Algumas considerações mais ou menos irónicas sobre o assunto.
1ª Consideração
Ai, ai, ai!... O mundo vai acabar!!!...
2ª Consideração
Morrerá muita gente?
Os dados a que tive acesso falam de taxas de fatalidade (para quem tenha contraído a doença) de 14,8% para quem tem 80 ou mais anos de idade, caindo rapidamente para 0,4% para quem tem entre 40 e 49 anos de idade e tendendo depois para zero nas classes etárias mais novas.
Aplicando essas taxas à estrutura da população mundial, o resultado é o seguinte: se toda a população mundial fosse contagiada, morreriam cerca de 87 milhões de pessoas. Isso parece um oceano de gente, mas vamos colocar a coisa em perspectiva: isso é 1,1% da população mundial.
É claro que não vou avançar com aquele argumento supostamente estalinista de que uma morte é uma tragédia, mas 87 milhões é uma estatística. Mas mais sobre isso adiante.
Coloquemos as coisas ainda mais no seu contexto. Façamos umas contas de merceeiro (sem desprimor para os merceeiros, que afinal sabiam fazer contas melhor que a maioria das pessoas): se existirem cerca de 8 mil milhões de pessoas no planeta, se essas pessoas estiverem igualmente repartidas por todas as idades entre os 0 e os 100 anos de idade, então todos os anos terão de morrer 1% das pessoas, o que dá cerca de 80 milhões de pessoas. Segundo os dados da Organização Mundial de Saúde, em 2016 morreram 57 milhões de pessoas. Portanto as nossas contas de merceeiro não são completamente descabidas.
Se tudo correr bem, no nosso cenário hipotético, as pessoas vivem as suas vidas descansadas durante 99 anos, e morrem ao fazer 100, ou algo do género. Mas a realidade é outra. Muitas das mortes registadas são na verdade prematuras, e destas muitas são evitáveis. Por exemplo, para o mesmo ano de 2016 a OMS diz que 1,4 milhões de mortes foram relacionadas com o transporte rodoviário, e destas, 74% foram do sexo masculino, muitos dos quais jovens.
Se juntarmos todas as mortes evitáveis que ocorrem todos os anos, não serão necessários muitos anos para atingir um valor de 87 milhões de mortes, das quais uma grande proporção será de pessoas jovens.
No entanto, este número potencial de mortes do (ou mais correctamente "da") Covid-19 foi calculado assumindo que toda a população mundial ficaria infectada. Mas será isso realista?
Vejamos o caso da China. Se aplicarmos as mesmas taxas de fatalidade à estrutura da população da China, o número de mortes previsto seria de 19 milhões, ou 1,4% da população. No entanto, nesta data (20 de Março), o número de mortos que estavam infectados na China é de 3248. E, analisando a evolução dos números, o número total de mortos na China dificilmente aumentará muito. E isso significa que a China ultrapassará esta crise com bem menos de 0,001% de mortos, significativamente menos do que 1,4%.
Entretanto, em Portugal e outros países europeus, vivemos "a fase do crescimento exponencial", uma expressão que só pode vir de quem não percebe muito de funções... Uma função logística, por exemplo, que modela razoavelmente bem a evolução do número total de casos de infecção, possui uma componente exponencial, que está sempre presente, da origem até ao fim dos tempos. Mas enfim, essa é outra conversa, mais técnica e menos relevante para este caso.
Se a população portuguesa fosse toda infectada, e usando as mesmas taxas de fatalidade, teríamos no final cerca de 260 mil mortos, ou seja, cerca de 2,5% da população. Se as medidas de contenção entretanto impostas resultarem, talvez possamos atingir uma mortalidade pouco superior à da China, em termos relativos. Se ela fosse de 0,002%, por exemplo, seriam apenas cerca de 200 mortes. Num país onde, todos os anos, morrem muito mais pessoas em acidentes de viação.
Entretanto, e de qualquer modo, vamos esperar que os avanços técnicos e científicos nos ajudem a combater melhor a doença, de dia para dia, de tal modo que daqui a uns meses possamos reduzir as taxas de fatalidade actuais.
É, claramente, o fim do mundo!
Mas... falando de avanços técnicos e científicos...
3ª Consideração
Não há vacina?
Na minha terra diz-se bacina com o primeiro a aberto. E eu digo que a história é escrita pelos vencedores e os dicionários pelos opressores. Mas isso, nobamente, é outra cumbersa.
Há pessoas que acreditam que isto da imunidade contra as ameaças bacteriológicas e virais que andam por aí é uma questão de despejar dinheiro em projectos de investigação.
Existe, por exemplo, um movimento chamado Zeitgeist (procurem... talvez vos interesse!) que defende a construção de um mundo melhor para todos (bom!), baseado nas possibilidades que a ciência tem aportado à humanidade (falacioso!).
Estamos a falar, em boa verdade, de uma posição de fé. A fé é uma crença que existe apesar de não existirem razões claras para ela. Não vamos, apesar disso, menosprezar a fé. Por um lado, é bem verdade que a fé move montanhas. Depois, a nível individual, é bem verdade que a fé contribui para o nosso bem-estar (e não apenas psicológico... veja-se por exemplo o efeito placebo). Finalmente, a verdade é que nada ou muito pouco no mundo e na vida é inteiramente demonstrável. Se eu posso dizer "penso, logo existo", demonstrando assim a minha existência, já não posso demonstrar do mesmo modo a existência dos outros, nem posso demonstrar aos outros a minha existência. No fundo, tarde ou cedo, tudo se baseia em fé.
Existe então esta fé de que a ciência tudo pode.
Eu creio, no entanto, que só tem essa crença quem nunca conviveu com o processo científico e os cientistas o tempo suficiente para perceber como é que a ciência funciona.
Um exemplo. A eficiência das turbinas dos aviões a jacto depende da temperatura e da pressão que podem ser atingidas no seu interior: quanto maior a pressão e a temperatura, mais eficientes são as turbinas, mantendo tudo o resto constante. O problema de aumentar a pressão e a temperatura no interior das turbinas é que isso coloca os materiais de que são feitos sob maior tensão, num ambiente de maior temperatura. As peças que mais sofrem são as pás das hélices, sobretudo nas suas extremidades. Assim, a eficiência do consumo de combustível num avião (que é uma coisa importante para toda a humanidade, ainda mais num contexto de alterações climáticas aceleradas), depende da resistência à tensão e à temperatura dos materiais usados nas pás das hélices da turbina.
O que é que se faz então?... Dá-se rios de dinheiro a gente super-inteligente das melhores universidades e laboratórios técnicos do mundo e exige-se: queremos um material que se mantenha resistente a temperaturas de 20 mil graus (podem usar a escala de temperatura que quiserem, que tanto dá).
Fico com a impressão, por vasta experiência própria e alheia, que há muitos políticos e empresários que pensam que isto funciona assim... Mas não funciona. Por algo que é muito simples de entender. Quando se investiga, por definição, está-se a ir para o mundo desconhecido. É assim como ir passear a caminho de Algés, lá para o centro que o Champôlimão ajudou a criar para estudar "o desconhecido"! Só que no mundo desconhecido, por ser desconhecido, ninguém sabe ao certo o que vai encontrar.
Assim, dar dinheiro e exigir uma vacina para o Covid-19 é parecido com fornecer navios e respectivo pessoal e material e dizer a um tipo para ir achar a Atlântida, sem saber de antemão se ela existe ou não.
Neste caso concreto, parece-me, com o meu olho não especialista, que o terreno não é completamente desconhecido. Por isso talvez haja motivos para termos fé na descoberta de uma vacina eficaz e barata... e barata!!... (quem é que financia a investigação? quem se apropriará dos lucros que irão ser gerados?... outra cumbersa). De qualquer modo, isso não será já para amanhã.
No entanto, produzir vacinas para ameaças que hão-de vir, como novas estirpes de coronavirus, ou outro tipo de ameaças desconhecidas, isso sim, é mais como ir para fora do sistema solar à procura de asteróides de ouro maciço, coisa que ninguém faz ideia se existe ou não.
As vacinas são produzidas para atacar problemas concretos. E demoram bastante tempo a ficarem prontas, por diversos motivos, e ainda bem que assim é! É que todas as coisas a que sujeitamos os nossos corpos têm efeitos benéficos e maléficos em simultâneo. E é preciso medir muito bem as coisas se não queremos matar as pessoas da cura!... Conforme, aliás, era prática corrente até há muito pouco tempo, inclusivamente nas "medicinas" com origens mais antigas. Mas isso, novamente, é outra cumbersa.
Acerca da facilidade ou dificuldade de combater pandemias com vacinas, veja-se, por exemplo, o seguinte artigo:
https://www.historyofvaccines.org/content/articles/vaccines-pandemic-threats
Voltando por um segundo ao tal movimento Zeitgeist: acreditar que a felicidade das pessoas depende dos avanços científicos e tecnológicos é o mesmo que negar a possibilidade de felicidade a toda a humanidade que nos precedeu... e isso devia fazer-nos pensar. Mas para lá disso, acreditar que os avanços científicos e tecnológicos contribuem necessariamente (ou até maioritariamente) para a felicidade das pessoas é errar estrondosamente na análise da história da humanidade.
4ª Consideração
Mas então o que é que podemos fazer?
Há muitas coisas que podemos e devemos fazer. Uma morte é uma tragédia, um milhão de mortes são um milhão de tragédias. Estamos a falar de pessoas, e temos de pensar em cada pessoa em concreto e fazer tudo o que está ao nosso alcance para minorar o seu sofrimento.
No entanto, o sofrimento das pessoas não se mede apenas em mortes. Nem só de coronavirus vive a morte, e nem só de morte vive o sofrimento. Há muito mais mundo e, infelizmente, muitos mais problemas que afligem a humanidade.
E não me venham com a treta de que uma coisa é uma coisa e outra coisa é outra coisa, que os atropelamentos na estrada e as mortes por coronavirus não têm nada a ver, porque tudo nesta vida está ligado a tudo. A nossa paciência é que não nos leva aos meandros dos fios que unem estas coisas todas. Mas eu aposto convosco que um recolher obrigatório por causa do coronavirus irá diminuir o número de atropelamentos! :)
As coisas estão todas ligadas de muitas formas. Duas coisas que unem tudo são o tempo e o dinheiro. Se nos dedicamos muito a umas coisas, não nos dedicamos a outras. Não dá para tudo.
A vida não dá para tudo. O doente de cancro do pulmão que é fumador escolhe ter o prazer de continuar a fumar e encurtar a sua vida, ou ter o desgosto de deixar de fumar e estender a sua vida. A vida, e a morte também, é feita de opções.
É importante dizer isto, porque de repente parece que o coronavirus é mais importante do que tudo o resto. Mas não é. Objectivamente não é. Um jovem de 30 anos que não tem onde dormir estará provavelmente mais preocupado com arranjar casa do que com não propagar um vírus a outras pessoas. Como várias pessoas têm dito ultimamente, e com toda a razão: como é que quem não tem casa faz quarentena?...
É importante pensar nestas questões... O coronavirus vem e há-de ir... e mesmo que outros venham (que virão), nós entretanto vamos ter de levar as nossas vidas. E se há muito que podemos fazer para minorar o sofrimento das pessoas por causa do coronavirus, há ainda mais que podemos e devemos fazer para minorar o sofrimento das pessoas com tudo o resto. E as coisas estão ligadas entre si, mesmo que isso não seja evidente.
Bom, para já, no imediato há uma coisa importante que podemos e devemos fazer: ir comprar resmas de papel higiénico! Toda a gente sabe que o vírus se borra de medo de papel higiénico. É isso e laranjas! Vejam lá este exemplo da guerra das laranjas contra os vírus:
No imediato há que fazer aquilo que todos os canais estão fartos de propalar. Essencialmente, fazer de conta que estamos infectados e agir de modo a impedir ao máximo a propagação do nosso (hipotético) vírus às outras pessoas.
Mas, e no longo prazo?
No longo prazo é muito provável que venham de lá... de algures... novas estirpes de outros coronavirus ainda mais novas que este novo coronavirus. E há coisas que podemos fazer para minorar a probabilidade disso acontecer e também o seu impacto, caso ocorra mesmo.
Vamos dar uma voltinha a um bilhar um bocadito maior...
No sistema capitalista que temos, uma coisa que acabou por assumir alguma importância para a economia foi a bolsa de valores. Chamo assim ao mercado, essa coisa fictícia, onde as pessoas e instituições podem comprar e vender títulos financeiros (desde as inteligíveis acções, até ao supra-sumo do virtual, como opções de futuros de opções). No entanto, apesar de aparentemente importantes para a economia, o que se passa no seu seio não é mais do que um jogo: comprar e vender os títulos certos nos momentos certos. O trunfo neste tipo de jogo é a capacidade de antecipação (acertada!) de uma tendência de subida ou descida.
Toda a gente já ouviu falar de histórias como aquela em que o presidente de sei lá quê desmaiou e os mercados da bolsa colapsaram no outro lado do mundo. Ora, neste contexto, o que é que acontece se todos os mercados financeiros de todo o mundo estiverem 24h por dia em funcionamento, e se toda a gente em todo o mundo tiver acesso instantâneo ao mesmo tipo de informação?... A resposta é simples: maior volatilidade. Os preços dos títulos tenderão a sofrer episódios de aumentos e descidas abruptos e enormes! E isso poderá ter consequências económicas devastadoras... tal é a maravilha do sistema económico que nós "escolhemos".
Mas quem gere os cordelinhos deste tipo de instituições não anda na vida a dormir. À medida que a globalização foi avançando e o mundo se transformou numa pequena aldeia, o risco deste tipo de variações bruscas aumentou imenso, e assim também os mecanismos preventivos. Que mecanismos preventivos? Quarentena!
Quando uma coisa corre mal num mercado, coloca-se o mercado em quarentena. Fecha-se a transacção de determinado título, fecham-se todas as transacções num determinado mercado, fecham-se todas as transacções a nível mundial, se preciso for!
Outro exemplo: num edifício habitacional existem sempre escadas de emergência, e estas têm de estar equipadas com portas corta-fogos. Aliás, também nos incêndios florestais (embora me pareça um erro chamar floresta a plantações de pinheiros e/ou eucaliptos) existem longos corredores sem árvores, corredores corta-fogos.
A lógica é sempre a mesma: isolar, para impedir a propagação.
A tal globalização, de que já falei, tem implicado que de ano para ano as pessoas viajem cada vez mais. Por vários motivos. Nos últimos anos, pelo menos na parte do mundo mais próxima de Portugal (mas suspeito que em todo o mundo), o turismo tem aumentado imenso. E com isso os voos.
Este vídeo dá uma ideia da quantidade de aviões que andam no ar, num só dia, em todo o planeta. Notar que o vídeo já tem mais de 10 anos de idade, portanto hoje estaria bem mais povoado! Bem... se calhar hoje não... precisamente por causa do coronavirus!...
Quem quiser ver mais destas coisas pode tentar, por exemplo, este site: www.flightradar24.com.
Interligar fisicamente o planeta é obviamente colocar-nos sob um risco acrescido. É como misturar os iogurtes do mundo inteiro... e perdoem-me se às vezes viajo um pouco no iogurte... porque é melhor no iogurte que no avião: se aparecer uma bicheza num iogurte qualquer, muito mais depressa se irá alastrar a todos os outros.
Isto é evidente. Portanto, uma medida que nós, humanidade, podíamos tomar era, a longo prazo, parar de querer fazer uma equivalência entre viajar e ser feliz (até porque viajar muito tem uma série de outras consequências negativas, para além das óbvias positivas... mas isso é outra cumbersa).
Há quem possa achar esta minha sugestão estúpida e descabida. No entanto, ela terá resultados garantidos. Atirar rios de dinheiro para a investigação à procura de vacinas contra vírus que ainda estão para vir não dá resultados garantidos. O que é mais descabido?
Trata-se simplesmente de isolar as regiões do planeta. E, de resto, nem sequer é nada de novo. Quando viajamos de avião, não nos é permitido transportar uma série de animais e plantas precisamente com o objectivo de conter o alastramento de vírus ou bactérias ou até das próprias espécies animais ou vegetais que se podem tornar infestantes no local de destino. Podemos e devemos, digo eu, impor algum tipo de controlo à deslocação das pessoas entre países.
Controlo não quer dizer proibição.
Aliás, aproveito esta deixa para dizer que outra coisa que podemos e devemos fazer é tornar-nos mais politizados.
Tudo o que diz respeito à tomada de decisões conjuntas acerca da utilização de recursos que são de todos é uma questão política. Portanto, medidas que a nossa sociedade possa tomar com vista à prevenção futura de situações como a que estamos a viver, são medidas políticas. Era bom que as pessoas acordassem da lavagem cerebral a que foram sujeitas e que as fizeram acreditar que política = infelicidade e viagem = felicidade.
Se formos mais politizados e interventivos naquilo que a todos diz respeito, talvez possamos discutir que tipo de medidas é que podemos e devemos tomar para colocar portas corta-fogos que impeçam a rápida transferência de doenças entre países e continentes.
Outra coisa que podemos fazer, é tentar minorar a exploração dos animais, quer dos animais selvagens, quer dos animais domésticos que criamos para a nossa alimentação. A investigação científica tem mostrado, repetidamente, que a interacção próxima entre diversos tipos de animais e humanos promove a transferência de doenças dos animais para os humanos (doenças chamadas zoonóticas). Podemos e devemos deixar de criar animais como em fábricas, podemos e devemos deixar de, como espécie, querer comer todas as outras espécies, tudo o que mexe e que não mexe. Ser mais comedidos, portanto.
Veja-se, por exemplo, o seguinte artigo, publicado pela ONU:
Esta seria mais uma medida que teria resultados garantidos. No entanto, tal como com as viagens de avião, iria, pelo menos na cabeça das pessoas, reduzir a sua felicidade!... Portanto, haja política, ou seja, haja debate, discutamos entre nós as opções... Porque certo é que não há benefício que não tenha um custo associado.
Neste caso concreto do Covid-19, a cadeia de transmissão da doença foi, aparentemente, promovida pelo comércio de animais selvagens que não são de consumo habitual por toda a população. Pelo contrário, são animais vendidos a preços elevados às camadas da população chinesa mais endinheiradas.
O mesmo tem acontecido ao longo da história com o comércio de madeiras das florestas tropicais, papagaios, cornos de rinoceronte, etc, etc, etc. O que é que se pode fazer acerca disso? Uma série de coisas!... Estaremos dispostos a fazê-las?
Outras coisas que podemos fazer no médio ou longo prazo...
E que tal criar hospitais e centros de saúde com mais salas que permitam o atendimento de pessoas com doenças contagiosas? Que essa coisa de "se estiver doente NÃO venha ao hospital"... compreende-se... mas num mundo melhor isso poderia ser tratado de outro modo... E que tal ter um sistema de saúde mais bem equipado? E não me venham com a treta do dimensionamento óptimo para o número de casos expectáveis e tal e tal... Eu entendo bem de economia e de estatística, e insisto na última pergunta.
E que tal um outro sistema económico, não baseado no crescimento infindável?
Viriato Soromenho Marques afirmava, no seu artigo de 7 de Março, que"o covid-19 devolve-nos, sem maquilhagem, o
rosto assustador da verdadeira peste do nosso tempo. A nossa servil e
suicida adição ao encarniçado crescimento exponencial, que corrói os
próprios ecossistemas de que depende a nossa sobrevivência como
civilização!"
5ª Consideração
Há quem fale num "teste à democracia"...
Como dizia o outro, a democracia é o pior de todos os sistemas, com excepção de todos os outros.
Como dizia eu mesmo, a democracia funciona bem se as pessoas forem boas. Mas também a ditadura funciona bem se o ditador (ou a ditadora) for bom (ou boa).
A ditadura é má, na medida em que não nos defende da possibilidade de o ditador ser mau. A democracia está cá para isso, para nos permitir "sermos donos dos nossos destinos"... Ah!... Que belo!!...
Não me interpretem mal: eu sou completamente contra ditaduras e completamente a favor de democracias. A questão é a de saber mais rigorosamente o que é isso de democracia e considerar também as suas falhas. Mas, novamente, isso é outra cumbersa. Uma outra conversa que talvez nos permitisse entender que a "nossa democracia" não é tanto "demos", nem tanto nossa.
As democracias, na medida em que o forem verdadeiramente, implicam politização, participação activa das pessoas, debate, votação... Ou seja, são uma grande chatice!... Todo este processo implica tempo. Tomar boas decisões pode ser uma questão de sorte. Mas fazer os possíveis para tomar em conjunto as melhores decisões, é sempre um processo moroso.
E isso implica que num contexto diferente daquele a que estamos habituados, que não foi antecipado, e no qual é preciso tomar rapidamente decisões radicais, as democracias estão condenadas a não funcionar muito bem.
Foi decretado há dias, em Portugal, o "estado de emergência".
Ai, ai, o mundo vai acabar!...
Na verdade, o estado de emergência não é apenas uma parangona que permite publicitar junto das pessoas a necessidade de agir de um ou outro modo, não é apenas uma coisa para se meter num cartaz ou num jornal a dizer "isto é uma emergência!". Decretar um estado de emergência é algo que compete conjuntamente à Assembleia da República e ao Presidente da República e tem como efeitos imediatos conferir mais poderes de actuação ao Governo, através da suspensão temporária de direitos, liberdades e/ou garantias dos cidadãos.
Afinal, bem vistas as coisas, o estado de emergência não é mais do que uma situação temporária e excepcional na qual uma democracia se aproxima um pouco mais de uma ditadura, no sentido de que os direitos dos cidadãos ficam mais restringidos e o poder de actuação dos órgãos governantes fica mais alargado.
Ninguém decreta um estado de emergência para debater assuntos com os cidadãos ou para fazer referendos. Os estados de emergência são necessários para impor medidas urgentes que de outro modo seriam simplesmente ilegais. Como, por exemplo, a obrigação das pessoas se manterem em suas casas.
As pessoas são geralmente muito mais subservientes aos poderes instituídos do que aquilo que julgam. Talvez a muitas não tenha sequer ocorrido que o Governo simplesmente não tem capacidade para nos obrigar a ficar em casa. Pois em geral, não tem. Em geral... Mas num "estado de emergência" o caso muda de figura.
Ou seja: no caso que temos em mãos, e a menos que os ditadores e respectivos adjuntos sejam uns totós, uma ditadura está sempre em melhor situação para atacar o problema. Simplesmente porque pode actuar mais rapidamente e de forma mais "enérgica".
Em tudo na vida há um lado positivo e um negativo. Não faz sentido julgar as democracias (admitindo que são efectivamente democracias) pela capacidade de actuação face a um coronavirus. Não é nisso que elas são boas. Não vale a pena insistir.
6ª Consideração
A economia.
Ou: será que vamos morrer da cura?
Bom, se em relação à saúde das pessoas, tudo está em aberto, em relação à economia não há problema algum! É só deixar os mercados funcionar e a mão invisível do nosso amigo Adam Smith irá tratar de tudo!
Senão, vejamos: o encerramento obrigatório de diversos tipos de estabelecimento irá reduzir os proveitos dos empregadores. Esses empregadores terão de (a) recorrer a poupanças para continuar a pagar aos trabalhadores, (b) recorrer a empréstimos para o mesmo fim ou (c) despedir os trabalhadores. No conjunto da economia, as três coisas irão acontecer em simultâneo.
Os primeiros trabalhadores a saltar são os que têm vínculos precários. Mas não se deixem enganar pelo nome! "Precário" quer dizer que é bom para a economia, precisamente porque permite que as empresas se adaptem mais rapidamente e com menos custos às flutuações do mercado!... Depois saltarão os trabalhadores cujas indemnizações sejam menores, o que em geral significa os mais jovens. Mas neste caso os despedimentos implicarão custos para os empregadores.
O recurso a empréstimos irá deixar as empresas numa situação de dependência, e implicará o pagamento de juros potencialmente durante longos períodos. Mas isso é óptimo, porque dinamiza o sector financeiro, e dá um rendimento acrescido aos bancos, coitadinhos, que têm andado pela hora da morte.
O recurso a poupanças, para os empregadores que as tenham, é mau para esses empregadores, porque lhes diminui os proveitos financeiros, mas é bom para a economia, pois é uma espécie de investimento forçado, injectando dinheiro na economia no momento em que ela mais precisa!
De um modo ou de outro, ou de todos os modos em simultâneo, muitas empresas terão custos acrescidos e proveitos diminuídos. O rendimento do capital investido irá, portanto diminuir. Mas isso é óptimo, porque irá permitir uma "purga" do mercado, libertando-o de empresas pouco produtivas, e deixando de pé aquelas que são efectivamente as mais eficientes. Assim, no final da crise, a economia estará povoada apenas de empresas sãs, com óptimas condições de crescimento!
Do ponto de vista das famílias, o rendimento tenderá a diminuir, sobretudo por causa das reduções dos salários e do aumento do desemprego. Mas isso é óptimo! Por um lado, as reduções de salários implicam reduções de custos para as empresas, que assim poderão aumentar a sua competitividade num mercado global cada vez mais exigente! Por outro lado, o aumento do desemprego, além de contribuir ele próprio para um abaixamento dos salários, aumenta a competição entre os candidatos a um qualquer emprego. E já se sabe que a competição é o melhor dos estímulos para as pessoas conseguirem o que quer que seja! É assim que o aumento do desemprego será bom para promover o aumento da formação profissional e o "abaixamento da bolinha" no mercado do trabalho, tudo coisas óptimas!
Na interacção entre as famílias e as empresas será mais difícil de prever a evolução dos acontecimentos. Por um lado, o encerramento de empresas irá diminuir a oferta. Por outro lado, a diminuição do rendimento das famílias irá diminuir a procura. Assim, é difícil de antecipar se os preços irão aumentar ou diminuir. De qualquer modo, se os preços diminuírem, isso será óptimo para a economia, porque não só permitirá um aumento do nível de vida das famílias, como colocará a economia numa posição competitiva privilegiada! Por outro lado, se os preços aumentarem, isso será óptimo, porque irá permitir um rendimento acrescido às empresas que estiverem em actividade, e é esse rendimento acrescido que faz girar a economia. Já se sabe que para distribuir riqueza, primeiro é necessário gerá-la!
Quanto à relação dos Estados com as empresas, o coronavirus irá permitir um aprofundamento dessas relações. De facto, prevê-se que os Estados, em vez de emitirem moeda pelos seus próprios meios, o que toda a gente sabe que seria péssimo pois criaria automaticamente uma situação de hiperinflação, irão endividar-se ainda mais juntos dos bancos e outras empresas. Isso permitirá criar a obrigação do pagamento de juros pelo Estado durante muitas décadas, o que é óptimo para a economia, uma vez que é uma forma de os Estados transferirem dinheiro de quem tem pouco, porque não o sabe usar, para quem tem muito, porque sabe usá-lo da forma mais eficiente!
Portanto, veja-se a coisa como se quiser ver, ela será sempre óptima para a economia! E já se sabe que o que é bom para a economia, é bom para todos nós!
Ou será?...
Mas enfim... Aterrando um pouco depois do meu delírio economicista (mas que é tão real que levamos com ele todos os dias, mesmo não querendo!), eu diria que esta é toda uma outra cumbersa.
É, no entanto, uma conversa que podemos deixar para outra altura, porque este artigo já vai longo, e receio, muito sinceramente, que as sequelas na economia serão bem mais graves e duradouras que as sequelas que este vírus deixará na nossa saúde.
Seria, sem dúvida, uma altura ideal para repensar a economia que temos e a que queremos ter.
Mas numa sociedade onde falar de política é mal visto e/ou liberta os sentimentos mais básicos das pessoas, e onde as economias possíveis são, na cabeça das pessoas, ou aquilo que temos, ou uma ditadura com filas para adquirir manteiga, eu sinceramente não estou muito optimista.
Enfim... haja saúde!
sábado, 21 de março de 2020
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