domingo, 31 de março de 2019

Como ultrapassar o/a ex...

O título deste artigo parece-me mal conseguido. Mas se calhar é só a minha opinião... É uma tradução do título do vídeo que está em baixo e que gostaria que pudessem ver antes de eu tecer algumas considerações sobre ele. O título é "how to get over your ex".

Logo à partida, eu não utilizo a palavra "ex" para designar um(a) antigo/a companheiro/a. Muito gente faz isso, e eu não gosto, acho mesmo feio. Porque cada pessoa é uma pessoa e vale enquanto pessoa. Se eu casar com Fulana, ela continua a ser Fulana, e não passa a ser "a minha mulher" ou "a minha esposa". Está bem... passa... se quisermos... mas isso será uma qualidade que a pessoa adquire, mas à qual ela não pode ser reduzida. Fulana nunca será apenas a minha esposa, ela continuará a ser muitas outras coisas para além disso, e continuará, aos meus olhos a dever ser dignificada e tratada pelo seu nome próprio de Fulana. E no momento em que a minha relação terminar, ela não passa a ser a minha "ex" pelos mesmos motivos. Continuará a ser Fulana. Continuará a ser uma pessoa inteira.

Depois, a mensagem que se transmite com semelhante título é de que é necessário ultrapassar uma pessoa. E isso é errado. Porque quando uma relação acaba, o que nós queremos ultrapassar são os maus sentimentos que perduram dentro de nós. E equacionar dentro das nossas cabecitas que os maus sentimentos que temos são iguais àquela pessoa, que nem sequer é vista como uma pessoa, mas como o "ex", é errado e é perverso.

Deixo-vos então o vídeo:



Vamos lá então tentar sintetizar o que é dito neste vídeo. É muito simples: as separações fazem-nos sentir mal, mas é necessário que prossigamos com as nossas vidas, é necessário que reconquistemos um sentido de identidade (self) e para isso a melhor estratégia é não só riscar o nosso anterior companheiro (ou companheira) da nossa vida, como sobretudo fazer o exercício mental de associar coisas más a essa pessoa.

O que me motiva a escrever este artigo não é este vídeo em si. No fundo, ele não diz nada de extraordinário. O que me motiva é precisamente que esta mensagem é o mais normal que se pode encontrar relativamente a este assunto. A grande maioria das pessoas, parece-me, entende as separações deste modo.

E eu, no entanto, vejo as coisas de um modo substancialmente diferente.

Acredito que esta maneira de riscar as pessoas da nossa vida tenha resultados imediatos de permitir minorar a nossa dor e de permitir-nos continuar com a nossa vida (seja ela qual for... que nem nós às vezes sabemos bem qual é). Mas também acredito que este é um modo de agir perverso, para não dizer mesmo mau e injusto, e que tem consequências negativas para a pessoa que rejeitamos, para a coesão do tecido social em que vivemos e também para nós próprios. Vejamos...

No vídeo fala-se de reconquistar um sentido de identidade (regain a sense of self). A ideia é, parece-me, fácil de entender: quando estamos numa relação construímos uma maneira de viver e de olhar para nós próprios... e quando a relação termina parece que já não encaixamos, não reconhecemos a vida que levamos e não nos reconhecemos a nós mesmos. E sim, estamos de acordo que é importante e positivo sermos capazes de nos reconhecermos a nós mesmos ao longo da nossa história pessoal.

Mas isso está, do meu ponto de vista, errado desde a partida. Quem é que nos mandou perder a nossa identidade própria no momento em que entramos numa relação com outra pessoa?... E eu sinto necessidade de enfatizar esta pergunta, e portanto vou repeti-la: quem é que nos mandou perder a nossa identidade própria no momento em que entramos numa relação com outra pessoa?...

Ninguém nos mandou. Nós perdemos a nossa identidade por nossa própria iniciativa. No momento em que aceitamos mudar de hábitos sem compreender muito bem dentro de nós porque é que estamos a abandonar o nosso hábito antigo e a adquirir o novo hábito, estamos a perder a nossa identidade. Mas, em boa verdade, nós muitas vezes nem percebemos bem porque é que tínhamos o hábito antigo!... Ou seja, na verdade nós nem sequer tínhamos o nosso sentido de identidade bem apurado antes de começar a relação!...

Aceitamos perder a nossa identidade quando permitimos que nos tratem por "marido" ou por "pai" ou algo redutor no género. E somos nós que aceitamos isso!

Portanto, e muito ao contrário do que é dito neste vídeo e talvez faça parte de um "senso comum" sobre o assunto, a minha primeira recomendação é: conheçam-se a vós próprios, ao longo da vida toda, independentemente de tudo, sejam vocês, e saibam quem são. Ou seja, construam uma identidade, um sentido de identidade. E não permitam que a vossa identidade seja alterada por outros, sejam eles quem forem. Não, não se trata de modo algum de minorar a nossa entrega numa relação. Podemos entregar-nos a uma relação com pés e cabeça, sem perder a identidade. Basta que a cada instante saibamos o que estamos a fazer e saibamos que o estamos a fazer pelos outros, mas também por nós próprios. E, já agora, se em alguma altura estamos a fazer as coisas pelos outros mas não por nós próprios... aí é que a porca torce o rabo e começamos a meter o pé na argola. Portanto: cuidado com o que nós próprios fazemos e não nos esqueçamos nunca do nosso sentido de dignidade própria, de respeito por nós próprios. Nós temos de ser, ao longo de toda a vida, aquela pessoa que mais nos respeita.

No vídeo fala-se também da necessidade de seguir em frente com a vida (move on). Subentendo que isto significa não apenas a necessidade de deixar de sentir coisas más, como a necessidade de ir à procura de outra relação. Em relação a isto, a minha interpretação pode estar enganada, portanto não me vou estender muito. Mas se estiver correcta, há também aí coisas com as quais eu discordo. Por um lado, os sentimentos maus fazem parte da vida e devem ajudar-nos a evoluir. Evoluir não é o mesmo que "avançar" de qualquer modo ou "ultrapassar"... Evoluir é modificar de modo a que o resultado final seja melhor que o anterior. Deixar de sentir um sentimento mau sem ter aprendido nada no processo, ficando pronto para repetir tudo desde o início, parece-me ser um pouco estúpido e eu dificilmente lhe chamaria evoluir. Portanto, talvez não fosse má ideia respeitar os nossos sentimentos, e respeitar também os sentimentos maus, aprendendo com eles, alguma coisa que seja, antes de os querer matar com o que quer que seja.

Naturalmente que quando os sentimentos maus são tão intensos que não nos deixam fazer as coisas normais da vida como dormir, trabalhar, comer regularmente... aí talvez seja bom atacá-los com tudo o que tivermos. Mas para além disso, a minha ressalva mantém-se.

Por outro lado, esta coisa do "seguir em frente" parece-me que considera como uma necessidade o ficarmos disponíveis para outra relação com outra pessoa. E isso desagrada-me fortemente. A ideia de que necessitamos de uma relação com outra pessoa para podermos ser felizes tem consequências negativas. Logo por aí começa a corrosão do nosso sentido de identidade. Depois retira a beleza que pode haver numa relação desse tipo entre duas pessoas. E finalmente, no dia-a-dia, essa sensação de necessidade irá quase sempre traduzir-se na construção mental de uma lista de direitos e deveres, obrigações e expectativas, relativamente à relação. E isso, por muito prático que possa ser, convenhamos que não é a maneira mais bela de se estar numa relação.

Finalmente, e mais importante, o vídeo refere como elemento fundamental da receita do "get over it" o esforço mental de associar ao "ex" ideias más. O arrazoado é simples, à la Pavlov: se de cada vez que nos lembrarmos da pessoa nos lembrarmos também de coisas más, vamos associar essa pessoa a coisas más e vamos deixar de gostar dela. Deixando de gostar dela, deixaremos de a desejar, deixaremos de estar tristes por não a termos, passaremos a desejar que ela esteja longe, fora das nossas vidas, e tudo fica resolvido!

E isso é o que existe de mais perverso neste modo de pensar.

O "ex" é uma pessoa. Enquanto pessoa, merece ser respeitado. E o respeito que lhe devemos não deve depender do que conseguimos obter dele. Digo isto, mesmo estando consciente que meio mundo considera natural agir de outro modo, nomeadamente gostando e admirando e respeitando mais as pessoas que nos dão mais em troca. Acho isso profundamente errado... mas se as pessoas querem reger o seu sistema de valores por propósitos profundamente egoístas, eu pouco posso contra isso.

Ao criar uma imagem artificialmente má de outra pessoa estamos, em boa verdade, a desrespeitar essa pessoa, a ser injustos com ela.

Ao afastar essa pessoa da nossa vida, normalmente não estamos apenas a cortar o fio que une duas pessoas numa sociedade. Em geral há uma série de outros fios que também são cortados ao mesmo tempo: os fios que unem os familiares e os amigos das pessoas envolvidas. Estamos, no fundo, a contribuir para criar divisões no tal tecido social que devia ser mais unido. E as consequências de vivermos numa sociedade onde as pessoas em vez de estarem juntas estão cada uma por si, deixo-as à vossa consideração.

Mas para além do efeito que as nossas atitudes e comportamentos possam ter no "ex" e nos amigos e familiares (nossos e do "ex"), há também o efeito que isto tudo tem em nós.

O objectivo de quem quer "ultrapassar o ex" é deixar de sentir dor e voltar a ser feliz, ou algo do género... e em geral tem pouco a ver com o "aprender a lição". E isso é não apenas triste, mas também estúpido, porque é um tiro no pé.

Porque é que as pessoas se sentem tão mal, afinal, após uma separação?... Se o "ex" fez uma ou várias asneiras, e se nos sentimos mal por causa dessas asneiras, isso serão situações que deverão ser analisadas por si mesmas. Mas não é disso que estou aqui a falar. Asneiras não implicam separação e separação não implica asneiras. São coisas distintas. Portanto de onde é que nos vêm os sentimentos de desgosto que possamos ter após uma separação?

Do meu ponto de vista, esses maus sentimentos resultam de coisas como: perder o sentido da vida, porque a nossa existência, aos nossos olhos, só fazia sentido com aquela pessoa; ciúme porque a outra pessoa aparenta ser feliz com outros e está a dar a esses outros coisas que sentimos que nos pertencem; pena de nós próprios por não conseguirmos ter uma coisa que gostaríamos muito de ter; raiva ou sentimento de injustiça porque achamos que a outra pessoa devia ter feito isto e aquilo e aquilo e não fez; etc.

Estão a ver onde quero chegar, não?...

Aniquilarmos esses sentimentos sem lhes prestarmos atenção é perdermos a oportunidade de entender que: não devíamos necessitar de outros para construirmos a nossa identidade e para encontrarmos o nosso sentido para a existência; os outros não nos pertencem; não podemos exigir aos outros que sintam coisas por nós, porque nem nós mesmos conseguimos controlar o que sentimos pelos outros; temos de aceitar que nem sempre temos as coisas que gostaríamos de ter; etc.

Muita da dor que existe pode ser ultrapassada com compreensão. Compreensão dos outros, do mundo e de nós próprios.

É precisamente a dor para a qual não conseguimos encontrar compreensão a que mais dói.

Portanto fica a minha recomendação: antes de diabolizarmos quem quer que seja, tiremos as devidas lições das coisas que nos acontecem na vida, e sobretudo aprendamos a ser melhores nós próprios.

Se formos melhores e mais compreensivos, talvez não nos magoemos tanto no futuro.

Se, pelo contrário, seguirmos pela vida como um comboio, sentindo necessidade de "move on" e sentindo que os outros estão lá para nos satisfazer, sem atentarmos às lições da vida... correremos sérios riscos de cometer muitos e repetidos erros.

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