Estamos no ano 2020 e o "aquecimento global" parece finalmente ter-se tornado numa "cena". Escrevo assim, porque verdadeiramente não sei o que isso quer dizer. Talvez a maioria das pessoas que rodeiam o calhau oceânico onde agora vivo saibam que existe algo chamado aquecimento global, que isso é um problema com más consequências e que uma das causas para isso é a queima de combustíveis fósseis. Talvez noutros sítios deste calhau planetário também seja assim. Essa tomada de consciência é boa, embora seja pena que o "ambiente" continue a ser uma coisa mal definida, às vezes (mal) identificada com campos verdinhos (que aqui vêm geralmente acompanhados de vaquinhas a pastar) e que muitos outros problemas ambientais, alguns dos quais mais graves, continuem a ser menosprezados ou mesmo ignorados.
A mensagem propagandeada (e bem) é então de que a queima de combustíveis fósseis liberta dióxido de carbono para a atmosfera, e que o aumento da proporção desse gás na atmosfera acidifica os oceanos e aumenta o efeito de estufa, conduzindo ao aumento da temperatura média à superfície da Terra, o que conduz a uma série de consequências nefastas (degelo das calotes polares, subida dos oceanos, maior frequência e intensidade de incêndios, maior propensão para fenómenos atmosféricos extremos, etc.).
A mensagem implícita é: temos de queimar menos carvão, petróleo e derivados.
Mas toda a actividade económica que sustenta o nosso bem-estar necessita de fontes de energia!
(Central Termoeléctrica de Sines, actualmente em processo de encerramento)
Nas últimas décadas houve grandes avanços tecnológicos que permitiram aumentar muito a eficiência da transformação da energia eólica e da radiação solar em energia eléctrica. Isso lançou a onda das "energias renováveis".
(Aproveitando a boleia dessa onda das energias renováveis, tem-se feito muita campanha (e bem financiada... quiçá com o dinheiro dos nossos impostos) na mobilidade eléctrica, com especial enfoque nos veículos automóveis eléctricos. Seria bom, no entanto, que o trigo fosse separado do joio. Uma coisa é a produção de energia eléctrica a partir de fontes renováveis como o vento, outra coisa é a utilização de carros eléctricos, cuja energia eléctrica pode ser produzida em centrais a carvão, que utilizam baterias de lítio cuja reciclagem é um berbicacho, e que não eliminam de todo os problemas que o sistema rodoviário apresenta (ruído, ocupação dos espaços públicos, segurança rodoviária, etc.). Mas isso é outro assunto.)
Entretanto, muitas pessoas bem informadas acerca dos problemas associados à queima dos combustíveis fósseis começaram a levantar objecções à tentativa de substituição dessa fonte energética pelas fontes renováveis vento e sol. E com bastante razão.
De facto, quando se diz que o vento é uma fonte de energia "limpa", não estamos a ser totalmente correctos. A instalação de turbinas eólicas tem grandes impactos no meio ambiente. Esses impactos não são apenas estéticos, mesmo que isso também seja importante. Para instalar e manter as turbinas é necessário abrir estradas até e ao longo das cristas dos montes (e nunca é demais realçar como as estradas são inimigas dos habitats e dos respectivos residentes). As pás das turbinas são um perigo para muitas aves. O ruído que provocam perturba a vida animal numa área considerável ao seu redor.
Outras objecções podem ser levantadas à transformação da energia da radiação solar em painéis fotovoltaicos. Mas bem para além disso, é preciso sempre considerar que estes equipamentos têm uma vida útil limitada e que, portanto, têm de ser mantidos e eventualmente substituídos. E o fabrico, transporte e instalação destes equipamentos tem impactos significativos no meio ambiente, também através do consumo de energia.
Neste contexto, têm surgido várias vozes a advogar a defesa da energia nuclear, como sendo, pelo menos no imediato, a única fonte de energia capaz de sustentar o crescimento económico, sem contribuir para o aquecimento global, e sem apresentar os inconvenientes associados às eólicas ou aos painéis solares.
Quando vivi em França, em 1995, fui surpreendido como muitas casas e lojas eram aquecidas internamente até mais de vinte graus, enquanto o exterior podia estar a menos vinte. Ao ponto de as pessoas andarem de t-shirt, terem calor, e deixarem as janelas abertas para arrefecer. Ao mesmo tempo que as lojas, para atraírem clientes, mantinham as portas escancaradamente abertas, sem sequer ter uma cortina ou algo que impedisse a saída do ar quente e a entrada do ar frio. Só depois percebi a fonte de tanta despreocupação: toneladas de energia eléctrica barata, vinda directamente de centrais de energia nuclear.
Será a energia nuclear uma solução?
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A energia nuclear é renovável?
As centrais de energia nuclear consomem urânio. O urânio não se renova. Mais tarde ou mais cedo essa fonte irá extinguir-se.
Mas será que existem fontes de energia verdadeiramente renováveis? Essencialmente, chamamos renováveis às fontes de energia que dependem directamente (ou quase) do nosso Sol. Um painel fotovoltaico pode converter a radiação recebida directamente do Sol em energia eléctrica. As diferenças de temperatura originadas pelo Sol à superfície da Terra e na atmosfera geram correntes de ar cuja energia pode ser parcialmente capturada por turbinas eólicas. Essas correntes de ar transportam também humidade e originam o ciclo da água, cuja energia pode ser parcialmente capturada por centrais hidroeléctricas.
Mas um dia o Sol deixará de emitir energia. E nesse dia, as energias a que agora chamamos renováveis, deixarão de ser renovadas.
Assim, ser renovável ou não, depende da escala temporal que queiramos considerar. A vantagem das energias que dependem directamente do Sol é que este irá continuar a brilhar durante muito tempo: uns bons milhares de milhões de anos.
A uma escala temporal bem mais reduzida, os próprios combustíveis fósseis podem ser considerados uma fonte de energia renovável. Afinal o petróleo não é mais do que o resultado do aprisionamento da energia solar em matéria orgânica, posteriormente sujeita a uma metamorfose a alta temperatura e pressão durante alguns milhões de anos.
Mas poderemos reduzir a nossa escala temporal a apenas alguns anos, e mesmo nesse curto período uma árvore consegue utilizar a energia solar para aprisionar carbono, dando-nos madeira que podemos queimar numa salamandra. Portanto, também a lenha pode ser considerada uma fonte de energia renovável, tal como a matéria orgânica utilizada nas centrais de biomassa.
Mas voltemos à energia nuclear. Essa energia não é renovável, numa escala temporal que poderá ir para além da vida do nosso Sol. O urânio é o produto de acontecimentos fora do nosso alcance, como a explosão de estrelas. Talvez no futuro consigamos encontrar uma forma de utilizar a energia solar para produzir urânio a partir de elementos químicos mais leves. No entanto, isso parece muito improvável enquanto possibilidade, e parece muito irracional do ponto de vista de eficiência, uma vez que provavelmente gastar-se-ia muito mais energia a produzir o urânio do que se aproveitaria depois no seu consumo.
Neste momento, os estudos mais optimistas sobre a capacidade de extracção de urânio até da água do mar, conjugados com a maior eficiência possível na sua utilização, indicam que a Terra contém urânio suficiente para suster as necessidades humanas durante alguns milhares de anos.
Se o urânio não é renovável, o máximo que se pode considerar é que ele pode ser uma solução temporária, enquanto não encontramos uma fonte alternativa.
Numa altura em que os gritos de alerta acerca do aquecimento global se tornam cada vez mais altos e frequentes, faz algum sentido que haja proponentes da utilização da energia nuclear, nem que seja apenas como uma solução temporária. Mas, mesmo nesses moldes, convém analisar com um pouco mais de profundidade se esta é ou não uma solução recomendável.
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As centrais de energia nuclear não são limpas nem seguras.
O urânio é radioactivo e os produtos da sua cisão também são radioactivos.
Na verdade, muitos átomos (ou isótopos... formas específicas dos átomos de cada elemento) são instáveis e podem transformar-se noutros elementos emitindo alguma radiação (lista de isótopos radioactivos). Só que alguns elementos levam mais tempo a fazê-lo do que outros. A radioactividade dos elementos pode então medir-se numa escala, e esses elementos serão classificados como mais ou menos radioactivos. Afinal, todos nós estamos sujeitos a alguma radioactividade no nosso dia-a-dia.
A questão é que os elementos envolvidos na operação de uma central de energia nuclear são muito mais radioactivos que os elementos que nos circundam no dia-a-dia.
A radioactividade é perigosa para todos os seres vivos, não apenas para os seres humanos. As partículas ou radiação emitidas por um isótopo radioactivo são altamente energéticas (ver radiação ionizante) e conseguem alterar a estrutura das moléculas que compõem as células dos seres vivos. Esta alteração das moléculas pode implicar a morte da célula ou, com azar, o surgimento de uma mutação cancerígena.
As centrais de energia nuclear utilizam como combustível (embora não se trate de uma reacção de combustão) material radioactivo e produzem resíduos radioactivos.
Os resíduos radioactivos são muito perigosos. Também os resultados de uma combustão normal numa lareira podem ser muito perigosos. Mas a perigosidade dos resíduos das centrais nucleares é diferente. Por um lado, a radiação que emitem atravessa paredes e não é detectada pelos nossos sentidos. Por outro lado, mantêm-se perigosos durante muito tempo. Durante muitíssimo tempo. Durante tanto tempo que nos devem fazer pensar muito bem antes de decidir ir por aí...
De facto, existe uma questão ética importante em todas as questões relacionadas com a preservação do meio ambiente e que tem a ver com o não comprometer as possibilidades dos seres vivos vindouros. Ora os resíduos das centrais nucleares irão manter-se radioactivos durante milhões de anos (ver tempo de meia vida do isótopo de iodo 129). Por mais encapsulados e enviados para as profundezas dos oceanos ou do subsolo que sejam, esses resíduos manterão a sua perigosidade por mais tempo do que qualquer planeamento humano consegue alcançar. E, portanto, a tal questão ética é premente!
Mas a radioactividade das centrais nucleares não se resume ao combustível e aos resíduos.
As centrais de energia nuclear transformam a energia libertada na cisão dos átomos em energia eléctrica. Esse processo é mediado por água: a energia que os átomos libertam converte-se em calor, o calor é transmitido à água, e a água aquecida move turbinas que produzem a electricidade. A água utilizada nesse processo fica contaminada, e alguma dela pode escapar para o meio envolvente caso existam fugas, o que infelizmente é mais vulgar do que se pensa.
Existe um outro ciclo de água nas centrais de energia nuclear que se destina exclusivamente a arrefecer e manter termicamente estável o primeiro ciclo anteriormente descrito. Ora este circuito de arrefecimento gera enormes quantidades de água morna que tipicamente é despejada para grandes massas de água existentes perto das centrais (rios, lagos, mares). E isso constitui, só por si, um tipo de poluição com bastante impacto para os seres que vivem nessas massas de água. De resto, este tipo de poluição é comum às centrais de combustíveis fósseis.
Por outro lado, depois de se utilizar uma porção de combustível, o resíduo não é imediatamente manipulável. Primeiro ele tem de ser arrefecido em piscinas durante vários anos. E isso gera mais água contaminada.
Mas não é apenas a água que fica contaminada. Também algumas peças de vestuário dos funcionários e todo o edifício da central fica contaminado.
Ou seja, há uma série de outras fontes de radioactividade envolvidas na operação de uma central nuclear que, embora menos perigosas, também têm de ser consideradas. Ao longo das décadas em que as centrais de energia nuclear têm operado, muitos têm sido os casos de pequenas fugas de água contaminada para o exterior do edifício...
Finalmente, há todo o custo da construção da central e da sua manutenção ou encerramento, e há também todo o custo ambiental da mineração do urânio.
As centrais nucleares não são limpas, mesmo que possam ser consideradas mais limpas que as centrais a carvão, e também não são seguras, mesmo que possam ser consideradas mais seguras que uma central a carvão. Acima de tudo, elas transformam um tipo de problema, noutro tipo de problema, com o enorme fardo de criarem um problema para as gerações vindouras por mais tempo do que a nossa imaginação consegue alcançar.
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E isto tudo é mesmo necessário? Não haverá uma alternativa?
O debate actual pode resumir-se ao seguinte: precisamos de energia, existem estas fontes de energia, todas elas têm vantagens e inconvenientes, qual é a que apresenta mais vantagens e menos inconvenientes?
Esse debate é falacioso, porque parte de uma premissa errada. Infelizmente, imensas discussões económicas, sociais e políticas partem desta mesma premissa errada: a de que a felicidade humana está dependente do crescimento. Crescimento num sentido lato. Acreditamos, sem pestanejar, que a nossa felicidade depende do crescimento da economia, de veículos mais rápidos, de podermos ir mais longe no universo, da utilização de mais energia, de mais viagens de férias, de mais comida, de mais roupa, de mais tecnologia, de mais conhecimento, de mais ciência, de mais sexo, de mais prazer, de mais tudo e mais alguma coisa.
No entanto, parece que não nos ocorre estoutro simples raciocínio: se a nossa felicidade depende de termos mais de tudo, inclusive mais de nós mesmos, então os antigos, coitadinhos, estiveram condenados à infelicidade! Todos eles! Desde o australopiteco! Será isso verdadeiro?...
Não seremos nós capazes de sermos felizes sem esta corrida frenética rumo ao topo de uma montanha que queremos sempre cada vez mais alta?
Às vezes penso que no estádio actual das coisas as pessoas dificilmente conseguiriam imaginar uma sociedade sem "progresso", isto é, em que as pessoas vivem do mesmo modo que os seus avós viveram e em que sabem que os seus netos irão viver do mesmo modo que elas próprias vivem. No entanto, foi assim que viveu a humanidade durante mais de 99% da sua existência. E custa-me a acreditar que isso os tenha condenado à infelicidade.
Infelicidade é sabermos que, no mundo actual, por mais tecnologia e ciência e velocidade e energia que tenhamos, vamos continuar a ter de ir trabalhar num trabalho de que não gostamos e vamos continuar a sujeitar os outros seres vivos à miséria. Mesmo que a humanidade inteira já produza mais penduricalhos do que os que é capaz de consumir!... Será isto mesmo necessário?
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O verdadeiro problema nos debates sobre a energia.
Todas as formas de "produzir" energia têm impacto ambiental. Quando isso é feito à escala em que a humanidade hoje em dia faz as suas coisas, esse impacto é enorme. O mesmo deve ser dito em relação à utilização dessa energia. As nossas casas quentes têm um impacto, os nossos duches quentes, os produtos plastificados que usamos, os aviões em que voamos, todas as formas de "consumir" energia têm o seu impacto.
Acreditamos, porque nos fizeram acreditar, que precisamos de mais energia para sermos felizes. Corremos atrás disso. Mas quando finalmente começamos a perceber que esta corrida não pode continuar, sentimos imensa dificuldade em voltar atrás.
Quando era criança, quase ninguém voava de avião. Só alguns, e só muito de vez em quando. Hoje em dia todos o fazem por dá cá aquela palha. No entanto, se propusermos agora um regresso ao número de viagens que se fazia há 40 anos atrás, muita gente irá ficar revoltada.
O verdadeiro problema relacionado com a energia é a dependência que construímos dela.
De cada vez que surge um problema relacionado com a produção ou o consumo de energia, a humanidade inteira (e nós também!) dedica-se à pesquisa de vias alternativas que nos permita continuar a aumentar a quantidade de energia produzida e consumida, alegando, propositada ou reflexivamente, que isso é indispensável ao nosso bem-estar.
Temos de saber parar.
Não, a solução não é construir centrais de energia nuclear. Não, a solução não é queimarmos mais carvão. A solução não é enchermos todas as montanhas com turbinas eólicas. A solução não é barrarmos todos os rios. Nem é conduzirmos automóveis eléctricos.
A solução é aprendermos a ser felizes doutros modos. Por exemplo, encontrando formas de extinguir os trabalhos de que não gostamos.
("O burro e o gaiteiro", 2009)
Até lá, tudo aquilo que venha do baú das invenções para nos "ajudar" nesta questão energética, só estará a contribuir para agravar a nossa dependência e, com isso, os problemas de muitos outros seres vivos do nosso calhau.
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