segunda-feira, 7 de setembro de 2020

David Graeber - reinvenção da felicidade...


No passado dia 2 de Setembro David Graeber deixou-nos. À data em que escrevo isto não tenho conhecimento da causa desse muito infeliz acontecimento. Sei que, pelo menos para mim, foi inesperado, e que certamente foi muito antes do tempo: tinha 59 anos de idade e uma cabeça que debitava modos de ver o mundo próprios. Muitos de nós arrogam-se a genuinidade de um pensamento livre, autónomo, independente, até inovador, até direitos de autor, sem nos darmos conta de que apenas modificamos umas coisitas pequenas a tudo aquilo que fomos apanhando pelo caminho. Mas David Graeber era daquelas pessoas que verdadeiramente parecia pensar nas coisas à sua maneira, quer quando produzia ideias diferentes, quer quando produzia ideias iguais.

Entre outras coisas, deixou-nos dois livros que estão na minha lista de coisas a fazer (sempre adiadas pelas horrorosas e mundanas necessidades...): "Bullshit jobs" e "Debt: the first 5000 years". Portanto, se as coisas correrem bem, voltaremos a isto nos próximos tempos, e por mais que uma vez.

Entretanto fica um pequeno excerto de um dos últimos vídeos públicos, do passado mês de Julho, e o respectivo texto em baixo.

É urgente olhar para a realidade com olhos diferentes. O problema é que já estamos de tal modo formatados, que não acreditamos noutras narrativas... A urgência, no entanto, é objectiva, e permanece.

(vídeo completo aqui)

Inglês:

"The period right after the Black Plague was the Golden Age for the working classes in most of Western Europe and I always say that if you wanna see how the class struggle is kinda going in any particular time and place in world history, the easiest way to check is to see how many days people had to work. Well in the 14 hundreds right after the population went way down, wages went way up, there’s a massive distribution, you suddenly get these sanctuary laws saying, you know, it’s illegal for peasants to wear ermine, which they really didn’t need to have a law about before and... all of a sudden like a third to one half the days were saints’ days and holidays of one kind or another. But the interesting thing is that it was all thrown into this collective consumption rather than individual consumption. Capitalism only happened when they broke with that. So if you read like you know these sort of British calendar rituals are usually referring to that period you know which was the heyday when the Lords of Misrule (https://en.wikipedia.org/wiki/Lord_of_Misrule) and Abbotts of Unreason and the Prince of Sots and all these names for these sort of make-believe organizations, forms of government, [where you'd] kind of jump in during holidays... and, you know, they were great! I mean like I remember reading descriptions of this and I was like, okay, on the second Tuesday after Lent, you know, women will form marauding bands and kidnap men and hold them for ransom and on this day they’ll have cheese races and then on that day, you know, and so forth and so on, this endless novel, build dragons and carry on with your dragons and set them on fire and so forth and so on. So I think if there’s something to be learned from post-Plague societies it’s to use our imagination to recreate society in that way. In a way that’s why everybody started running out to meet each other as soon as lockdown ended - seemed like it could turn into that kind of a festive life. We need to reinvent what we think of as happiness because you know we’ve got this dynamic between these sort of solitary hedonistic pleasures and this pure chemical need to do more and more work until you justify it, which is literally killing us. We need to go the other way out/above."

Português (tradução livre):

"O período que se seguiu à Peste Negra (cerca de 1350) foi o período dourado das classes trabalhadoras na maioria da Europa ocidental e eu sempre digo que se queres averiguar como a luta de classes está indo em qualquer situação particular ao longo da história mundial a maneira mais fácil é verificar quantos dias é que as pessoas tinham que trabalhar. No século XV, logo depois de a população ter diminuído muito e os salários terem aumentado muito, há uma grande distribuição [de riqueza] e de repente tens estas leis a dizer que é ilegal os agricultores vestirem arminhos... leis que antes não eram necessárias... e de repente um terço ou metade dos dias eram dias santos ou feriados de um ou outro tipo. Mas o interessante é que fazia tudo parte deste consumo colectivo, em vez de ser contabilizado no consumo individual de cada um. O capitalismo só surgiu quando se deixaram disso. Portanto se leres sobre os rituais do calendário britânico és sempre dirigido para esse período de apogeu da folia em que havia uma data de organizações fictícias (https://en.wikipedia.org/wiki/Lord_of_Misrule) que a sociedade adoptava durante os feriados... e eram óptimas! Lembro-me de ler descrições de... por exemplo, na segunda terça-feira depois da quaresma as mulheres formavam seitas que raptavam os homens, pedindo depois um resgate por eles... noutro dia havia corridas de queijos e noutro outra folia qualquer... sempre nesta novela interminável, construir dragões e andar com eles e depois atear-lhes fogo, etc, etc. Portanto eu penso que se há qualquer coisa a aprender de sociedades pós-pragas, ou pós-pandemias, é usar a nossa imaginação para recriar a sociedade desse modo. De certo modo, foi por isso que as pessoas saíram a correr para se encontrarem umas com as outras quando o confinamento terminou - parecia que se podia tornar nesse tipo de vida festiva. Precisamos de reinventar o nosso modo de pensar a felicidade porque neste momento temos esta dinâmica entre os prazeres hedonísticos solitários e esta necessidade puramente química de trabalhar mais e mais para poder justificar [a sua recompensa] que está literalmente a matar-nos. Nós precisamos de sair disto de outro modo."


Angra do Heroísmo, 7 de Setembro de 2020

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