domingo, 18 de janeiro de 2015

Janeiro lento - Celina: take five...

No penúltimo disco da Celina da Piedade, "Em Casa", está incluído o tema "Janeiro lento em Lisboa". Uma vez que o vídeo que se segue foi gravado em 2011, o tema terá sido provavelmente composto em Janeiro desse ano. Janeiro lento, em qualquer parte do mundo:

Celina da Piedade - "Janeiro lento em Lisboa" (quarto) from MPAGDP on Vimeo.

Um tema que já abordei no passado (por exemplo aqui) é o de que o conhecimento só acrescenta à nossa experiência: quanto mais se sabe, mais se gosta. Em relação à música, não tenho dúvida alguma que o ser capaz de ouvir as muitas coisas que nelas há para ouvir só torna a experiência melhor, de diversos pontos de vista. Dissecar os gostos é algo que desgosta muita gente. Mas só assim poderemos compreender porque é que gostamos e desgostamos. Explicar o que se sente, juntando pensamento e sentimento, além de nos tornar mais íntegros, torna-nos mais conhecedores de nós próprios e do mundo.

E agora... vou dissecar!...

O tempo desta música é 5/4. As primeiras notas da melodia soam mais ou menos assim. Ou seja, temos conjuntos de 4 notas, mas a quarta nota de cada conjunto demora o dobro das restantes. Portanto é como se em cada conjunto existissem 5 notas. Se, pelo contrário, a quarta nota demorasse o mesmo que as restantes, a música soaria mais ou menos assim, tendo um tempo de 4/4.

A música que normalmente ouvimos em Portugal (a que se ouve nas rádios e nas televisões, a que se compra nas lojas, a que se ouve nos elevadores e nos supermercados, a que acompanha a publicidade...) é quase toda em compassos binários, ternários ou quaternários. O mesmo se passa com as músicas deste mundo a que resolvemos chamar de "ocidental". Um compasso quíntuplo é, portanto, e para nós, um compasso esquisito, fora do comum, e que como tal classificamos de complexo.

Note-se, porém, que noutros sítios deste planeta, e noutras culturas, uma vez que as culturas não têm propriamente sítio, tempos de 5/4, 5/8, 7/8, 9/8, 11/8 e por aí fora são muito comuns. Por exemplo, se ouvirem as músicas tradicionais búlgaras deste pacote, poderão reparar que muitas músicas são em 7/8. Ou poderão ter dificuldade em reparar nisso, mas certamente constatarão que não se enquadram nos nossos conhecidos compassos binário, ternário ou quaternário.

(Já agora, a Celina também lá põe no mesmo cd duas valsa a 8 tempos e outra música cuja batida também é no conjunto 3+3+2, mais uma coisa esquisita. Ide lá investigar)

Se atentarmos agora às notas mais graves (tocadas pela mão esquerda) notaremos que os acentos são colocados mais ou menos assim ou, se quisermos, assim. Isto significa que cada conjunto de 5 notas pode ser agrupado em 3+2. Outra forma de reparar nisso é atentar à linguagem corporal da Celina: toda ela é movimento 3+2! É uma maneira de o fazer, mas naturalmente poderia ser de muitas outras maneiras. No final haverá um exemplo alternativo.

O modo como este tempo 3+2 é bem marcado ao longo de toda a música faz dela uma óptima música para dança... digo eu!

Ainda numa análise objectiva, a escala adoptada começa em Lá e é uma escala menor natural (a que pelos vistos também se dá o nome de modo eólio). Soa assim. Se fosse uma escala maior em Lá soaria antes assim. O efeito que tem sobre nós uma escala menor já é algo mais subjectivo e até certo ponto culturalmente determinado.

Finalmente, a Celina enfia-nos uma pequena surpresa a meio da melodia, que é a introdução da nota Si bemol no primeiro vaivém às notas altas, e que perdura até ao final dessa frase melódica. Estou-me a referir a esta nota aqui. Mesmo não estando muito atento, nota-se que há uma variação, alguma coisa que muda... e isso enriquece a música.

A minha análise subjectiva desta música é que ela é ao mesmo tempo alegre e triste, ou uma mistura dos dois. As voltinhas das notas mais agudas a irem para cima e para baixo são como que os altos e baixos, as alegrias e as tristezas que vão ocorrendo ao longo do tempo, que passa sempre sem parar... conforme as notas mais graves nos transmitem. A cadência e as repetições da música acentuam esse efeito, tal como a repetição com que ela termina... Como se o tempo fosse um comboio que não pára nunca... e afinal o que é lento não é Janeiro, nem é Lisboa, mas somos nós, é a nossa vida!

Provavelmente é obra do acaso, mas a mão esquerda é a que está mais iluminada e visível, e é também dela que gosto mais nesta música...

Uma música bonita. Celina: take five!



(que é uma maneira de acabar com outra música em 5/4, mas desta vez as notas agrupam-se em 2+1+2. uma forma de o sentirmos é tentarmos dançá-la, notando que se dança bem com um passo lento, depois um rápido, depois outro lento, e voltando ao início)

1 comentário: