sábado, 16 de março de 2024

O bicho-papão da esquerda...

 Conforme uma comparação objectiva entre PS e PSD naquilo que é a forma de interpretar a realidade económica e naquilo que são as linhas condutoras da política permite compreender, não existem diferenças significativas entre eles: ambos defendem versões do capitalismo integradas em mercados globais e sujeitas à sua concorrência e aos seus fluxos de capitais, ambos aceitam a hegemonia dos EUA em relação à economia e a utilização do seu poder militar para a preservação desses interesses económicos, ambos defendem versões do um Estado que mantém a ordem para a condução dos negócios e garante um apoio mínimo aos mais desfavorecidos.

A vida em sociedade sempre foi afectada em maior ou menor grau por relações de poder entre as pessoas e entre as instituições. Toda a história da humanidade, longínqua e actual, é prova disso.
 
Numa relação de poder existem pessoas ou entidades que se encontram e que têm iguais, ou mais comummente, desiguais poderes. O poder que se esgrime numa relação de poder depende da comparação das capacidades ou possibilidades de cada uma das partes. Assim, o poder que uma das partes tem é o poder que a outra parte não tem. Consideremos, por exemplo, uma relação de poder militar entre dois Estados. Se um deles possui mais e melhor armamento, ele terá mais poder que o outro. No entanto, se o outro aumentar a quantidade e a qualidade do seu armamento, o primeiro perde poder, mesmo que o seu arsenal tenha permanecido inalterado.
 
Nas relações de poder entre pessoas ou instituições que pretendem ter mais poder para si mesmas, não é possível satisfazer os interesses de todos em simultâneo.
 
Voltando ao exemplo militar, não é possível aumentar o poder militar, nesta perspectiva relacional, de todos os Estados em simultâneo, porque se todos eles aumentam a qualidade e quantidade das suas armas, todos adquirem maior capacidade destrutiva, mas ao mesmo tempo todos se tornam mais vulneráveis perante a capacidade destrutiva dos outros. Este aspecto é muito importante no momento presente em que os Estados europeus parecem estar de acordo em relação a mais uma corrida ao armamento.
 
Também não é possível aumentar o poder financeiro de todos os agentes económicos em simultâneo. De facto, se todos os agentes possuírem mais dinheiro, as relações de poder em todos os mercados irão manter-se. E se a quantidade de bens e serviços, incluindo títulos financeiros, se mantiver, o mais provável é que os preços de todas as coisas subam até compensar o aumento do dinheiro de todos os agentes, voltando tudo à estaca zero.
A conclusão necessária é que nas relações de poder que sempre existiram e existem nas sociedades e nas economias, não é possível aumentar em simultâneo o poder de todos. Não apenas isso, mas o poder que uns têm é o poder que os outros não têm.
 
É assim que a pretensa máxima de "estamos todos no mesmo barco" se revela uma mentira: podemos estar todos sujeitos a um mesmo contexto, mas uns têm mais poder do que outros. Por exemplo, ficámos nos últimos anos sujeitos a aumentos de preços que afectaram todas as pessoas e empresas, mas claramente algumas tinham maior capacidade de responder a essa situação do que outras. Por exemplo: os bancos beneficiaram com o aumento das taxas de juro, mas quem tem crédito à habitação foi prejudicado. O benefício de uns é o prejuízo de outros. E o mesmo em todas as relações de compra e venda em que os preços variam.
Esta longa introdução é necessária, porque todos estamos sujeitos há demasiado tempo a uma intensa propaganda que nos tenta fazer acreditar que estamos todos no mesmo barco, ou que o crescimento económico é indispensável para combater a pobreza. E isso é falso.
 
Considerando como sendo de "esquerda" os partidos que nas relações de poder económico privilegiam os mais desfavorecidos, é forçoso concluir que nem PSD nem PS são de esquerda. Os militantes do PS poderão ficar chocados com esta afirmação. Afinal esse partido diz-se "socialista"! Porém, os factos puros e duros revelam que nas negociações entre empregadores e empregados, mediadas e contextualizadas por esse partido, os aumentos salariais são sempre definidos na medida em que não afectem as relações de poder pré-existentes.
 
É assim que em Portugal, entre 1995 e 2022 as remunerações dos trabalhadores estiveram sempre compreendidas entre 44% e 48% do PIB, independentemente dos governos serem PS ou PSD. Os que defendem, relativamente a isto e outros assuntos, que "não há alternativa" enganam-se e tentam enganar-nos. Quando um investidor investe numa empresa e obtém dela dividendos, que claramente não remuneram qualquer trabalho, ele só o faz porque existe uma relação de poder apriorística: ele tem o dinheiro e os outros não têm, e as leis permitem que quem tem o poder defina os níveis salariais para que no final sobre uma porção (o dividendo) para si. Tivessem todos igual poder e provavelmente o valor acrescentado da actividade económica seria integralmente repartido por quem o produziu, sob a forma de salários.
 
Portanto, o que é que nos sobra como partidos de esquerda, isto é, partidos que nas relações de poder económico a que todos estamos sujeitos no dia-a-dia, privilegiam os que têm menos poder? Sobram-nos os socialistas radicais, os comunistas, os anarco-sindicalistas, enfim, os extremistas e fundamentalistas. Em termos de partidos que se apresentam às próximas eleições, estes são: PTP - Partido Trabalhista Português, PCTP/MRPP - Partido Comunista dos Trabalhadores Portugueses, PCP - Partido Comunista Português, PEV - Partido Ecologista Os Verdes, MAS - Movimento Alternativa Socialista, L - Livre, BE - Bloco de Esquerda. Nota: se incluí um partido que não devia ou se deixei de fora um que devia incluir, isso não afecta a realidade e a mensagem do que quero transmitir.
 
Os partidos de esquerda que acabei de referir conseguiram em conjunto e nas últimas eleições legislativas de 2022 um total de 10,6% dos votos validamente expressos. Considerando que cerca de metade dos eleitores se abstiveram, isso significa que todos os partidos de esquerda conseguiram atrair 5,3% dos eleitores inscritos: grosso modo, um em cada vinte.
 
Aqui temos o paradoxo: nas relações de poder económico a maioria das pessoas está do lado que tem menos poder (basta ver o que acontece no mercado de trabalho aos que dependem do trabalho para terem rendimento), e no entanto apenas uma em cada vinte pessoas vota nos partidos que defendem e privilegiam quem tem menos poder.
 
 
Como explicar o paradoxo?
 
Há várias razões para isto. Uma delas é o fenómeno do "voto útil". O voto útil traduz-se no voto de um eleitor que se identifica mais com as propostas do partido A, mas vota no partido B porque simultaneamente tem medo que o partido C ganhe as eleições e considera que só o partido B o pode combater. Claramente o voto útil só beneficia os maiores partidos, e portanto só PS e PSD fazem sistemáticos apelos ao voto útil. No entanto, também é forçoso concluir que o fenómeno do voto útil mina o sistema democrático representativo que temos na sua essência. Não pretendo aprofundar aqui este tema. No entanto, deixo esta pista: o sistema de democracia representativa com eleições e partidos que temos baseia-se na premissa de que os eleitores votam nos partidos com os quais mais se identificam. Quando essa premissa não se verifica na realidade, o que será que acontece à representatividade política?
 
Outra razão justificativa para o paradoxo de as pessoas não votarem nos partidos que mais defendem os seus interesses é o medo do bicho-papão.
 
Se as pessoas pretendem ter mais poder, se o poder que têm nas relações que estabelecem entre si é desigual, e se os que têm mais poder se sentem ameaçados pelos que têm menos poder, qual é o único comportamento racional dos que têm mais poder? Claramente é utilizar o poder que têm para impedir que os que têm menos poder o conquistem.
 
Se existem partidos políticos que pretendem privilegiar os que têm menos poder, dando-lhes mais poder e consequentemente retirando poder aos que mais têm, o único comportamento racional destes últimos é lutarem contra esses partidos políticos.
 
Tudo estaria bem se os partidos políticos defendessem interesses diferentes e combatessem os outros partidos em igualdade de circunstâncias. Mas essa igualdade nunca existe. Os partidos que defendem os que têm menos poder têm sempre, eles próprios, menos poder que os outros. Por inúmeros motivos que o leitor facilmente enumerará.
 
Assim, é apenas natural que desde o momento em que as máquinas de propaganda política mais se desenvolveram, por alturas da primeira guerra mundial, e depois no período entre as duas guerras, que essas máquinas tenham sido utilizadas pelos poderes que dominavam a sociedade e a economia para incutirem na população determinadas formas de ver o mundo propícias à manutenção desse poder.
 
Alvos especialmente visados das enormes campanhas de propaganda foram sempre as correntes de pensamento, os partidos e as acções que tinham por objectivo dar mais poder a quem tem menos. Entre eles destacam-se os bichos-papões do comunismo, do socialismo, do anarquismo e afins.
 
Essas campanhas de propaganda foram extremamente bem conduzidas e tiveram os seus frutos, entre os quais os resultados eleitorais paradoxais que já referi.
 
Apenas como exemplo, no pensamento corrente de muitas pessoas as associações seguintes são automáticas:
socialismo - tirar aos que mais trabalham para dar aos preguiçosos
comunismo - socialismo com autoritarismo e falta de liberdade
anarquismo - desordem social, caos, violência
revolucionário - indivíduo violento, que impõe a sua vontade pela força
radical - fanático, lunático, violento e possivelmente armado
 
Apesar de parcial ou completamente erradas, estas associações automáticas só podem ter como consequência que os eleitores que assim pensam não considerem sequer a possibilidade de votar num partido de esquerda.
 
Tomemos o caso paradigmático da palavra comunismo. Apesar da origem da palavra ser "comum", e assim pertencer à família de palavras benignas que inclui comunidade ou comunhão, a palavra comunismo é muitas vezes, e fruto da histórica e intensa propaganda, automaticamente associada às ditaduras, à União Soviética, à Coreia do Norte, à repressão política, ao racionamento dos bens, etc. No entanto o comunismo é, desde a sua origem, uma corrente de pensamento e acção que defende a propriedade comum dos meios de produção. O comunismo defende a extinção de classes através da extinção dos privilégios actualmente associados a cada uma, e defende igualmente a extinção do Estado. Comunismo, afinal, é o que pode acontecer numa aldeia comunitária onde todos participam das decisões colectivas com igual poder, onde os meios de produção são propriedade de todos.
 
É possível que o leitor não acredite no que acabo de dizer, mas pode investigá-lo por sua conta. É igualmente possível, e mais provável, que o leitor considere algo como "apesar de na teoria o comunismo poder ser uma ideia bonita, ela é impossível de alcançar, e na prática resulta sempre em coisas como as ditaduras de..." seguindo-se o nome dos ditadores de eleição.
 
No entanto, isso não altera o que acabo de afirmar: a definição de comunismo, tal como está documentada, não está de acordo com a noção que muitas pessoas têm desse conceito.
 
Consideremos o seguinte exercício: os objectos azuis passam a ter sinais indicando que são amarelos. Eles continuam a ser azuis, mas afirmam, ou alguém afirma, serem amarelos. As pessoas interiorizam os sinais e ao fim de algum tempo quando alguém diz "amarelo" todos pensam nos objectos azuis. Será que nesse momento a definição de "amarelo" passa a ser "tudo aquilo que antigamente era azul"? Pode ser. Porque não? Mas nesse caso precisamos de encontrar um novo termo para tudo aquilo que antigamente era amarelo.
 
Talvez fosse mais simples passar a designar por comunismo tudo o que está associado a repressão, ditadura, centralismo, autoritarismo e afins. Mas nesse caso teríamos de encontrar outra palavra para designar aquilo que antigamente era comunismo. E além disso, a propaganda teria ganho na adulteração do significado da palavra (uma guerra de palavras). Talvez seja por isso, por não quererem assumir essa derrota no campo da propaganda, e por uma questão de fidelidade ao significado original, que os auto-intitulados "comunistas" permaneçam agarrados a esse termo, quando possivelmente a maioria das pessoas associa esse termo a algo que é diametralmente oposto.
 
Não pretendo tomar partido em relação ao significado das palavras, apenas pretendo permitir uma reflexão mais aberta sobre o tema, e chamar a atenção para a questão da propaganda. O que foi dito acerca do termo "comunismo" aplica-se a muitos outros termos, como os que já indiquei em cima e outros, nesta grande cruzada contra os partidos, pensamentos e acções de esquerda e pela instituição do "bicho-papão".
 
Enquanto se dissemina a ideia de que "os radicais de esquerda vêm aí", e são muito perigosos, os eleitores vão-se abstendo ou vão votando precisamente nos partidos que defendem interesses antagónicos aos seus.
 
Os partidos de esquerda com representação parlamentar propõem sistematicamente diplomas que reforçam os direitos dos trabalhadores por turnos, os direitos de maternidade e paternidade, que dão mais dias de férias aos trabalhadores, que aumentam os seus salários, que estabelecem a gratuitidade e acessibilidade dos serviços públicos, etc. Na grande maioria dos casos estas propostas são chumbadas pelos restantes partidos.
 
Talvez fosse tempo, portanto, de os eleitores quebrarem o paradoxo e perceberem que a ideia do "bicho-papão" é uma ideia criada pela propaganda dos que têm mais poder, que na prática os partidos de esquerda propõem medidas que os beneficiam, e que portanto seria melhor para os seus interesses dar-lhes o seu apoio através do voto e não só.
 
Há vários partidos de esquerda. Investigue e escolha aquele com que mais se identifica. Seja corajoso, e desista de votar utilmente, porque isso mina a democracia.
 
Ah, e claro, se se considerar poderoso, ponha de lado o altruísmo, defenda os seus interesses, e vote num partido de centro ou de direita!
 

 

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