terça-feira, 3 de dezembro de 2024

Da esquerda e da direita...

Já dizia o alemão barbudo, e muitos depois dele, inclusivamente o Fernando Rosas, cujas palavras seguintes podem ser escutadas na parte final do filme "25 anos de paciência impaciente", PSR, 1998, disponível na Internet.

Não posso deixar de considerar,
por muito antiquado que isso pareça,
que o grande separador de águas em termos teóricos e práticos
entre esquerda e direita
continua sendo a atitude que se toma face à iniquidade básica
em que repousa o sistema capitalista,
ou seja, em relação àquela relação social fundamental
mediante a qual parte do produto de quem trabalha
é expropriada por quem não o faz.
A resposta que se dá em termos teóricos e práticos a esta questão
continua a ser o que divide a direita e a esquerda,
por muito que um certo discurso ideológico
tente hoje descentrar esta questão
e mesmo negar a actualidade da dicotomia.
É bem certo que esta matriz fundamental do pensamento socialista
deu origem a duas grandes ordens de equívocos, historicamente,
o do socialismo digamos que ocidental,
que se transformou numa pura gestão do sistema capitalista,
e de um socialismo dito real,
que se transformou, ele próprio, numa reprodução
de um sistema capitalista
tão injusto e odioso como o tradicional.
O que significa que o grande desafio que se coloca à esquerda
em termos modernos, continua a ser o de se reencontrar
através da crítica das experiências históricas do socialismo
ou seja, que sistema há-de ser esse,
que organização há-de ser essa
que seja o princípio do fim do Estado,
e não a reprodução do sistema capitalista de outras formas,
que organização há-de ser essa
que permita simultaneamente o progressivo esvaziamento
das discriminações tradicionais entre sexos,
entre o trabalho manual e o intelectual,
entre a cidade e o campo,
e que permita também o maior progresso
económico, social, material, intelectual
a maior criatividade,
como compatibilizar isso,
nomeadamente com certos mecanismos de economia de mercado,
ou como superar o pluralismo limitado que hoje existe
dominado pelas oligarquias partidárias tradicionais
com um novo pluralismo mais amplo
que permita a intervenção participativa
das organizações de cidadãos
na vida da colectividade.
Tudo isto são utopias, dirão alguns,
mas eu pergunto
o que é que é intelectualmente mais sério:
se perseguir a luta por uma sociedade mais justa
ainda que assumindo o prolongado da jornada
ou se, pelo contrário,
satisfazermo-nos com essa espécie de letargia digestiva
que algumas pessoas empanturradas de bom-senso
nos aconselham
elogiando as virtudes de um sistema
que hoje elogiam com tanto zelo
como exactamente ontem atacavam.
Para mim,
que não tenho actualmente nenhuma filiação partidária,
nem estou particularmente inclinado
para esse tipo de actividade,
talvez que ser de esquerda seja, ao menos,
ter o pudor de não dar tal espectáculo.

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Ou, como questionava o José Mário Branco:

quantas vezes já tentámos nós?  914? ainda não. 606? ainda não. mas talvez quem sabe 10, 20?... qual é o preço da esperança?... acordai! acordai homens que dormis a embalar a dor dos silêncios vis!

Ser de esquerda hoje...

Ser de esquerda hoje

é não ter medo da palavra esquerda
e não a deslocar ao sabor do centro
é não ter vergonha
das coisas vividas e dos textos lidos
que nos puseram a pensar como pensamos
é não pôr entre parêntesis
os pressupostos do que fazemos.
A emancipação dos trabalhadores
será obra dos próprios trabalhadores
ou então não será.
É não perder a memória
e não permitir que a direita
se cubra dos louros das nossas vitórias
e seja opressor em nome da liberdade
é não entregar a política aos políticos
a arte aos artistas
o saber aos sábios
é não fazer do mal-estar
uma desculpa para não estar
é uma maneira de viver
onde o autoritarismo não cabe
e onde a aventura tem lugar
é sentir-se estranho
onde não há espaço para propor, decidir, imaginar
é preferir trabalhar com os outros
do que fechado num quarto
é gostar de estar onde alguma coisa mexe
e ser solidário nas pequenas novidades que despontam
é ter que tomar partido
contra as repressões e explorações diárias
uma luta contínua contra os lugares comuns
desta sociedade de consumos vários
é admitir a subversão
é assumir a diferença
é ter curiosidade pela realidade
e acreditar que a podemos transformar
é saber que nada acontece por acaso
é a crítica permanente dos poderes
é a desconfiança das máscaras todas
tecnocracias, burocracias, pragmatismos
dos apolíticos e dos neutros
é viver com uma utopia dentro da cabeça e da vontade
e duvidar do chamado realismo
é perceber que a alegria é possível
e que não vem nas embalagens de champô
é achar que vale a pena.
É isto tudo ao mesmo tempo
e é tentar não cortar a nossa vida às fatias
para pôr uma razão diferente em cada uma
e é gostar dos riscos que corremos.
 
Retirado do filme "25 anos de paciência impaciente", PSR, 1998, disponível na Internet, entre os minutos 33 e 35.