

Excerto do capítulo XVI de "Salgalhadas na Lusolândia", de José Luís Felix:


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Com esta revelação gerou-se um alvoroço crescente entre os circunstantes, e com tal rapidez ele crescia, acompanhado, temos de reconhecê-lo, por um temor difuso, inquietante para todos os presentes, que o Aristóteles se sentiu na obrigação de acalmar os espíritos da sua gente, “Calma, Calma! Calma meus amigos e minha amiga!”. Face às suas palavras sucedeu um fenómeno não inédito mas sempre digno de observar. Aquelas doutas criaturas foram abandonando o remexer e o cacarejar que as possuía e, aos poucos, deixaram-se vogar para o paraíso que povoa as mentes e os corações dos poderosos e dos pobres de espírito.
“Temos um plano bem concebido para fazer abortar todas estas veleidades e vamos levá-lo à prática. Com êxito garantido, posso-vos assegurar! Nós temos a coragem indispensável para executar os consertos necessários e meter essa gente na ordem. Bem podem manifestar-se que não iremos desistir, prosseguiremos sem nos perturbarmos, insistiremos com valentia, até atingirmos todos os nossos objectivos. Não daremos um passo atrás, nem mesmo que realizem uma manifestação com cinco milhões de pessoas. Afinal depois destas manifestações regressam todos a casa e acaba-se tudo.
Seguem-se, é verdade, as tradicionais negociações com os chefes da oposição, mas esse é o nosso terreno privilegiado. Não devemos esquecer-nos disso”.

(...)

“Será anunciada publicamente quanto tivermos a nossa reunião de governo em mangas de camisa no Allgarve. Iremos lançar uma obra prodigiosa no domínio dos transportes. O metro do Allgarve, de Vila Real de Santo António a Sagres, que irá resolver os problemas das estradas congestionadas com que se deparam os nossos turistas. Esta será a obra do século, o maior metro do mundo, que muito honrará o nome da Lusolândia”.
A audiência ficou siderada com esta revelação. Boquiabertos olhavam-se uns aos outros e, mudos de espanto, não proferiam palavra. Assim permaneceram largos momentos, baloiçando entre a incredulidade e o divertimento, até que o mais pragmático entre eles, o José Cifrão, Ministro da Aritmética, inquiriu tonitruante, “Mas, se isto é verdade vai custar somas inauditas. Como é possível metermo-nos em semelhante empreendimento, ainda para mais com as finanças públicas depauperadas?”.
Ainda não tinha acabado e já lhe respondia o Aristóteles, com cara de poucos amigos, que as dúvidas nunca lhe agradavam, “Não há nada mais sério do que este projecto. Trata-se de uma operação público-privada, na qual o consórcio que ganhar o concurso ficará concessionário da linha durante 90 anos. Os custos da execução da obra ficarão a cargo das empresas vencedoras com o apoio do estado”.
“Mas, mesmo assim, onde é que essas companhias vão conseguir as somas necessárias para encargos tão vultuosos?”, insistiu o Ministro da Aritmética. “Na banca, naturalmente”, ripostou o outro orgulhoso, “O Governo dará todas as garantias que a banca precisar e adiantará também as quantias relativas às receitas previstas durante os primeiros 30 anos de exploração. Posso ainda adiantar que esperamos que o retorno do investimento seja obtido após os primeiros 20 anos de exploração e que estes investidores estarão isentos de encargos fiscais durante os 40 anos iniciais do investimento. Para assegurar a boa execução de todo o projecto já temos negociações muito adiantadas com o administrador da grande empresa de obras públicas SOBETÃO, o nosso bom amigo dr.Jonas Capitone, bem como com o Engenheiro Verdete, Administrador do Banco dos Crentes.
“Mas assim o Estado é que paga tudo”, atreveu-se o Ministro da Felicidade.
“Deixemo-nos de demagogias também entre nós. Todos sabemos que o Estado não tem vocação para gerir um empreendimento desta natureza. O que se torna importante é encontrar uma empresa de elevado gabarito para um empreendimento desta dimensão”, fulminou o chefe do governo.
Tudo parecia esclarecido, mas o Ministro da Aritmética não pensava assim. Possuído pelo seu espírito de contabilista remoía contas e mais contas no seu íntimo, como o seu olhar abracadabrante denunciava, até que, não conseguindo mais conter-se, explodiu, “E o défice, o défice o que vai acontecer-lhe? Sim, porque assim o Estado vai aumentar enormemente as suas despesas e lá se vão as contas e o tecto dos 3% de défice que a União Europeia nos impõe. É tudo muito bonito, mas não podemos aguentar despesas desta ordem”.
“Mas podemos reduzir noutras despesas para compensar”, garantiu o Aristóteles de sorriso aberto. Já está tudo pensado, agora só faltam os pormenores que de tu próprio irás tratar. Por exemplo, vamos cortar mais com os funcionários públicos. Nos próximos 5 anos teremos de colocar 100.000 deles na rua. Nesse período também iremos reduzir enormemente as despesas com os serviços públicos. Serão abolidas todas as actividades do estado em localidades com menos de 50.000 habitantes, com excepção dos serviços de segurança, claro está. Além disso serão extintos todos os serviços públicos situados nas localidades a mais de 100 quilómetros do mar. Já viram bem o que iremos poupar com estas medidas?”
Semelhante pergunta obteve uma resposta unânime, a alegria manifesta que transparecia no rosto de todos. A boa disposição reinava entre os ministros, com excepção do Ministro da Aritmética que insistiu, “Mas será essa contenção de despesas suficiente? Convinha também obter alguma receita extraordinária”.
O chefe de governo não desarmou e adiantou, “Também já pensámos nisso. Oh Pedro Goulão, tu que participaste em tudo isto, explica lá o que se prevê sobre esta questão”.
O Ministro da Pátria não hesitou e apressou-se a corresponder às instruções do seu líder, “Bem, a solução encontrada é muito simples.
Para obtermos uma arrecadação fiscal considerável teremos de lançar um novo imposto. Por isso admitimos criar o imposto pedonal. Cada indivíduo que ande pelas ruas, em deslocações que não estejam ligadas à sua actividade profissional, terá de pagar um imposto, o imposto pedonal, proporcional à distância percorrida. Todos os pormenores para levar à prática estas inovadoras orientações na área fiscal serão naturalmente do pelouro do Ministério da Aritmética”.
Todos os presentes se mostravam entusiasmados com as palavras do titular da Pátria e os seus olhares dirigiram-se imediatamente na direcção do confrade da Aritmética. O José Cifrão sorriu-se e declarou com a solenidade que o caracterizava, “Caros companheiros é necessário dar os parabéns ao nosso grande líder. Mais uma vez o Arquitecto Aristóteles demonstrou a sua soberba imaginação. Desta vez no domínio da fiscalidade, uma área em que a criatividade se torna cada vez mais necessária e é bem difícil, eu que o diga. Pois muito bem, o Ministro da Aritmética terá o máximo orgulho em contribuir para a implementação deste original projecto. Contem comigo, meus amigos e minha amiga!”.
O ambiente parecia finalmente tranquilo, todos se felicitavam pelas medidas propostas. Apenas a Ludovina Ranholas colocou mais uma vez o dedo e o nariz no ar e advertiu, “Mas os colegas já viram que desse nome, Metropolitano Regional do Allgarve, irá resultar uma sigla horrorosa, que se pode prestar a todo o tipo de trocadilhos. Sim, porque a sigla será MERDAL, nem mais nem menos”.
(...)

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