domingo, 21 de abril de 2019

Necessidade da vida...

Não, o significado do título deste artigo não é de que temos necessidade de vida. Embora sem vida, claro, não poderia escrever isto agora... A palavra "necessidade" é empregue no seu sentido de algo que tem de ser assim e não pode ser doutro modo.

A minha tese é então a de que a vida existe porque tem de existir, e não poderia ser de outro modo. Será, porventura, o contrário da tese de que a existência de vida é um milagre. Eu afirmo o oposto: seria um milagre se não houvesse vida!

Ao contrário do que pode parecer ao primeiro pensamento, a distinção entre um ser vivo e algo sem vida não é assim tão evidente. Se essa não evidência não for evidente (!), tentemos analisar o que se passa com seres cada vez mais pequenos. Pensemos numa bactéria, por exemplo. Porque é que está viva? Uma resposta ao estilo da escola primária diria que está viva porque nasce, cresce, reproduz-se, faz mais alguma coisa... e morre.

Mas pelo mesmo critério, outras coisas que geralmente consideramos mortas também poderão ser consideradas vivas... Por exemplo os cristais. Também podem nascer, crescer, reproduzir-se, fazer alguma coisa e desaparecer, ou morrer. Os cristais nascem num meio com concentrações adequadas de certos elementos químicos, num local onde houver um objecto que sirva para a nucleação, crescem através da utilização de energia (eléctrica, térmica, química, etc.) e até se podem "reproduzir", uma vez que um pequeno fragmento de cristal pode servir de nucleação para o crescimento doutro cristal... (Ou será para o contínuo crescimento do cristal original?... Questão, aliás, que também se coloca nos seres vivos de reprodução assexuada.)

Vejamos um simples exemplo do crescimento de dendrites (que também podemos ver em tempo real nas janelas dos aviões comerciais):



Posso pensar em dunas... A uma escala geológica até posso pensar nos próprios continentes, ou até nas estrelas... Também podemos considerar que as estrelas estão vivas!... Ou não.

Tomemos o caso dos vírus. Num dicionário online é possível começar a ler que vírus são "microorganismos acelulares...". Que não contêm células ou que não são uma célula, poderá ser um ponto assente. Mas serão microorganismos?... A verdade é que nascem, crescem, reproduzem-se, fazem alguma outra coisa e eventualmente morrem.

Mas vejamos o seguinte vídeo:



Os vírus têm genes e evoluem por selecção natural. Um pouco mais sofisticado que os cristais, sem dúvida! Mas não se organizam em células e não têm fontes de transformação de energia próprias. Os vírus são uma "coisa" que está ali entre um calhau e uma bactéria, algures no limite daquilo que se pode considerar vivo.

Vistos a partir dos seus constituintes, os vírus são apenas ácido nucleico e proteína envolvente. O vírus da necrose do tabaco tem uma molécula de ácido ribonucleico com 3759 nucleótidos e uma proteína nos seus capsómeros. Ou seja, os vírus podem ser arranjos não muito complexos de alguns milhares ou dezenas de milhares de átomos.

Agora a questão mais interessante: porque é que os vírus infectam as bactérias, as células, e com isso todos os organismos? Será que os vírus têm vontade disso? Será que são "maus"?...

No vídeo em cima vemos como os vírus se montam a si próprios a partir das suas partes constituintes. Mas isso não acontece com consciência do vírus, porque o vírus não tem consciência (creio!). Isso acontece porque os átomos, unidos daquele modo, fazem moléculas que têm determinadas propriedades electroquímicas. E essas propriedades fazem com que as moléculas se comportem de um determinado modo.

Imaginemos que deito uns grãos de sal num copo de água. Bastará adicionar tempo, mesmo que seja um dia inteiro, para que o sal se dissolva na água. Isso acontece porque os dois átomos de hidrogénio se unem ao átomo de oxigénio em cada molécula de água de uma forma assimétrica, deixando um lado da molécula da água com uma carga ligeiramente positiva e o outro lado com uma carga ligeiramente negativa. E como o sal de cozinha é composto de uma estrutura cristalina de átomos de cloro e de sódio, em que os átomos de sódio têm uma carga ligeiramente positiva e os átomos de cloro uma carga ligeiramente negativa, as moléculas da água irão atrair estes átomos para fora do seu cristal.



As moléculas da água dissolvem o sal não porque queiram ou porque o sal tenha vontade de ser dissolvido; a dissolução acontece simplesmente porque as moléculas e os átomos em causa têm determinadas propriedades.

Assim acontece também com os vírus. As moléculas que compõem os vírus têm determinadas propriedades. Não têm vontade própria. Simplesmente sujeitam-se às mesmas leis da física que afectam tudo o que existe neste mundo. E portanto fazem o que fazem porque, para estas leias da física, tem mesmo de ser assim, não podia ser de qualquer outro modo.

(Um aparte, já agora, para acalmar crentes em um ou mais deuses que sintam que o meu discurso pode ser um ataque à noção de intervenção divina na origem da vida: não há necessidade de agitação!... A existência ou não de algum deus é sempre impossível de provar. Se eu disser que a vida é inevitável por causa da existência de determinadas leis, estou simplesmente a deslocar o limite da minha ignorância um pouco mais para lá. E qualquer crente poderá argumentar, com confiança, que a existência destas leis da física é um argumento a favor da existência de um deus. Como, aliás, também fazia Einstein.)

Os vírus, se os considerarmos como os mais simples seres vivos que existem, fazem o que fazem simplesmente porque as suas moléculas obedecem às leis da física. E se isso é assim, porque não dizer o mesmo de seres vivos mais complexos, como as bactérias?

E a mesma argumentação pode servir para afirmar que a vida na Terra existe e é como é porque não poderia ser de outro modo.

A consciência, no entanto, é toda uma outra coisa!...

Podemos entrar num interminável debate acerca da existência ou não de livre vontade... Se aplicarmos o mesmo raciocínio que desenvolvi em cima para seres vivos cada vez mais complexos, poderemos chegar à conclusão de que nós mesmos fazemos o que fazemos porque obedecemos a leis físicas, e não poderíamos nunca agir de outro modo, dados os nossos contextos. Este é um tema filosófico recorrente que, para quem nunca pensou nisso, pode parecer estranho. No entanto, aquilo que nos pode parecer evidente, nomeadamente a existência da nossa vontade, pode não ser assim tão fácil de demonstrar se nos propusermos verdadeiramente a fazer isso.

Mas independentemente de termos ou não termos livre arbítrio, creio que ninguém negará que temos consciência. Nem que, como alguns afirmam, vivamos num sonho, ainda assim teremos consciência do conteúdo desse sonho. E temos consciência de nós próprios, da nossa existência.

Os humanos têm insistido ao longo da sua história nesse exercício de vaidade que é encontrar características que o distingam dos outros seres vivos (para melhor, claro!). Durante muito tempo estávamos convencidos que éramos os únicos seres vivos que possuíam consciência de si próprios. Hoje as coisas já não são assim tão claras e várias experiências parecem demonstrar que muitos outros seres vivos aparentam ter consciência de si próprios. Até os peixes!

E isso remete-me para a imagem que nunca me saiu da cabeça quando li pela primeira vez, em 1988, o livro "um pouco mais de azul", de Hubert Reeves. Esse foi o livro que me despertou para a cosmologia e simultaneamente para questões sobre o mundo físico e sobre a nossa própria existência. Nessa imagem podiam ver-se os olhos de uma criança e os olhos de um lémure. A legenda dizia algo como: o universo contempla-se a si próprio.


E isso é que é, aos meus olhos, verdadeiramente milagroso!... A vida, nas suas formas mais simples, e mesmo que aparentemente rara no nosso universo, parece-me até relativamente banal. Certamente nada miraculosa. Acredito que, dadas as condições certas, a vida tem de surgir, quer se queira quer não. E acredito que se a achamos rara no universo em que vivemos, é só porque o universo é muito vasto e nós não conseguimos ver bem.

Mas que a vida evolua até formas conscientes, que um conjunto de átomos, conforme se diz na legenda da imagem em cima, se consiga ordenar de forma a poder "ver" o universo, sentir-se a si próprio e pensar isso tudo, o universo e o seu lugar nele... que os átomos consigam pensar acerca de si próprios... isso sim, é para mim completamente arrebatador!

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