sábado, 10 de janeiro de 2015

A alegoria do frango assado (1/6)...

Uma história, ou estória se quiserem ser mais chiques, que escrevi há exactamente dez anos atrás (como o tempo voa!...). Tem seis capítulos. Aí vai o primeiro:


Capítulo 1

Era uma vez um reino perdido nas montanhas da 'terra do sabe-se lá onde'. Depois de uma série de reinados despóticos, chegou ao trono um rei complacente que elegeu como prioridade do reino a melhoria das condições de vida do seu povo.

Mas, na realidade, o rei não fazia sequer ideia de como vivia o seu povo: se vivia bem ou mal e quais as suas carências. Depois de pensar um pouco sobre isso (não muito, que os reis cansam-se depressa), e considerando que o reino de cem quilómetros quadrados era demasiado vasto para ser pessoalmente percorrido de lés a lés (uma vez que, como disse, os reis cansam-se depressa), o rei decidiu reunir os seus conselheiros e debater a questão.

Os conselheiros reuniram então com o seu rei. O objectivo era arranjar um modo de aferir sobre as condições de vida da população. Muitas ideias foram lançadas para o debate (naquilo que hoje se chamaria um 'brainstorming' ou, se quiserem, uma 'tempestade cerebral'): seria permitido às pessoas enviarem cartas directamente para o rei a exporem os seus problemas, seria eleito um representante em cada aldeia que faria anualmente uma exposição das carências aí verificadas... Até que um dos conselheiros disse que não concordava com nada daquilo.

Segundo Numerus Clausus (era este o nome do conselheiro), não se deveria determinar o estado em que a população vivia através dos relatos das diversas pessoas. Não se deveria confiar de todo nesses relatos, dizia. Clausus era a pessoa certa para fazer tal afirmação. Lá na corte era o elemento mais introvertido e misantropo. Ficava dias e dias encarcerado na sua cela, profundamente mergulhado nas suas tábuas de 'números cósmicos', que segundo ele podiam explicar todos os fenómenos observáveis.

Clausus defendia que deveria haver um processo mais objectivo para determinar as condições de vida da população. Um conselheiro sugeriu então que se contassem os bens que cada pessoa possuia. Mas claramente, retorquiu logo outro, não faria sentido atribuir o mesmo significado a uma batata ou a uma casa. Foi então que o rei se lembrou de que no seu reino era usual comer-se frango assado. E uma vez que os frangos assados não eram tão baratos como as batatas, nem tão caros como as casas, podia-se contar o número de frangos assados que cada pessoa comia - esse número daria uma ideia de como as pessoas viviam.

Claro que ele, o rei, comia frango assado dia sim dia não, e só não comia mais porque se aborrecia de estar sempre a comer a mesma coisa. À sua volta os elementos da corte comiam bastante frango assado, embora não tanto como o rei. No entanto, o rei não conhecia ninguém que não comesse, pelo menos de vez em quando, frango assado.

Depois de se limarem uma data de arestas, o rei e os seus conselheiros chegaram à seguinte conclusão: seria construído um 'índice de bem-estar da população'. Para esse efeito, todos os anos, numa data precisa, os representantes de cada comunidade comunicariam ao rei o número de frangos assados comidos durante o ano. Os conselheiros do rei calculariam então uma média ponderada pelo número de homens de cada comunidade (as mulheres e as crianças só mais tarde é que foram consideradas).

O rei ficou feliz com a sua decisão. No primeiro ano o número médio de frangos assados consumidos por pessoa foi de três. O rei não fazia ideia se isto era bom ou mau. À primeira vista pareceu-lhe péssimo, uma vez que ele próprio consumia anualmente mais de cem frangos assados. Mas depois pensou que o seu povo não podia viver assim tão mal... ele é que vivia muito bem, pois claro! E como não tinha termo de comparação, o entretanto baptizado IB - índice de bem-estar - assumiu nesse primeiro ano o valor de 100.

Ora, pensou o rei, se o objectivo é melhorar as condições de vida das pessoas, só tenho que fazer com que o IB cresça. Nem o rei nem os conselheiros sabiam quanto é que o IB devia crescer, mas rapidamente se habituaram à ideia de que o IB devia crescer... e isso era tudo!

Os anos passaram. O rei, sempre complacente, assinou acordos de paz com os seus vizinhos e tomou algumas medidas que lhe pareciam poder beneficiar o seu povo. O IB lá foi crescendo, paulatinamente. Na corte, todos os anos, já se ansiava pela divulgação do novo valor do IB. E quando a conversa era sobre o reino, o IB vinha sempre à baila: porque o IB sobe, porque o IB desce, não se pode fazer isso por causa do IB, o IB para aqui e o IB para ali.

(capítulo 2)

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