Imagine que você era proibido de correr caso não fosse capaz de demonstrar que era o mais rápido do seu bairro.
Ideologia. Uma palavra que pode, mesmo nesta era de indiferença, acicatar paixões. Alguns pensarão nos ideais que nos fazem lutar por uma sociedade melhor, e daí poderão partir para os valores e a famigerada crise de valores. Outros pensarão em populações inteiras mobilizadas em torno de um líder, que tanto pode ser um símbolo do bem como um símbolo do mal. Alguns não hesitarão em afirmar que as ideologias estão mortas, e ainda bem! Enfim, há todo o tipo de ideologias acerca das ideologias.
O que normalmente é menos perceptível são as crenças que todos nós possuímos sem sermos sequer capazes de investigar se são ou não verdadeiras, de identificar os efeitos que produzem em nós, de conhecer as suas origens e como chegaram até nós, ou de como nós contribuímos para que perdurem no tempo e afectem outras pessoas.
Vale o mesmo dizer que todos nós possuímos uma ideologia que desconhecemos, e desconhecemos que possuímos essa ideologia, esse conjunto de ideias, de formas de ver e interpretar o mundo e de conduzir o nosso comportamento.
Encararmos tudo como um negócio e todos como competidores é um sintoma, um sinal exterior dessa lavagem interior.
Neste vídeo, com a chancela do FermiLab, a cientista Jennifer Raaf fala um pouco de dois exemplos de como o seu trabalho pode ter implicações práticas muito úteis na vida de todos nós. O que, só por si, já é um sintoma da ideologia que se possui: essa necessidade constante da utilidade prática... Mas vá, o segundo dos exemplos é sobre a construção de um ventilador para utilização nos doentes com Covid-19, e isso sim, é uma utilidade muito bem-vinda neste momento.
A certa altura a moderadora coloca à cientista a seguinte questão: quais são os competidores a nível mundial, e quão diferentes são esses competidores?
Na resposta, a cientista refere que há muitas equipas a trabalhar na concepção e produção de ventiladores, mas que não gosta de pensar nisso como competição, que pensa que estamos todos juntos nisto: quantos mais ventiladores estiverem disponíveis, melhor para todos.
Esta resposta pode parecer evidente, mas infelizmente não é, e merece da nossa parte alguma reflexão.
A reflexão que se impõe é ao mesmo tempo tão simples, tão à mão-de-semear, e ao mesmo tempo tem repercussões tão profundas, e tão contraditórias com a ideologia que perfilhamos sem o sabermos, que eu suspeito que as dissonâncias cognitivas que todos temos vão servir de travão e vão impedir a progressão logo depois da partida. De resto, não me apetece apontar qual é a reflexão que isto merece... portanto, quem quiser que pense nisso.
Apesar disso, vou referir um pouco da minha experiência pessoal e algumas questões que ela me foi levantando, na esperança de que talvez possa servir como engodo.
No ano de 2010 comecei a trabalhar no Laboratório Nacional de Engenharia Civil - LNEC. Este laboratório construiu ao longo das décadas uma sólida reputação, pelo menos junto das pessoas que estão de algum modo ligadas à construção de obras de engenharia de alguma envergadura e responsabilidade. Efectivamente, quando lá trabalhei, senti que o espírito era diferente de tudo aquilo que tinha experimentado noutros lugares. Hoje mantenho essa opinião. Não estou a dizer que é um lugar único no mundo: há certamente muitas instituições com "espíritos" semelhantes. Estou simplesmente a dizer que eu não encontrei igual, o que me leva a pensar que não será muito comum.
Por exemplo: os projectos não tinham obrigatoriamente um prazo definido para a sua conclusão. Um pressuposto que serve de fundamento a isso é o de que as pessoas que lá trabalham são sérias, não estão a brincar, e fazem o melhor que podem no prazo mais curto possível. Outro pressuposto é o de que a investigação não é um caminho rectilíneo e não é possível prevê-lo com segurança. Outro ainda é o de que a qualidade do resultado final é essencial. Aquela treta do "óptimo é inimigo do bom" é algo que simplesmente não se aplica quando se contrói uma barragem: a barragem não pode colapsar, aconteça o que acontecer, até se acontecer um tremor de terra.
Neste ambiente, e antes da grande treta da troika, sobre a qual já falei muito no passado e não propriamente de forma lisonjeira, as pessoas eram relativamente bem remuneradas e essa remuneração não dependia do sucesso comercial dos produtos vendidos. Os produtos não eram necessariamente vendidos, sequer. Eram profusamente testados para garantir, com uma margem de erro limitada, um determinado desempenho. No entanto, podiam ter um aspecto exterior asqueroso, capaz de afastar qualquer pessoa da montra da loja onde fossem exibidos.
Como resultado disto tudo, e não só, não existia, ou pelo menos eu não senti, essa coisa da "competição". Os diversos departamentos do LNEC não competiam uns com os outros. Pelo contrário, colaboravam.
(Escrevo no passado, porque falo da minha experiência pessoal, e não sei como as coisas estarão nesse instituto nos dias de hoje.)
Nem o LNEC ou os seus investigadores encaravam outras instituições como competidoras. Pelo contrário, havia um espírito de intercâmbio de ideias com outras instituições e de trabalhos conjuntos, em parceria. O típico ambiente que gera artigos científicos escritos simultaneamente por gente dos n cantos do mundo.
Entretanto, porém, o LNEC foi vendo o seu propósito esvaziar-se paulatinamente de sentido.
Talvez já tenham reparado nesse outro sinal exterior... nesse comportamento que todos temos, tarde ou cedo, de substituir peças aqui e acolá... Quando algo se avaria, deita-se fora e compra-se outro. Na melhor das hipóteses, como acontece por exemplo com os automóveis, identifica-se qual é o componente avariado, e então deita-se fora esse componente e instala-se outro novo. Talvez nunca tenham tentado reparar vocês mesmos umas calças rotas, um aquecedor que não aquece, uma máquina fotográfica cujo ecrã partiu. Mas se já tentaram, talvez tenham percebido na pele porque é que tanto se deita fora e se compra novo: porque o novo é muito barato quando comparado com o custo de reparar o velho.
De facto, o "mercado" está cheio de todo o tipo de penduricalhos, de todas as qualidades, a preços imbatíveis.
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Quando digo "preços imbatíveis" quero dizer que são mesmo imbatíveis.
Talvez tenham sempre olhado para isso do ponto de vista do consumidor, que todos somos, concluindo que isso é óptimo, pois permite-nos ter acesso a mais bens com o mesmo dinheiro. A felicidade ao virar da esquina!
Mas do ponto de vista do produtor, que igualmente todos somos, isso empurra-nos para o desemprego. Não quero com isso dizer que não vamos conseguir encontrar um qualquer emprego ou que vamos ficar sem dinheiro e sem acesso a bens. De um modo ou de outro o nosso sistema económico irá garantir que nós possamos continuar a ser consumidores, mesmo que apenas dos bens e serviços mais básicos. O que quero dizer é que sempre que pensamos em construir um negócio de isto ou de aquilo esbarramos muito facilmente no facto de isto ou aquilo já existir e já ser vendido ao preço da chuva.
No início da pandemia foi interessante ouvir pessoas a comentar, quase indignadas, que é uma vergonha Portugal não produzir nada e comprar tudo de fora. "Tudo" é excessivo... mas percebe-se a ideia. Ideia que me parece bastante reveladora da ignorância que perpassa toda a sociedade acerca do mundo em que vivemos e perpassa todas as cabeças acerca daquilo em que acreditamos.
O que quero dizer é que nós, enquanto potenciais produtores do serviço de reparação do aquecedor, desistimos e optamos por comprar um aquecedor novo. Isso é que é o nosso desemprego. Podemos pensar nisso como uma bênção, tal como nos foi levado a acreditar, mas bem pelo contrário, é uma maldição. É uma maldição porque nos faz sentir inúteis, porque nos faz perder a nossa autonomia, a nossa independência, e até o nosso sentido de vida.
Mas foi isso que conseguimos construir nas últimas décadas: uma sociedade e uma economia que nos retira o sentido da vida e nos enche de penduricalhos, um mundo que nos enche de felicidade bacôca e nos priva de felicidade profunda. Um dia acordamos deprimidos e não sabemos porquê. Mas temos comprimidos.
Bom... o LNEC viu o seu propósito esvaziar-se, porque para cada necessidade que os maiores construtores civis tinham, lá estavam múltiplas multinacionais a oferecerem os seus bens e os seus serviços a preços imbatíveis.
O LNEC não estaria talvez especializado na venda de produtos e serviços, mas sim na investigação que permitisse dar respostas àquilo que ainda não tinha resposta. Agora, porém, as múltiplas multinacionais já tinham pensado em todas as respostas que ainda não existiam!...
A competição das empresas venceu a cooperação das instituições como o LNEC. Os produtos que são produzidos pelas empresas não são necessariamente melhores, por exemplo são geralmente fabricados para durar pouco, mas são certamente muito mais apelativos. Sobretudo, são muito mais baratos.
Momento ideal para a entrada em cena da racionalidade económica: se são muito mais baratos é porque consomem menos recursos, portanto é benéfico para todos que deixemos as nossas tentativas toscas de produção e compremos o mais barato. Depois poderemos pensar noutras coisas que nós possamos fazer melhor do que os outros, na mesma lógica competitiva. Assim, todos nos tornaremos mais competitivos, mais parcimoniosos no consumo dos recursos e mais abundantes nos penduricalhos!
Certo.
O que se perde com esta treta da competição não são os produtos ou os recursos: são as pessoas.
À medida que o espírito das instituições públicas como o LNEC é substituído pelo espírito das multinacionais, as pessoas que tinham tempo para pensar passam a correr, a pensar menos, mais fragmentadamente e pior. As pessoas que se sentiam úteis a todos passam a sentir-se inúteis. As pessoas que nos rodeiam deixam de colaborar connosco e passam a competir connosco. Tudo o que se faz ou não faz passa a ser medido pela sua utilidade prática. Tempo passa a ser equivalente a dinheiro. Dinheiro passa a ser equivalente a felicidade.
Todos perdemos com a competição. Mas estamos convencidos do contrário, porque as montras das lojas ficam mais bonitas. E porque a nossa ideologia está madura, a ponto de não a sentirmos.
A competição melhora as mercadorias, mas estraga os homens. E as mulheres.
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