O livro “ponto azul claro” de Carl Sagan, livro que recomendo vivamente, começa com uma frase que diz qualquer coisa como: nós fomos deambulantes desde o início (“wanderers”, palavra que tenho dificuldade em traduzir, sendo que o mais próximo me parece ser “vagabundo”, sem a conotação pejorativa que a nossa moral lhe costuma anexar).
Pois fomos. E continuamos a ser. Se não o somos a uma escala, somos a outra. A humanidade, ao longo das décadas e dos séculos, nunca deixou de deambular, fisicamente e não só. Há qualquer coisa em nós que nos impele a procurar. A erva é mais verde do outro lado da montanha. E só estamos bem onde não estamos. E assim lá vamos nós.
À escala de uma pessoa e uma vida, a sua, a viagem, que pode ter muitas causas, permite o contacto com realidades distintas daquela que é a nossa. Presumo que possuímos uma realidade à qual podemos chamar nossa, mesmo que na realidade não seja mesmo nossa e mesmo que por vezes possa não ser esse o caso. Em geral acredito que essa é a principal causa para as viagens físicas que as pessoas fazem: o contacto com realidades diferentes. Quão diferentes serão essas realidades é algo que fica ao critério do freguês. Há quem dê meia volta ao mundo para rapidamente, à chegada ao seu destino, procurar um restaurante com comida do país de origem. Há quem se sinta reconfortado com a presença de símbolos que podemos adjectivar de globais e que em geral pertencem a grandes empresas multinacionais.
Aliás, só um aparte acerca desta coisa das “multinacionais”: penso que já não faz sentido dizer que uma grande empresa é multinacional. É uma grande empresa, pronto! O que é que as “nações” têm a ver com isto? Se já tiveram no passado, e por muito que eu ache certo ou errado, já não têm no presente.
Bom, há quem viaje então para reencontrar as mesmas coisas mas noutro lugar. É claro que também há quem viaje na maionese, na esperança de encontrar coisas diferentes no mesmo lugar! Há quem faça questão de ir do verão para o inverno ou vice-versa. Há quem goste de ir para sítios completamente diferentes onde não ouça nenhuma língua conhecida e não se coma nada parecido com salsichas e arroz e hamburgueres e assim.
As razões para procurar a diferença também variam, embora me pareça que resultam sempre de uma combinação com mais ou menos destes dois ingredientes: escape a uma realidade da qual se está cansado e procura de sensações novas. A viagem para um hotel tropical à beira-mar é um exemplo que talvez combine bem estes dois ingredientes, embora olhando bem à diversidade de coisas que há no mundo, para além do que passa na tv, eu diria que esse é um caso com pouca dose de inovação.
Mas descanso é algo que pode ser alcançado por muitas vias. Não é necessário viajar muito para descansar. Se calhar, na maior parte das vezes, até não é necessário viajar nada para descansar. Se calhar o que é necessário é simplesmente que as razões que conduzem ao cansaço se alterem. Muda-se o emprego, ou simplesmente não se vai trabalhar. Muda-se de sogra ou até de companheiro. Muda-se de casa. Desliga-se a televisão. Liga-se ou desliga-se a música. Pára-se o carro. Pedala-se. Pode-se fazer muita coisa para conseguir descansar sem ser necessário viajar, e estar aqui a listar essas coisas parece-me um pouco ridículo.
Para mim, o grande benefício das viagens é acima de tudo o conhecimento que delas se pode retirar. Diga-se que isto é como tudo na vida: vai dos sentidos e da cabeça de cada um. É tão fácil viver décadas sem saber o que é um choupo, mesmo passando todos os dias ao lado de um, como é ir à China e não ouvir chinês, sobretudo agora com a moda do mp3. Mas se se tiver a cabeça e os sentidos bem alerta, é possível aprender muito nas viagens. Sobre os outros, sobre a nossa própria realidade, e sobre nós mesmos. E ainda sobre os mais ou menos ténues fios que unem isso tudo.
Há mar e mar, há viajar e viajar. Para tudo é preciso tempo. E conhecimento é talvez das coisas que exija mais tempo. Para mim, que considero o conhecimento a maior recompensa da viajem (e não, por exemplo, a diversão, que muitas vezes trata aproximadamente do contrário, isto é, do adormecimento da cabeça), não fazem sentido as viagens curtas. Uma viajem deve ser longa. Quanto mais longa melhor. Quanto mais longo o tempo passado fora da nossa realidade, mais claros ficam os nossos olhos ao olhar para ela. Quanto mais longo o tempo passado junto de outra realidade, mais sábia fica a nossa mente ao pensá-la. Contraditório?...
As melhores viagens, para mim, são precisamente as que se fazem deambulando. Aquelas que não são episódicas, mas que fazem parte do nosso percurso. Que no final não têm voltar, mas sim continuar mais para diante.
Há coisas que nos prendem e nos impedem de fazer assim. E depois há opções. Porque como tudo na vida, nem tudo nas viagens são rosas.
Fernando Pessoa dizia que viajar é perder países. Pois é, pois é... Viajar é mesmo perder países. De cada vez que partimos, deixamos algo para trás. E se para mim o conhecimento é o que de melhor se tira da viajem, e se para adquiri-lo é necessário tempo, saltitar de um local para o outro é correr o risco de deixar tudo muito bem fragmentadinho e baralhadinho nas nossas cabeças. Vamos a Pequim e quando voltamos já podemos falar sobre a China inteira. Vamos a Bogotá e já conhecemos a América Latina. Vamos ao México e divertimo-nos imenso, e vamos a Londres tirar uma foto ao lado do guarda de chapéu esquisito e depois subimos à torre de Paris e atiramos uma pedrinha na torre de Pisa e perseguimos leopardos em África do Sul e subimos ao Empire State Building com pena de não poder subir às Torres Gémeas... E quando voltamos a Portugal descobrimos que já demos quase uma volta ao mundo, que depressa demais esgotámos tudo o que havia para ver e ficamos angustiados... Raramente, no entanto, ficamos angustiados pela principal razão que nos deveria deixar angustiados: que enquanto andámos a saltitar de um lado para o outro, perdemos Portugal, perdemos o nosso próprio país.
Perder países é perder conhecimentos profundos. E perder o nosso próprio país é perder as nossas próprias raízes.
Quando se olha para o mundo através dos óculos da física, pode-se regular a escala de acordo com o número inteiro que serve de expoente ao 10 e que precede a unidade internacionalmente aceite de comprimento que é o metro. 10 elevado a 0 e temos a escala do metro. 10 elevado a -3 e temos a escala do milímetro. Eh pá, acho que já preciso de óculos. 10 elevado a -6 e temos a escala do micrómetro. Bom, agora de repente já nem um microscópio normal dá bem conta do recado. 10 elevado a -9 e atingimos a escala do nanómetro e por esta altura já estamos muito próximo da escala do átomo, que é a do angstrom, 10 elevado a -10. 10 elevado a -12 é o picómetro. Em geral, tudo o que nos interessa passa-se em escalas superiores a essa, pelo que podemos parar aqui.
Se formos para o outro lado da escala, 10 elevado a 3 é o quilómetro. A esta escala podemos explorar as cidades. 10 elevado a 6 são 1000 quilómetros. Já estamos na escala dos países e dos continentes. 10 elevado a 9 é um milhão de quilómetros. Já estamos para lá da lua, na escala do sistema solar. A escala das viagens estelares atinge-se a 10 elevado a 12 metros. Por curiosidade, o universo conhecido terá uma extensão cuja ordem de grandeza andará nos 10 elevado a 24 metros.
Ao contrário do que intuitivamente se possa pensar, os mundos das escalas grandes e os mundos das escalas pequenas não funcionam do mesmo modo. Por exemplo, enquanto é fácil imaginar um fotão a passar muito rapidamente de um átomo para o outro, é impossível pôr uma nave espacial a passar rapidamente de uma estrela para outra. Mesmo se tivéssemos uma nave espacial que viajasse à velocidade da luz, levaríamos anos de viagem ininterrupta para chegarmos à estrela mais próxima! Outro exemplo: enquanto compreendemos bem que um calhau sólido a embater noutro calhau sólido possa fazer ricochete, à escala dos planetas a noção de “sólido” e de “ricochete” não faz muito sentido!
Bom, ao nível das viagens passam-se coisas semelhantes. Nós temos bem a mania de nos enfiarmos na nave espacial e irmos por aí fora à procura de estrelas novas. Quanto mais longe melhor! E depois de muito viajarmos pela galáxia, começamos a ficar constrangidos com a sensação de que não há mais nada para ver. No entanto não nos detivemos nas estrelas por onde passámos e não exploramos os seus sistemas planetários. Não nos detivemos nesses planetas e não analisámos a sua atmosfera, a sua litosfera ou os seus seres vivos. Acima de tudo, não nos detivemos tanto quanto poderíamos no nosso próprio planeta. Muito menos no nosso país, na nossa região, na nossa vila, aldeia ou cidade, nos nossos vizinhos e amigos e nas famílias deles, nos ribeiros e cantares e manjares lá da terra e nas verrugas da Dona Miquinhas! Viajar é perder planetas!
Isto são as viagens.
Quanto aos aviões, são bichos metálicos que andam no ar (segundo um amigo só o fazem por sugestão) quando se lhes dá o alimento correcto e o devido espaço para correr. Fazem muito barulho. Levam pessoas e coisas lá dentro. Às vezes caem e as pessoas morrem. As coisas não morrem, mas ficam espalhadas e com muito mau aspecto. Mas normalmente não caem. Levam as pessoas e as coisas muito depressa para sítios muito distantes. Como são bichos que comem, também deitam os seus dejectos, chamados fumo. O fumo dos aviões tem coisas más lá dentro e essas coisas más dão cabo do ar.
Os aviões têm de facto um grande impacto no ambiente. Não quero entrar em grandes discussões acerca disto, também porque não gosto de falar de coisas que não sei. Sei que fazem um barulho do caraças. Para os aviões comerciais normais esse barulho é sempre audível no solo que lhe fica imediatamente em baixo, não importa a altitude a que ele voe. Quando lá vai a 11 quilómetros de altitude é apenas uma nota inestética numa paisagem de resto silenciosa. Quando está prestes a aterrar, como é o caso sistemático com os aviões que passam ao lado do sítio onde trabalho, chegam a fazer vibrar os edifícios.
Mas também sei outras coisas acerca de aviões. E uma das coisas que sei é que queimam combustível que é um derivado do petróleo, não muito diferente da gasolina dos automóveis, e que o produto dessa combustão, tal como nos automóveis, dá de facto cabo do ar. Sei também, ou julgo saber, porque não pude investigar directamente este assunto, que um avião comercial consome por passageiro qualquer coisa como 5 litros de combustível por cada 100 km. Aproximadamente o mesmo que um automóvel. É claro que esse valor depende do curso da viagem, do tipo de avião, do número de passageiros que transporta, etc, mas os 5 litros aos 100 km são um valor médio aproximado.
Finalmente, sei o que toda a gente sabe, nomeadamente que para viajar para longas distâncias o avião não tem rival, pelas velocidades médias que permite alcançar. E como o nosso estilo de vida é sempre bastante ávido de tempo, o avião é essencial para em meia dúzia de horas nos transportar para destinos longínquos, destinos que nem numa semana inteira de viagem de automóvel ousaríamos alcançar!
Quando os aviões comerciais surgiram os voos eram caros e viajar de avião era considerado um serviço de luxo. Com o passar do tempo o serviço banalizou-se e foi-se tornando acessível a um número cada vez maior de pessoas. Finalmente, há poucos anos, o “boom” das “low cost”, isto é, a explosão das companhias de baixo custo, fez com que as viagens de avião se tornassem mesmo mais baratas que viagens noutros meios de transporte, mesmo para distâncias relativamente curtas.
De repente, em Portugal, e à imagem do que se passou numa data de outros países, toda a gente começou a viajar de avião a torto e a direito. Para os urbanitas, férias sem viagem de avião passou a ter o mesmo sabor que bolo de chocolate sem chocolate! É interessante pensar como quando eu era miúdo, as férias de sonho da malta lá do Porto eram qualquer coisa como ir ao Algarve ou, para os mais exóticos, ir a Paris, e isso só se fazia muito de vez em quando... e quase nunca de avião... e hoje férias sem avião, é o que se sabe!
O lado bom desta maior acessibilidade dos voos é relativamente evidente. O lado mau é que é geralmente mais difícil de ver. E infelizmente cá vou eu de novo ter de chamar a atenção para um aspecto negativo que não é tão evidente. Mas eu vejo-o, e claramente gostaria de não ser o único a vê-lo, porque me preocupa.
Preocupa-me aquilo a que se chama de globalização que estes aviões todos vieram permitir. Mas essa é uma conversa longa que vou deixar para outras calendas de outros calendários.
Preocupa-me o vício que isso causa nas pessoas. Eu defino vício do seguinte modo: é um vício aquilo cuja presença causa bem-estar, mas cuja ausência causa mal-estar. Podem divertir-se a classificar arbitrariamente uma grande quantidade de coisas ou atitudes como vícios usando esta definição. Mas uso-a para distinguir o que é viciante daquelas outras coisas cuja presença causa bem-estar, mas cuja ausência não provoca mal-estar. No caso das viagens de avião, parece-me que a tendência é para elas caírem cada vez mais na minha definição de vício. E isso preocupa-me.
Finalmente preocupa-me também o impacto ambiental que as viagens de avião provocam, sobretudo ao nível dos produtos da combustão que libertam para a atmosfera. Claramente, como consumidores de combustíveis fósseis, não poderão manter-se eternamente. Já pensaram como será no momento em que o petróleo acabar? Certamente não será para daqui a pouco, mas igualmente certo é que esse momento, aconteça o que acontecer, há-de chegar. Que farão então os viciados em viagens de avião?... Irão a nado?... Suicidar-se-ão?... Ou passarão a tricotar à lareira? Lareira de feixes iónicos abastecida a electricidade produzida a partir de energia solar e eólica, porque por essa altura já não haverá lenha para queimar, porventura nem moveis de madeira sobrarão, e a fusão nuclear continuará a ser uma miragem.
Mas entretanto, enquanto continuamos a retirar petróleo das profundezas da crosta e a espalhar metade dele pelos oceanos, petróleo esse de que somos todos responsáveis, os aviões continuam a poluir a atmosfera e a aquecer o planeta.
Façamos umas contas breves: se eu andar 50 km de carro por dia, todos os dias, ao fim de um ano terei andado 18250 km. Imaginemos que esse carro até gasta pouco, qualquer coisa como 5 litros por cada 100 km. Imaginemos agora que nas minhas férias eu opto por uma viagem de avião a Macau. Sei lá a quantos quilómetros fica Macau do sítio onde vocês se encontram a esta hora, mas se for a mais de 9000 km então vocês gastarão mais combustível na vossa viagem anual para espairecer a moleirinha do que num ano inteiro para trás e para diante em engarrafamentos!
E isto deveria fazer-nos pensar...
E se quisermos pensar um pouco mais, tentemos imaginar o que aconteceria se todas as pessoas do planeta também fizessem a sua viagenzinha anual para espairecer o miolo... Se quisermos sentir-nos ainda pior, pensemos que essas pessoas, ao saberem que nós andamos para aqui a saltitar de lugar em lugar sentados em aviões a jacto, ficam deveras com vontade de fazer o mesmo ou ainda mais, e que só não o fazem porque não têm o mesmo dinheiro que nós... Porque se o tivessem!...
Que legitimidade temos nós, portanto, de andar para aqui a fazer isto, com os narizes empinados, todos cientes dos nossos direitos, sobretudo depois de um ano inteiro de trabalho e ainda para mais quando todos os nossos amigos também o fazem? Que raio de legitimidade temos nós?... Mas que espécie de deus julgamos que somos?...
Bom, o que fazer então?
O consumo de viagens de avião não é diferente de todo o restante consumo, seja ele de latas de refrigerante, de viagens de automóvel, de camisolas, de horas na sauna, de lavagens ao cabelo, de livros, de tudo e mais alguma coisa: tudo o que consumimos tem um impacto no ambiente.
Claramente o que devemos fazer é deixarmos de nos preocuparmos com o ambiente! E já está! :)
Bom, eu estava a brincar, mas a verdade é que há muita gente que toma precisamente essa opção! E agora podemos discutir aqui se temos ou não o direito, ou o dever, ou a legitimidade para lhes chamar a atenção para o assunto (pode ser através de açoites ou de outro método moderno qualquer).
Se tudo o que consumimos tem um impacto no ambiente e se somos muitos, claramente vamos causar um impacto brutal. A questão não é necessariamente reduzir esse impacto a zero e deixar de viver. A questão é saber se esse impacto é suportável pelo meio ambiente ou não. E isto remete para os estudos sobre a capacidade de carga (ou lá como se traduz “carrying capacity”) da natureza e do planeta relativamente à nossa actividade. Claramente esta capacidade de carga variará consoante os critérios que forem adoptados.
Munidos de valores para aquilo que o meio ambiente é capaz de suportar, temos depois de proceder à repartição dessas capacidades poluidoras pelas pessoas do planeta. Isto pode parecer evidente, mas é tudo menos evidente. Pode-se pensar (e é sem dúvida aquilo em que acredito e que defendo) que a repartição mais justa seria feita através da divisão em partes iguais a cada habitante deste planeta. No entanto, as teses defendidas pelos maiores detentores da riqueza são bastante desiguais e, quem diria, tendem a atribuir a si próprios uma maior capacidade poluidora que aos demais. Mercados de carbono e princípios de poluidores-pagadores e quotas com base em registos históricos e o diabo-a-sete são todas formas de implementar essa repartição desigual.
Finalmente, depois de feita a repartição e de sabermos quanto é que podemos poluir, só temos de fazer um esforço por não poluir mais do que o montante que nos foi atribuído. Deixo à consciência, ao interesse e ao conhecimento de cada um as análises e as contas que lhes permitirão saber quanto é que é justo poluir. Mas não duvido nada que viagens de avião de milhares de quilómetros tivessem de passar a ser feitas apenas uma vez por década, ou menos!
Significa isso que teremos de deixar de viajar? Não, de forma alguma. Significa, a meu ver, que deveríamos deixar de ser os consumistas frenéticos que somos, crentes que a nossa felicidade não pode ser atingida de outro modo. Temos de aprender a viajar de outro modo. Se fizermos as coisas com mais vagar, se calhar até viajamos mais, aprendemos mais e, quem sabe, se calhar até nem perdemos países!
quinta-feira, 30 de setembro de 2010
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