Transcrição de um email enviado há pouco tempo:
Como se todos nós tivéssemos 3 anos... Na realidade, um dos grandes problemas da nossa sociedade é que somos dirigidos (o governo, as administrações das empresas, até as famílias) por pessoas que se esquecerem que lá dentro ainda têm 3 anos, com tudo de bom e de mau que isso implica.
Assim, falam-nos de crescimento económico. Falam disso como se isso fosse a coisa mais importante que há no universo. Mas esquecem-se que nós não comemos crescimento económico, não dormimos em crescimento económico, não afagamos nem somos afagados pelo crescimento económico e eu, pelo menos, ainda não tive oportunidade de ter sexo com o crescimento económico.
Reparemos no que é admitido tacitamente por toda a gente sem pensar muito no assunto: o crescimento económico é importante, num país "desenvolvido" um crescimento de 3% ao ano é bom, um crescimento de 1% ao ano é mau, um crescimento de 0% ao ano (sim, ainda lhe continuam a chamar crescimento) é uma tragédia.
Imaginemos agora que estamos no país com o rendimento per capita à paridade dos poderes de compra (é sempre giro usar jargão de economista para que ninguém perceba o que estamos a dizer e para julgarem que sabemos mesmo o que estamos a dizer...) mais elevado do mundo. Seria de supor que a manutenção desse mesmo rendimento no ano seguinte seria uma coisa boa, não? Não senhor. Manutenção é o mesmo que crescimento zero, ou seja, uma tragédia.
Porque é que isto é assim?
É assim porque os economistas e esses dirigentes todos sabem muito bem que o sistema em que estamos é um sistema de competição. Todo o palavreado sobre competitividade e o diabo-a-sete faz sentido num contexto de competição. Infelizmente, também todas as coisas más como o desemprego ganham sentido num contexto de competição.
E é assim que se perdem as fasquias absolutas e tudo se passa a medir em termos relativos. Porque não é importante saber se temos LCDs, telemóveis, computadores, aviões, automóveis, sofás, colchões (ainda ante-ontem comprei um), casas, terrenos, comida, gasolina, férias e mais o que seja, o importante é saber se temos mais ou menos que o vizinho. Ou até, o importante é saber se conseguimos produzir mais, melhor e mais barato que o vizinho.
Eu costumo dizer que a competição é boa no desporto, porque nos estimula a darmos o melhor de nós próprios, mesmo que no final do jogo percamos, porque depois vamos todos tomar um banho ao balneário e vamos todos, vencedores e vencidos, beber uma cerveja no bar (a terceira parte do jogo). Só que a competição na economia não é bem assim. Ela bem que nos pode estimular a darmos o melhor de nós próprios (e isso é discutível), mas no final vencedor e vencido não se sentam à mesma mesa a beber a mesma cerveja. E infelizmente, no jogo só há um vencedor, o que implica que alguém, necessariamente, vai ter de ficar para trás.
A competição, como alguém dizia numa frase que eu considero sublime, melhora a mercadoria mas piora o homem. E é isso que nós às vezes esquecemos: é que melhores mercadorias não significam melhores homens.
Parece que de alguma forma levámos uma lavagem ao cérebro que nos faz pensar que melhores homens e melhores coisas é tudo igual, que o que é bom para a economia é bom para para nós.
Vou tentar responder mais directamente à questão levantada pelo João: se a base da economia assenta nas actividades primárias, que exploram recursos finitos, qual é a solução do problema?
Primeiro: a questão da economia real.
A questão da finitude dos recursos é uma questão que já anda na cabeça dos economistas desde há séculos. Veja-se por exemplo Thomas Malthus e o seu "An Essay on the Principle of Population".
Ao longo desses mesmos séculos a humanidade sempre conseguiu iludir o problema da finitude dos recursos através de aumentos de produtividade, através do uso de novas tecnologias e através da prospecção e utilização de reservas antes consideradas inexistentes. Como é evidente, com maior ou menor optimismo, a humanidade nunca conseguirá alterar os dados do problema. A perspectiva de poder utilizar outros planetas é muito reduzida, portanto temos de nos contentar com o nosso. O aumento do número de pessoas e, para estes efeitos, o aumento de quantidade de tudo o que tenha existência física não podem continuar indefinidamente. Ponto. Isso não implica, no entanto, que a margem de manobra seja ainda suficientemente grande para podermos continuar iludidos durante mais uns séculos.
Segundo: a questão da economia que temos, que nem sei se é virtual, mas bem parece!
Quando se fala em crescimento da economia está-se quase sempre a falar do crescimento do PIB. Utilizar o crescimento do PIB como O indicador de excelência para aferir da satisfação das pessoas tem uma lista quase interminável de defeitos, que me vou abster de mencionar, mas que podem procurar na net (mesmo no meu blogue tem lá um artigo que aborda a questão).
Ora o crescimento indefinido e interminável do PIB é sempre possível, porque o PIB mede, mal ou bem, os fluxos monetários que ocorrem numa sociedade, e não os fluxos reais. Vejamos um exemplo de uma possibilidade para aumentar o PIB: os sujeitos A, B, C, ..., Z cortam o cabelo a si próprios. Numa iniciativa para aumentar o PIB da freguesia, o manda-chuva da zona incita a que se faça o seguinte: o sujeito A corta o cabelo a B e cobra-lhe 10 euros; o sujeito B corta o cabelo a C e cobra-lhe 10 euros; ...; o sujeito Z corta o cabelo a A e cobra-lhe 10 euros. No final o trabalho foi o mesmo, o resultado foi o mesmo, mas houve muito mais dinheiro a circular (ironicamente podia ser sempre a mesma nota, ou até nem sequer uma nota, mas uma dívida) e o PIB cresceu.
A verdade é que as actividades primárias são a base da economia, mas cada vez mais a economia assenta em actividades secundárias (de transformação) e terciárias (de serviços) como bem sabemos. O exemplo que dei ali atrás é precisamente um exemplo de algo que as pessoas faziam por sua conta, mas que passaram a fazer umas às outras, isto é, de um serviço. Pensem só na quantidade de coisas que ao longo do último século as pessoas faziam para si próprias, ou para os amigos ou familiares, e passaram a adquirir a terceiros (não pensem em porcarias!). Isso conduz a um aumento do sector terciário, o que é interpretado pelos economistas como sinal de desenvolvimento da economia, e conduz a um crescimento económico, o que é interpretado pelos economistas como um aumento de bem-estar.
Mas vamos um pouco mais além. Pensemos que na dita freguesia, o manda-chuva queria, no ano seguinte, voltar a aumentar o PIB (já sabemos que ficar na mesma é sempre uma tragédia). Que possibilidades temos? Bom, podemos fazer a mesma coisa mas cobrar 100 euros em vez de 10. Só que isso é interpretado como subida generalizada dos preços, isto é, inflação, e logo não é contabilizado no crescimento do PIB. Precisamos de algo diferente... sei lá... um Ferrero-Rocher?
A meu ver, e assim sem pensar muito, as sociedades resolveram esse problema de três formas. A primeira forma é aumentar o consumo dos serviços. As pessoas cortavam o cabelo quatro vezes por ano? Pois então toca a estimular as pessoas a cortarem dez vezes por ano. E depois cem. E depois mil. Então passamos para a segunda forma, que é a diversificação das necessidades. Este é um ponto fulcral e vou voltar a ele. Bom, neste caso digamos que temos de convencer as pessoas a ir ao cabeleireiro para fingir que nos corta o cabelo, só que dizemos que é uma massagem à cabeça, ou uma forma qualquer de atrair energias positivas para o couro cabeludo. Finalmente a terceira forma é a do aumento da produtividade. Nesse caso um dos sujeitos da aldeia, por exemplo o sujeito P, de produtividade, torna-se super produtivo e corta o cabelo a toda a malta no mesmo tempo que antigamente se cortava o cabelo a uma pessoa só.
Mas como é que esse aumento de produtividade aumenta o PIB da aldeia? Pois é... Não aumenta! O aumento de produtividade só por si não aumenta o PIB. Só o aumento do consumo ou da produção (repare-se que tudo o que é produzido é consumido ou é armazenado, o que é considerado pelos economistas como um investimento ou consumo forçado) é que aumenta o PIB. A questão é saber em que medida o aumento da produtividade pode aumentar o consumo.
O aumento da produtividade é bom quando liberta recursos (tempo, pessoas, máquinas, matérias, seja lá o que for) para poderem ser utilizados na satisfação de outras necessidades. Na nossa aldeia, o aumento de produtividade do senhor P seria bom, se todas as outras pessoas pudessem agora dedicar-se a outra coisa que precisavam de fazer e antes não conseguiam.
A grande diferença para o que se passa hoje em dia é que o aumento de produtividade liberta recursos, mas depois há falta de imaginação para pôr esses recursos libertados a produzirem outras coisas. E porquê? Porque ao contrário do que os economistas gostam muito de dizer, as nossas necessidades não são ilimitadas, provavelmente em qualidade, mas certamente em quantidade. Por isso temos tanto, e aparentemente cada vez mais, desemprego.
Ponhamos os pés na terra e pensemos de maneira simples. Se antigamente um sujeito tinha uma tarefa que lhe ocupava muito tempo e inventava uma máquina para poupar tempo, logo poderia aplicar esse tempo a fazer outra coisa qualquer que estaria em falta. Hoje em dia é preciso fazer um esforço razoável para encontrar coisas em que possamos ser verdadeiramente úteis, uma vez que vamos estar sempre a competir com a elevada produtividade dos outros.
Basicamente não há procura para tanta produtividade.
E como é que se soluciona a coisa? Com aquela outra coisa a que chamei diversificação de necessidades e que normalmente é conhecida por inovação. O que é que fazemos com tanta gente sem trabalho?... Bom... fazemos inovação! Isto é: colocamos uma parte dessas pessoas a pensar em coisas que não lembram ao diabo, outra parte a produzir essas coisas, e uma parte considerável a tentar convencer todos os outros que essas coisas que não lembram ao diabo são essenciais ao nosso bem-estar. Et voilá, temos as nossas sociedades.
E, voltando à questão inicial, poderemos nesta economia mais ou menos virtual continuar a crescer indefinidamente? Bom, se calhar até podemos... O único problema é que o sistema se vai tornando cada vez mais instável, porque cada vez mais baseado em coisas que na realidade não são muito necessárias, coisas que apenas foram inventadas para entreter a malta, quem as compra e quem as produz.
De cada vez que há um problema económico as pessoas parece que acordam para a vida, parece que tornam a pôr os pés na terra, e de alguma forma, provavelmente porque são obrigados a isso, voltam a distinguir mais claramente aquilo que são necessidades essenciais das que são menos essenciais e das que provavelmente nem necessidades são. E isso, que supostamente seria uma coisa boa, é desastroso para esta economia virtual toda. Porque de repente a procura dos penduricalhos que não lembram ao diabo desce abruptamente e lá ficam uma data de pessoas em maus lençóis. É o que se passa agora.
Mais um pensamento, para terminar. Mas então, se as pessoas são ocupadas a fazer coisas que não lembram ao diabo, que mal vem ao mundo de elas deixarem de fazer essas coisas que não lembram ao diabo. Bom, na verdade até poderia vir muito bem ao mundo: deixávamos de perder tempo com coisas inúteis, as pessoas tinham mais tempo livre, poupávamos energia e tal e coisa. O problema é que ao ser assim, a confrontação entre as necessidades pouco ilimitadas e as produtividades crescentes ficaria muito à vista: alguns poucos produtores seriam capazes de abastecer toda a gente e, e aqui está o cerne da questão, apropriar-se-iam de todos os benefícios decorrentes dessa actividade. E como não está nem nunca esteve na moda a redistribuição dos ganhos entre toda a gente, acabaríamos com tremendas desigualdades e possivelmente com confrontos sociais daí resultantes (como aliás parece estar a acontecer).
Digam-me então como é que se sai disto.
quinta-feira, 10 de fevereiro de 2011
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