segunda-feira, 9 de dezembro de 2013
Mandela, uma lição de luta!...
Agora que Nelson Mandela morreu, os adoradores de ídolos e criadores de mitos tratam de dourar as memórias desse homem. De repente já nem homem é, é uma espécie de santo. O que até não fica mal à humanidade, porque já se sabe que os santos conseguem fazer coisas que os homens comuns não conseguem, e assim podemos todos simplesmente ficar sentados no sofá a ver televisão, com a consciência levezinha como um passarinho.
Mandela foi um grande lutador. Lutou por aquilo que acreditava. E quando se acredita, quando se sentem as coisas cá dentro, e se é íntegro, a luta passa a ser uma necessidade, algo que não poderia ser de outro modo.
Quem luta tem sempre inimigos. Mandela teve muitos inimigos e foi considerado um terrorista por muitas pessoas e instituições, por exemplo dos EUA e do Reino Unido. Havia muitas razões para considerar Mandela um terrorista, entre as quais a razão simples de ele ser líder do braço armado do ANC.
Hoje, fruto da tecnologia e da sociedade que temos, sedenta de mitos, Mandela, vencedor de um prémio Nobel da paz (que toda a gente sabe que é uma coisa importantíssima atribuída por quase-deuses) e idolatrado por meio mundo, tem de ser encarado, mesmo que morto, com um sorriso amarelo por todos os seus inimigos que querem continuar a parecer bonitinhos nas fotografias e nas sondagens.
E é assim que se espalha a mensagem de que Mandela foi uma pessoa fora do comum porque, acima de tudo, soube perdoar o seu inimigo. Acima de tudo... perdoou!...
É evidente que esta tinha de ser a mensagem a transmitir, por todos os seus inimigos poderosos em todo o mundo, a toda a população que tem fé em homens maiores que os outros homens e que podem fazer as coisas por eles. O sujeito é fenomenal porque perdoou. A lição é clara: queres ser uma boa pessoa? então perdoa. Perdoa, e lembra-te que afinal não há inimigos, afinal somos todos amigos, muito amiguinhos e estamos todos a trabalhar para ficarmos todos melhor, certo?...
E é assim que num ápice se esquece que Mandela afinal era apenas um homem, que lutou com muita força por causas justas em que acreditava muito. É assim que de repente se esquece que Mandela foi um lutador. É assim que de repente já ninguém sabe por que é que Mandela andou a lutar.
É assim que se esquece que este homem, depois de ter liderado o braço armado do ANC, de ter sido acusado de muitos crimes, de ter estado preso pelo sistema racista da África do Sul durante 21 anos, renunciou à sua libertação condicional que o obrigaria a renunciar à violência como um meio para conseguir a mudança em África do Sul.
Mandela não renunciou ao uso de todos os meios que tinha ao seu dispor para lutar contra algo que era essencialmente mau, do mesmo modo que ninguém no seu juízo renunciará a utilizar tudo o que estiver ao seu dispor para impedir que outra pessoa a mate.
Seria bom pensar que o seu legado, em vez de se cingir ao perdão, e muito antes disso, passaria primeiro pela aprendizagem e pela interiorização do conceito de justiça e do conceito irmão de solidariedade, os quais em conjunto nos fazem sentir a necessidade de combater a injustiça, toda a injustiça que há no mundo, e depois pela concretização desse sentimento, isto é, pela luta efectiva. Só quando a injustiça está sanada é que chega o tempo de perdoar.
Deixo-vos com uma citação tirada deste trabalho da ONU "Nelson Mandela - in his words" cuja leitura recomendo. Para os discursos completos, seguir os links desta página.
Mandela e os hipócritas do costume...
Queria pedir-vos o favor de lerem atentamente o pequeno texto que se segue. É importante para o que se segue. O texto diz respeito a uma resolução votada na assembleia da Organização das Nações Unidas, no dia 20 de Novembro de 1987. Antes disso, no entanto, será talvez bom relembrar o que foi o "Apartheid" em África do Sul.
Apartheid é uma palavra africânder ('afrikaans'), isto é, dos holandeses que colonizaram a África do Sul, que significa literalmente a qualidade daquilo que separa ou que está separado, à parte. Deu-se esse nome ao sistema de segregação racial que vigorou em África do Sul entre 1948 e 1994 (embora algumas reformas tenham sido introduzidas desde 1990). Dito de uma forma simples, o apartheid funcionou para os colonizadores como uma limpeza da terra da população que já lá estava. Essa limpeza baseou-se na diferença de raça, a qual era aferida sobretudo através da cor da pele. Toda a população não branca foi forçada a viver em regiões definidas pelos colonos (os "bantustans", correspondentes a pouco mais de 10% do território). A essa população foi também proibido ou condicionado o direito ao voto, o acesso a serviços públicos da mais alta qualidade, etc. A manutenção deste sistema de segregação, tal como todos os sistemas de opressão ao longo da história, implicou o recurso a forças de segurança brutais, à tortura e ao assassinato.
Resta dizer que infelizmente, estes tipos de políticas e sistemas foram praticados um pouco por todo o mundo. O caso de África do Sul choca-me, pessoalmente, simplesmente porque foi mantido por pessoas cuja cultura original é tão parecida com a minha própria cultura, e porque se manteve vigente até há tão pouco tempo.
Agora o texto da resolução da ONU de 20 de Novembro de 1987 (abaixo uma tradução minha):
---------------------------------------------
"A/RES/42/23
77th plenary meeting
20 November 1987
Policies of apartheid of the Government of South Africa
A
International solidarity with the liberation struggle
in South Africa
The General Assembly,
Recalling its resolution 41/35 A of 10 November 1986,
Having considered the report of the Special Committee against Apartheid, in particular paragraphs 137 to 139 and 148,
Gravely concerned at the escalating repression of and State terror against opponents of apartheid and the increasing intransigence of the racist regime of South Africa, demonstrated by the extension of the state of emergency, the vast number of arbitrary detentions, trials, torture and killing, including of women and children, the increased use of vigilante groups and the muzzling of the press,
Outraged by the racist regime's escalation of acts of aggression and destabilization against neighbouring independent African States, including assassinations and abductions of South Africans in those States, and the continuing illegal occupation of Namibia,
1. Reaffirms its full support to the people of South Africa in their struggle, under the leadership of their national liberation movements, to eradicate apartheid totally, so that they can exercise their right to self-determination in a free, democratic, unfragmented and non-racial South Africa;
2. Reaffirms further the legitimacy of the struggle of the people of South Africa and their right to choose the necessary means, including armed resistance, to attain the eradication of apartheid;
3. Condemns the policy and practice of apartheid and, in particular, the execution of patriots and captured freedom fighters in South Africa and demands that the racist regime:
(a) Stay the execution of those now on death row;
(b) Abide by the Geneva Conventions of 12 August 1949 and Additional Protocol I of 1977 thereto;
4. Demands again that the racist regime end repression against the oppressed people of South Africa; lift the state of emergency; release unconditionally Nelson Mandela, Zephania Mothopeng, all other political prisoners, trade union leaders, detainees and restrictees and, in particular, detained children; lift the ban on the African National Congress of South Africa, the Pan Africanist Congress of Azania and other political parties and organizations; allow free political association and activity of the South African people and the return of all political exiles; put an end to the policy of bantustanization and forced population removals; eliminate apartheid laws and end military and paramilitary activities aimed at the neighbouring States;
5. Considers that the implementation of the above demands would create the appropriate conditions for free consultations among all the people of South Africa with a view to negotiating a just and lasting solution to the conflict in that country;
6. Appeals to all States, intergovernmental and non-governmental organizations, mass media, and city and other local authorities as well as individuals to increase urgently political, economic, educational, legal, humanitarian and all other forms of necessary assistance to the people of South Africa and their national liberation movements;
7. Also appeals to all States and intergovernmental and non-governmental organizations to step up material, financial and other forms of support to the front-line and other member States of the Southern African Development Co-ordination Conference and thus assist them in resisting the aggression, terrorism, destabilization, political subversion and economic blackmail perpetrated by the racist regime;
8. Urges all States to contribute generously to the Action for Resisting Invasion, Colonialism and Apartheid Fund set up by the Eighth Conference of Heads of State or Government of Non-Aligned Countries with the aim of increasing support to the liberation movements fighting the apartheid regime and to the front-line States;
9. Decides to continue the authorization of adequate financial provision in the regular budget of the United Nations to enable the South African liberation movements recognized by the Organization of African Unity - namely, the African National Congress of South Africa and the Pan Africanist Congress of Azania - to maintain offices in New York in order to participate effectively in the deliberations of the Special Committee against Apartheid and other appropriate bodies;
10. Requests Governments and intergovernmental and non-governmental organizations to exert their influence towards the implementation of this resolution."
---------------------------------------------
Políticas de apartheid do governo de África do Sul
A
Solidariedade internacional com a luta de libertação em África do Sul
A Assembleia Geral,
Na sequência da sua resolução 41/35 A de 10 de Novembro de 1986,
Considerando o relatório do Comité Especial contra o Apartheid, particularmente os parágrafos 137 a 139 e 148,
Profundamente preocupada com a crescente repressão e o estado de terror contra oponentes do Apartheid e com a crescente intransigência do regime racista da África do Sul, demonstrada pela extensão do estado de emergência, pelo elevado número de detenções arbitrárias, julgamentos, torturas e assassinatos, incluindo de mulheres e crianças, pelo aumento do uso de grupos de vigilância e pela censura na imprensa,
Ofendida pelo aumento dos actos de agressão e desestabilização do regime racista contra vizinhos estados africanos independentes, incluindo assassinatos e abduções de sul africanos nesses estados e a continuação da ocupação ilegal da Namíbia,
1. Reafirma o seu completo apoio ao povo de África do Sul na sua luta, sob a liderança dos seus movimentos de libertação nacional, para erradicar totalmente o Apartheid, de tal modo que possam exercer o seu direito à auto-determinação numa África do Sul livre, democrática, não fragmentada e não racista;
2. Reafirma ainda a legitimidade da luta do povo de África do Sul e do seu direito de escolher os meios necessários, incluindo resistência armada, para conseguir a erradicação do Apartheid;
3. Condena a política e a prática do Apartheid e, em particular, a execução de patriotas e lutadores pela liberdade capturados em África do Sul, e exige que o regime racista:
(a) suspenda a execução dos que estão actualmente no "corredor da morte";
(b) cumpra as Convenções de Genebra de 12 de Agosto de 1949 e o Protocolo Adicional de 1977;
4. Exige novamente que o regime racista termine a repressão contra o povo oprimido de África do Sul; levante o estado de emergência; liberte incondicionalmente Nelson Mandela, Zephania Mothopeng, todos os outros prisioneiros políticos, líderes sindicais, detidos sem acusação formada e em particular crianças; levante a interdição do Congresso Nacional Africano de África do Sul (ANC), o Congresso Pan-Africano de Azania e outros partidos políticos e organizações; permita a liberdade de associação política e actividade do povo de África do Sul e o regresso de todos os exilados políticos; ponha um fim à política de "bantustanization" e remoção forçada da população; elimine as leis de apartheid e termine as actividades militares e paramilitares orientadas aos estados vizinhos;
5. Considera que a implementação das exigências supra criaria as condições apropriadas para consultas livres entre toda a população de África do Sul com o objectivo de negociar uma solução justa e duradoura para o conflito nesse país;
6. Apela a todos os estados, organizações intergovernamentais e não governamentais, comunicação social e autoridades locais, bem como a todos os indivíduos, para aumentarem todas as formas de assistência necessária e urgente, seja política, económica, educativa, legal, humanitária ou outra, ao povo de África do Sul e aos seus movimentos de libertação nacional;
7. Apela também a todos os estados, organizações intergovernamentais e não governamentais, para reforçar todas as formas de apoio, material, financeiro ou outro, à linha da frente e a outros estados-membros da SADCC e assim ajudá-los a resistir à agressão, ao terrorismo, à desestabilização, à subversão política e à chantagem económica perpetrada pelo regime racista;
8. Insta todos os estados a contribuir generosamente para o fundo "Acção para Resistência à Invasão, Colonialismo e Apartheid", instaurado pela Oitava Conferência de Chefes de Estado ou Governo de Países Não-Alinhados, com o intuito de aumentar o apoio aos movimentos de libertação que lutam contra o regime do Apartheid e aos estados da linha da frente;
9. Decide continuar a autorização de provisões financeiras adequadas no orçamento regular das Nações Unidas para permitir aos movimentos de libertação de África do Sul reconhecidos pela Organização de Unidade Africana - nomeadamente o ANC e o Congresso Pan-Africano de Azania - manter escritórios em Nova Iorque, para poderem participar efectivamente nas deliberações do Comité Especial contra o Apartheid e outros corpos apropriados;
10. Pede aos governos e às organizações intergovernamentais e não governamentais para exercerem a sua influência com vista à implementação desta resolução.
---------------------------------------------
Esta resolução foi aprovada com os votos de 129 países, com a abstenção de 22 países e com os votos contra de 3 países. Os países que se abstiveram foram: Austrália, Áustria, Bélgica, Canadá, Costa do Marfim, Dinamarca, Finlândia, França, Alemanha (RFA), Guatemala, Islândia, Irlanda, Israel, Itália, Japão, Luxemburgo, Malta, Holanda, Nova Zelândia, Noruega, Espanha, Suécia. É caso para dizer que o espírito colonialista é uma coisa difícil de lavar!...
Os 3 países que votaram contra foram os Estados Unidos, cujo presidente era Ronald Reagan, o Reino Unido, cuja primeira ministra era Margaret Thatcher, e Portugal, cujo primeiro ministro era Cavaco Silva.
Não é nada surpreendente ver Portugal e Cavaco Silva a alinharem com os interesses que tenho até dificuldade em começar a adjectivar de semelhantes personangens como Reagan e Thatcher. Aliás, Reagan e Thatcher foram dois dos principais actores que durante a década de 80 começaram, a custo, a implementar as medidas económicas liberais que conduziram à construção das regras económicas por que hoje nos regemos, como se fossem ditadas por Deus, e que nos empurraram para a crise que agora temos, para não falar na corrosão indelével e inexorável do carácter de populações inteiras.
Mas o que é importante realçar aqui é que Aníbal Cavaco Silva e o seu governo (constituído por pessoas que continuam a dar cartas, como todas as pessoas que passam por governos, e que continuam a ser considerados com toda a reverência pela população portuguesa, como Leonor Beleza, António Capucho, Fernando Nogueira, Dias Loureiro, Miguel Cadilhe, Miguel Beleza, Laborinho Lúcio, João de Deus Pinheiro, Álvaro Barreto, Arlindo Cunha, Luís Mira Amaral, Roberto Carneiro, Joaquim Ferreira do Amaral, Arlindo de Carvalho, José Silva Peneda, Fernando Faria de Oliveira, António Couto dos Santos, Carlos Borrego) votaram contra uma resolução que condenava um regime racista, que apoiava os movimentos que combatiam esse regime, e que pedia a libertação incondicional de Nelson Mandela.
Amanhã, terça-feira, lá estará Cavaco Silva em África do Sul para prestar a mais sentida homenagem a este grande homem... Ele e muitos outros como ele, num verdadeiro festival de hipocrisia!
Mas para que se perceba que isto não são coisas do passado, fica aqui a intervenção, em 18 de Julho de 2008, do deputado do PCP António Filipe na Assembleia da República, aquando da apresentação de um voto de congratulação pelos 90 anos de Nelson Mandela:
"Sr. Presidente,
Srs. Deputados:
Nelson Mandela faz, precisamente, hoje 90 anos e o PCP decidiu propor à Assembleia da República que aprovasse um voto de congratulação por este acontecimento, associando-se, aliás, a vozes que, por todo o mundo, manifestaram o seu júbilo pelos 90 anos de Nelson Mandela.
Não sabemos ainda como é que os partidos à direita vão votar o nosso voto, mas, seja como for, ele já cumpriu a sua função, porque, se o PCP não o tivesse proposto, decerto que a Assembleia da República não aprovaria nenhum voto de congratulação pelos 90 anos de Nelson Mandela.
Assim, vai aprovar.
Mas nós votaremos todos os votos. Estejam descansados!
O que é interessante é a necessidade que os partidos à direita sentiram de apresentar votos próprios, demarcando-se do voto apresentado pelo PCP sobre esta matéria. Fazem-no para se desembaraçarem de embaraços que a vossa própria história vos cria.
Isto porque aquilo que os senhores não querem que se diga, lendo os vossos votos, é que Mandela esteve até hoje na lista de terroristas dos Estados Unidos da América. Mas isto é verdade! É público e notório - toda a gente o sabe!
Os senhores não querem que se diga que Nelson Mandela conduziu uma luta armada contra o apartheid, mas isto é um facto histórico. Embora os senhores não o digam, é a verdade, e os senhores não podem omitir a realidade.
Os senhores não querem que se diga que, quando, em 1987, a Assembleia Geral das Nações Unidas aprovou, com 129 votos, um apelo para a libertação incondicional de Nelson Mandela, os três países que votaram contra foram os Estados Unidos da América, de Reagan, a Grã-Bretanha, de Thatcher, e o governo português, da altura.
Isto é a realidade! Está documentado!
Não querem que se diga que, em 1986, o governo português tentou sabotar, na União Europeia, as sanções contra o regime do apartheid.
Não querem que se diga que a imprensa de direita portuguesa titulava, em 1985, que: «Eanes recebeu em Belém um terrorista sul-africano». Este «terrorista» era Oliver Tambo!
São, portanto, estes embaraços que os senhores não querem que fiquem escritos num voto.
Não querem que se diga que a derrota do apartheid não se deveu a um gesto de boa vontade dos racistas sul-africanos mas à heróica luta do povo sul-africano, de Mandela e à solidariedade das forças progressistas mundiais contra aqueles que defenderam até ao fim o regime do apartheid.
Congratulamo-nos vivamente com os 90 anos de Nelson Mandela e queremos saudar, na sua pessoa, a luta heróica do povo sul-africano pela sua dignidade, pela igualdade entre todos os seres humanos e contra o hediondo regime do apartheid."
O texto do voto de congratulação pode ser lido aqui. O PSD e o CDS abstiveram-se nesta votação.
Apartheid é uma palavra africânder ('afrikaans'), isto é, dos holandeses que colonizaram a África do Sul, que significa literalmente a qualidade daquilo que separa ou que está separado, à parte. Deu-se esse nome ao sistema de segregação racial que vigorou em África do Sul entre 1948 e 1994 (embora algumas reformas tenham sido introduzidas desde 1990). Dito de uma forma simples, o apartheid funcionou para os colonizadores como uma limpeza da terra da população que já lá estava. Essa limpeza baseou-se na diferença de raça, a qual era aferida sobretudo através da cor da pele. Toda a população não branca foi forçada a viver em regiões definidas pelos colonos (os "bantustans", correspondentes a pouco mais de 10% do território). A essa população foi também proibido ou condicionado o direito ao voto, o acesso a serviços públicos da mais alta qualidade, etc. A manutenção deste sistema de segregação, tal como todos os sistemas de opressão ao longo da história, implicou o recurso a forças de segurança brutais, à tortura e ao assassinato.
Resta dizer que infelizmente, estes tipos de políticas e sistemas foram praticados um pouco por todo o mundo. O caso de África do Sul choca-me, pessoalmente, simplesmente porque foi mantido por pessoas cuja cultura original é tão parecida com a minha própria cultura, e porque se manteve vigente até há tão pouco tempo.
Agora o texto da resolução da ONU de 20 de Novembro de 1987 (abaixo uma tradução minha):
---------------------------------------------
"A/RES/42/23
77th plenary meeting
20 November 1987
Policies of apartheid of the Government of South Africa
A
International solidarity with the liberation struggle
in South Africa
The General Assembly,
Recalling its resolution 41/35 A of 10 November 1986,
Having considered the report of the Special Committee against Apartheid, in particular paragraphs 137 to 139 and 148,
Gravely concerned at the escalating repression of and State terror against opponents of apartheid and the increasing intransigence of the racist regime of South Africa, demonstrated by the extension of the state of emergency, the vast number of arbitrary detentions, trials, torture and killing, including of women and children, the increased use of vigilante groups and the muzzling of the press,
Outraged by the racist regime's escalation of acts of aggression and destabilization against neighbouring independent African States, including assassinations and abductions of South Africans in those States, and the continuing illegal occupation of Namibia,
1. Reaffirms its full support to the people of South Africa in their struggle, under the leadership of their national liberation movements, to eradicate apartheid totally, so that they can exercise their right to self-determination in a free, democratic, unfragmented and non-racial South Africa;
2. Reaffirms further the legitimacy of the struggle of the people of South Africa and their right to choose the necessary means, including armed resistance, to attain the eradication of apartheid;
3. Condemns the policy and practice of apartheid and, in particular, the execution of patriots and captured freedom fighters in South Africa and demands that the racist regime:
(a) Stay the execution of those now on death row;
(b) Abide by the Geneva Conventions of 12 August 1949 and Additional Protocol I of 1977 thereto;
4. Demands again that the racist regime end repression against the oppressed people of South Africa; lift the state of emergency; release unconditionally Nelson Mandela, Zephania Mothopeng, all other political prisoners, trade union leaders, detainees and restrictees and, in particular, detained children; lift the ban on the African National Congress of South Africa, the Pan Africanist Congress of Azania and other political parties and organizations; allow free political association and activity of the South African people and the return of all political exiles; put an end to the policy of bantustanization and forced population removals; eliminate apartheid laws and end military and paramilitary activities aimed at the neighbouring States;
5. Considers that the implementation of the above demands would create the appropriate conditions for free consultations among all the people of South Africa with a view to negotiating a just and lasting solution to the conflict in that country;
6. Appeals to all States, intergovernmental and non-governmental organizations, mass media, and city and other local authorities as well as individuals to increase urgently political, economic, educational, legal, humanitarian and all other forms of necessary assistance to the people of South Africa and their national liberation movements;
7. Also appeals to all States and intergovernmental and non-governmental organizations to step up material, financial and other forms of support to the front-line and other member States of the Southern African Development Co-ordination Conference and thus assist them in resisting the aggression, terrorism, destabilization, political subversion and economic blackmail perpetrated by the racist regime;
8. Urges all States to contribute generously to the Action for Resisting Invasion, Colonialism and Apartheid Fund set up by the Eighth Conference of Heads of State or Government of Non-Aligned Countries with the aim of increasing support to the liberation movements fighting the apartheid regime and to the front-line States;
9. Decides to continue the authorization of adequate financial provision in the regular budget of the United Nations to enable the South African liberation movements recognized by the Organization of African Unity - namely, the African National Congress of South Africa and the Pan Africanist Congress of Azania - to maintain offices in New York in order to participate effectively in the deliberations of the Special Committee against Apartheid and other appropriate bodies;
10. Requests Governments and intergovernmental and non-governmental organizations to exert their influence towards the implementation of this resolution."
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Políticas de apartheid do governo de África do Sul
A
Solidariedade internacional com a luta de libertação em África do Sul
A Assembleia Geral,
Na sequência da sua resolução 41/35 A de 10 de Novembro de 1986,
Considerando o relatório do Comité Especial contra o Apartheid, particularmente os parágrafos 137 a 139 e 148,
Profundamente preocupada com a crescente repressão e o estado de terror contra oponentes do Apartheid e com a crescente intransigência do regime racista da África do Sul, demonstrada pela extensão do estado de emergência, pelo elevado número de detenções arbitrárias, julgamentos, torturas e assassinatos, incluindo de mulheres e crianças, pelo aumento do uso de grupos de vigilância e pela censura na imprensa,
Ofendida pelo aumento dos actos de agressão e desestabilização do regime racista contra vizinhos estados africanos independentes, incluindo assassinatos e abduções de sul africanos nesses estados e a continuação da ocupação ilegal da Namíbia,
1. Reafirma o seu completo apoio ao povo de África do Sul na sua luta, sob a liderança dos seus movimentos de libertação nacional, para erradicar totalmente o Apartheid, de tal modo que possam exercer o seu direito à auto-determinação numa África do Sul livre, democrática, não fragmentada e não racista;
2. Reafirma ainda a legitimidade da luta do povo de África do Sul e do seu direito de escolher os meios necessários, incluindo resistência armada, para conseguir a erradicação do Apartheid;
3. Condena a política e a prática do Apartheid e, em particular, a execução de patriotas e lutadores pela liberdade capturados em África do Sul, e exige que o regime racista:
(a) suspenda a execução dos que estão actualmente no "corredor da morte";
(b) cumpra as Convenções de Genebra de 12 de Agosto de 1949 e o Protocolo Adicional de 1977;
4. Exige novamente que o regime racista termine a repressão contra o povo oprimido de África do Sul; levante o estado de emergência; liberte incondicionalmente Nelson Mandela, Zephania Mothopeng, todos os outros prisioneiros políticos, líderes sindicais, detidos sem acusação formada e em particular crianças; levante a interdição do Congresso Nacional Africano de África do Sul (ANC), o Congresso Pan-Africano de Azania e outros partidos políticos e organizações; permita a liberdade de associação política e actividade do povo de África do Sul e o regresso de todos os exilados políticos; ponha um fim à política de "bantustanization" e remoção forçada da população; elimine as leis de apartheid e termine as actividades militares e paramilitares orientadas aos estados vizinhos;
5. Considera que a implementação das exigências supra criaria as condições apropriadas para consultas livres entre toda a população de África do Sul com o objectivo de negociar uma solução justa e duradoura para o conflito nesse país;
6. Apela a todos os estados, organizações intergovernamentais e não governamentais, comunicação social e autoridades locais, bem como a todos os indivíduos, para aumentarem todas as formas de assistência necessária e urgente, seja política, económica, educativa, legal, humanitária ou outra, ao povo de África do Sul e aos seus movimentos de libertação nacional;
7. Apela também a todos os estados, organizações intergovernamentais e não governamentais, para reforçar todas as formas de apoio, material, financeiro ou outro, à linha da frente e a outros estados-membros da SADCC e assim ajudá-los a resistir à agressão, ao terrorismo, à desestabilização, à subversão política e à chantagem económica perpetrada pelo regime racista;
8. Insta todos os estados a contribuir generosamente para o fundo "Acção para Resistência à Invasão, Colonialismo e Apartheid", instaurado pela Oitava Conferência de Chefes de Estado ou Governo de Países Não-Alinhados, com o intuito de aumentar o apoio aos movimentos de libertação que lutam contra o regime do Apartheid e aos estados da linha da frente;
9. Decide continuar a autorização de provisões financeiras adequadas no orçamento regular das Nações Unidas para permitir aos movimentos de libertação de África do Sul reconhecidos pela Organização de Unidade Africana - nomeadamente o ANC e o Congresso Pan-Africano de Azania - manter escritórios em Nova Iorque, para poderem participar efectivamente nas deliberações do Comité Especial contra o Apartheid e outros corpos apropriados;
10. Pede aos governos e às organizações intergovernamentais e não governamentais para exercerem a sua influência com vista à implementação desta resolução.
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Esta resolução foi aprovada com os votos de 129 países, com a abstenção de 22 países e com os votos contra de 3 países. Os países que se abstiveram foram: Austrália, Áustria, Bélgica, Canadá, Costa do Marfim, Dinamarca, Finlândia, França, Alemanha (RFA), Guatemala, Islândia, Irlanda, Israel, Itália, Japão, Luxemburgo, Malta, Holanda, Nova Zelândia, Noruega, Espanha, Suécia. É caso para dizer que o espírito colonialista é uma coisa difícil de lavar!...
Os 3 países que votaram contra foram os Estados Unidos, cujo presidente era Ronald Reagan, o Reino Unido, cuja primeira ministra era Margaret Thatcher, e Portugal, cujo primeiro ministro era Cavaco Silva.
Não é nada surpreendente ver Portugal e Cavaco Silva a alinharem com os interesses que tenho até dificuldade em começar a adjectivar de semelhantes personangens como Reagan e Thatcher. Aliás, Reagan e Thatcher foram dois dos principais actores que durante a década de 80 começaram, a custo, a implementar as medidas económicas liberais que conduziram à construção das regras económicas por que hoje nos regemos, como se fossem ditadas por Deus, e que nos empurraram para a crise que agora temos, para não falar na corrosão indelével e inexorável do carácter de populações inteiras.
Mas o que é importante realçar aqui é que Aníbal Cavaco Silva e o seu governo (constituído por pessoas que continuam a dar cartas, como todas as pessoas que passam por governos, e que continuam a ser considerados com toda a reverência pela população portuguesa, como Leonor Beleza, António Capucho, Fernando Nogueira, Dias Loureiro, Miguel Cadilhe, Miguel Beleza, Laborinho Lúcio, João de Deus Pinheiro, Álvaro Barreto, Arlindo Cunha, Luís Mira Amaral, Roberto Carneiro, Joaquim Ferreira do Amaral, Arlindo de Carvalho, José Silva Peneda, Fernando Faria de Oliveira, António Couto dos Santos, Carlos Borrego) votaram contra uma resolução que condenava um regime racista, que apoiava os movimentos que combatiam esse regime, e que pedia a libertação incondicional de Nelson Mandela.
Amanhã, terça-feira, lá estará Cavaco Silva em África do Sul para prestar a mais sentida homenagem a este grande homem... Ele e muitos outros como ele, num verdadeiro festival de hipocrisia!
Mas para que se perceba que isto não são coisas do passado, fica aqui a intervenção, em 18 de Julho de 2008, do deputado do PCP António Filipe na Assembleia da República, aquando da apresentação de um voto de congratulação pelos 90 anos de Nelson Mandela:
"Sr. Presidente,
Srs. Deputados:
Nelson Mandela faz, precisamente, hoje 90 anos e o PCP decidiu propor à Assembleia da República que aprovasse um voto de congratulação por este acontecimento, associando-se, aliás, a vozes que, por todo o mundo, manifestaram o seu júbilo pelos 90 anos de Nelson Mandela.
Não sabemos ainda como é que os partidos à direita vão votar o nosso voto, mas, seja como for, ele já cumpriu a sua função, porque, se o PCP não o tivesse proposto, decerto que a Assembleia da República não aprovaria nenhum voto de congratulação pelos 90 anos de Nelson Mandela.
Assim, vai aprovar.
Mas nós votaremos todos os votos. Estejam descansados!
O que é interessante é a necessidade que os partidos à direita sentiram de apresentar votos próprios, demarcando-se do voto apresentado pelo PCP sobre esta matéria. Fazem-no para se desembaraçarem de embaraços que a vossa própria história vos cria.
Isto porque aquilo que os senhores não querem que se diga, lendo os vossos votos, é que Mandela esteve até hoje na lista de terroristas dos Estados Unidos da América. Mas isto é verdade! É público e notório - toda a gente o sabe!
Os senhores não querem que se diga que Nelson Mandela conduziu uma luta armada contra o apartheid, mas isto é um facto histórico. Embora os senhores não o digam, é a verdade, e os senhores não podem omitir a realidade.
Os senhores não querem que se diga que, quando, em 1987, a Assembleia Geral das Nações Unidas aprovou, com 129 votos, um apelo para a libertação incondicional de Nelson Mandela, os três países que votaram contra foram os Estados Unidos da América, de Reagan, a Grã-Bretanha, de Thatcher, e o governo português, da altura.
Isto é a realidade! Está documentado!
Não querem que se diga que, em 1986, o governo português tentou sabotar, na União Europeia, as sanções contra o regime do apartheid.
Não querem que se diga que a imprensa de direita portuguesa titulava, em 1985, que: «Eanes recebeu em Belém um terrorista sul-africano». Este «terrorista» era Oliver Tambo!
São, portanto, estes embaraços que os senhores não querem que fiquem escritos num voto.
Não querem que se diga que a derrota do apartheid não se deveu a um gesto de boa vontade dos racistas sul-africanos mas à heróica luta do povo sul-africano, de Mandela e à solidariedade das forças progressistas mundiais contra aqueles que defenderam até ao fim o regime do apartheid.
Congratulamo-nos vivamente com os 90 anos de Nelson Mandela e queremos saudar, na sua pessoa, a luta heróica do povo sul-africano pela sua dignidade, pela igualdade entre todos os seres humanos e contra o hediondo regime do apartheid."
O texto do voto de congratulação pode ser lido aqui. O PSD e o CDS abstiveram-se nesta votação.
terça-feira, 3 de dezembro de 2013
O IKEA, o consumo, a produtividade, o crescimento, a competitividade e o diabo-a-sete que faz sempre bem à economia...
"Espero que todos compreendam a importância que este investimento tem. Importância para a economia portuguesa, claro está. E importância para o 'cluster' imobiliário em Portugal. Importância para a indústria portuguesa."
Vamos desculpar ao Sócrates a confusão entre imobiliário e mobiliário. De resto, tudo o que ele disse aquando da inauguração da fábrica da IKEA em Paços de Ferreira é verdade. O que talvez escape às pessoas é que o que é bom para a economia não é necessariamente bom para elas, porque neste contexto, economia não é o mesmo que pessoas. Aliás, este é um tema que já aflorei um pouco no passado, por exemplo aqui, aqui ou aqui. Troquem-se ligeiramente as palavras e já o discurso de Sócrates (ou de qualquer outro político do PS, do PSD ou do CDS ou qualquer empresário ou representante dos seus interesses) faz todo o sentido:
"Espero que todos compreendam a importância que este investimento tem. Importância para os empresários portugueses, claro está. E importância para os empresários do 'cluster' do mobiliário em Portugal. Importância para os industriais portugueses." - era assim que o discurso deveria ter sido, para ser mais claro.
A história é sempre a mesma. De cada vez que um senhor feudal ou empresário ou empreendedor ou investidor, interno ou externo, decide que vai gastar dinheiro (e quanto desse dinheiro são apoios ao investimento financiados pelos contribuintes que somos nós?), logo a ideia é vendida às pessoas como se isso fosse o paraíso na terra, aquilo de que todos precisamos para sermos felizes. Se há coisa que uma população de gente esfaimada compreende muito bem é a palavra "emprego". Emprego é a possibilidade de, a troco de mais uns meses ou anos de escravidão, continuar a ter pão para a boca. Para quem tem dificuldade em arranjar o pão para a boca, isso soa a paraíso, claro está.
É assim que qualquer investimento que crie empregos é considerado por todos como algo de verdadeiramente maravilhoso! Criar empregos é uma coisa maravilhosa! Sempre deu, ao longo da história, direito a bustos dos senhores feudais, financiados, claro está, pelos empregados.
E quanto mais empregos o investimento criar, melhor o investimento é. Mais importante o investimento é... para a economia portuguesa... claro está.
Na república dos bananas (que somos nós... a república... e os bananas também... claro está) há regras. Há por exemplo uma regra que diz que as empresas têm de pagar imposto sobre os seus lucros, ao qual se chama IRC. Há também regras relativamente ao ordenamento do território que incluem o respeito pela reserva agrícola nacional (RAN) e pela reserva ecológica nacional (REN). E há outras regras, como por exemplo a que diz que se eu precisar de um pedaço de terreno para construir uma casa para poder viver nela, tenho de pagar forte e feio e o Estado está-se a marimbar para isso.
Mas quando se anuncia um investimento com criação de muuuuitos postos de trabalho, tudo se modifica. É que os PIN (projectos de potencial interesse nacional) também são uma regra que funciona como um 'joker' das cartas e se sobrepõe a todas as outras regras. De repente passa a poder construir-se em plena reserva ecológica ou agrícola (ou até em plena paisagem protegida, como aconteceu em Tróia), o IRC praticamente desaparece, os terrenos do Estado são vendidos ao desbarato, e tudo são benesses.
Sabemos que o Estado celebrou com o IKEA um acordo para essas benesses todas. Infelizmente, depois de pesquisar um pouco na Internet, não consegui aceder ao conteúdo desse acordo. Porque será?...
Só há uma regra que os tipos do IKEA e do governo e restantes empresários e empreendedores e malta fixe continuam a cumprir escrupulosamente: a regra do salário mínimo. Em 2010 a maioria dos 1000 trabalhadores da fábrica da IKEA em Paços de Ferreira auferiam 475 € de salário mensal. E as condições de trabalho eram de modo a que a produtividade estivesse sempre ao rubro... De 2010 para cá, as coisas não podem ter melhorado. Talvez agora também lá tenham estágios não remunerados e espalhem aos quatro ventos que estão a dar formação gratuita às pessoas!...
Ainda este ano a IKEA voltou a ser acusada pela Quercus de construir em RAN. Mas, novamente, isso não é nada que uma classificação de PIN não ultrapasse, a bem da economia nacional, claro está.
Esta última imagem, publicada no Jornal de Notícias de 31 de Maio de 2008 tinha a seguinte legenda "Maria José, Zélia e Custódia arranjaram emprego". E que bem que elas ficam de jardineira azul e t-shirt branca... Tal como no vídeo de lá de cima, enquanto o Sócrates diz que é bom para a economia e mostra como se serram troncos, estes 'recursos humanos' ficam sempre muito bonitos... há que tratá-los com o jeitinho necessário... olha se algum ganha uma doença?... e depois é uma chatice!... tem que se mandar abater...
A economia, organizada nestes moldes, mais do que perniciosa, é fétida. A ideia de que a criação de empregos é algo divino e que merece todo o nosso respeito e até subserviência é a demonstração evidente de como a ideologia capitalista está enraizada dentro das pessoas. Não interessa que os empregos sejam mal pagos, não permitam a evolução espiritual ou material das pessoas, não as emancipem, não permitam nunca que elas se apoderem dos seus próprios destinos, e que a fatia de leão do produto do seu trabalho seja apropriada pelo empresário ou investidor ou o raio que o parta!
Entretanto, em simultâneo, o IKEA e as outras multinacionais que todos conhecemos neste início de século vão extinguindo inexoravelmente os pequenos produtores. As leis do jogo, a competitividade, a produtividade, e o diabo-a-sete, ditam isso mesmo.
Há tempos pensei que me daria muito gozo poder fazer trabalhos em madeira. Pensei mesmo em tornar-me aprendiz de carpinteiro. Depois constatei que nas cidades que melhor conhecia já quase ninguém recorria a carpinteiros, que os poucos que ainda sobreviviam faziam-no com dificuldade, que toda a gente se abastecia em IKEA e coisas do género. Pensei que nos sítios mais recônditos fosse diferente. Há uns anos, em Rio do Onor, em conversa com um velhote de lá, constatei que afinal é o mesmo em toda a parte.
E hoje mesmo percebi que a madeira da criptoméria, árvore introduzida há cerca de duzentos anos nos Açores para fins comerciais (e que ajudou a dar cabo da flora original do arquipélago), também está a dar o seu lugar aos aglomerados de pinho de outros tantos IKEA deste planeta. É o que as pessoas preferem...
Mas vamos ter esperança, que já se fala na "criação do cluster silvo-industrial da 'criptoméria dos Açores'". A postura e a linguagem é toda a mesma: recursos naturais, cluster da fileira florestal, desenvolvimento rural sustentável, plano de marketing, fomento do conhecimento e da inovação, exportação para novos destinos intra e extra-comunitários, desafios e oportunidades, melhorar o valor económico do sector florestal, novas oportunidades de mercado, sectores emergentes, gestão sustentável, papel multifuncional das florestas, valorização do papel da floresta na protecção dos recursos naturais e do ambiente.
"Valorização do papel da floresta na protecção dos recursos naturais e do ambiente"???... O que é que isto quer dizer?...
Mas somos alertados que "primeiro será necessário organizar a produção e certificar quer a gestão florestal sustentável dos seus povoamentos, quer toda a cadeia de transformação a jusante". Ou seja, primeiro será necessário criar os nossos próprios IKEA, geradores de muitos postos de trabalho lindos... Claro está!
Agora sabemos porque é que os produtos da IKEA são baratos: porque nos comemos a nós próprios. É claro que quando compramos no IKEA somos nós a montar os móveis, mas também nos estamos a alimentar de florestas e de pessoas...
segunda-feira, 2 de dezembro de 2013
A Amazon, o Natal, o consumo, o crescimento económico, a produtividade, a competitividade e o diabo-a-sete...
E no meio disto tudo, cabe perguntar: o que é que Deus e o menino Jesus têm a ver com o nosso Natal?...
Artigos anteriores sobre o Natal:
Todas estas lojas, marcas, produtos e empresas são o produto do maravilhoso mundo novo do capitalismo. Todas as coisas pelas quais todos ansiamos, a baixo preço. Só que todas estas coisas não chegam sem os seus senãos. As regras do jogo não foram simplesmente lançadas, mas fabricadas ao longo de décadas, para garantir que todos temos no bolso o motante de dinheiro ideal para manter esta máquina a funcionar. E um dos efeitos que ela tem é o que o trabalho da BBC agora revela acerca da Amazon. Mas quem diz Amazon, diz outra empresa qualquer, como aliás os próprios tipos da Amazon assinalam. A competitividade assim o exige!...
A minha sugestão é simples: neste e em todos os natais, todos os dias, consuma menos, consuma-se menos, e melhor.
Jornalista infiltrado expõe condições de trabalho na Amazon
Amazon workers face 'increased risk of mental illness'
Artigos anteriores sobre o Natal:
- bolo inglês
- os operários do natal - músicas de um outro Natal, um pouco mais humano
- coisas do natal
Todas estas lojas, marcas, produtos e empresas são o produto do maravilhoso mundo novo do capitalismo. Todas as coisas pelas quais todos ansiamos, a baixo preço. Só que todas estas coisas não chegam sem os seus senãos. As regras do jogo não foram simplesmente lançadas, mas fabricadas ao longo de décadas, para garantir que todos temos no bolso o motante de dinheiro ideal para manter esta máquina a funcionar. E um dos efeitos que ela tem é o que o trabalho da BBC agora revela acerca da Amazon. Mas quem diz Amazon, diz outra empresa qualquer, como aliás os próprios tipos da Amazon assinalam. A competitividade assim o exige!...
A minha sugestão é simples: neste e em todos os natais, todos os dias, consuma menos, consuma-se menos, e melhor.
Jornalista infiltrado expõe condições de trabalho na Amazon
Amazon workers face 'increased risk of mental illness'
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