terça-feira, 31 de março de 2015

Teaching...


Livro de Neil Postman e de Charles Weingartner que recomendo vivamente. Publicado pela primeira vez em 1969, mantém-se infelizmente muitíssimo actual e premente. Mais informação sobre o livro pode ser encontrada por exemplo aqui.

As ideias do Neil Postman, em geral, e este livro em concreto ajudam-me a sentir-me menos só. São ideias simples, que se tornam complexas apenas quando confrontadas com o pensamento dominante que está inculcado na cabeça de todos nós. Tornam-se complexas apenas porque colidem com as nossas ideias feitas a um nível muito profundo.

A nossa ideia feita acerca do ensino, por exemplo, é a de que existe um sentido universal para as coisas, existe informação cuja pertinência é independente de tudo o resto, e os alunos vão à escola para que os professores lhes transmitam essa informação e esse sentido, para que os alunos fiquem mais preparados para o mundo. "Mais preparados para o mundo" implica cada vez mais, à medida que o capitalismo aperta, o possuir as "competências" para poder vingar no "mercado de trabalho". Ou seja, ganhar muito dinheiro.

A subversão de que nos falam os autores deste livro é tão somente o questionar dessas ideias feitas. De todas as ideias feitas. Sempre que questionamos ideias feitas, estamos a subverter, estamos a virar as coisas do avesso, estamos a revolver, a revolucionar. O enfoque da subversão na actividade do ensino tem a ver com a crença dos autores de que a escola é uma instituição fundamental para as sociedades. Eu também acredito nisso. E muitas pessoas também acreditam nisso. O importante, porém, é compreender que não podemos ser ingénuos ao ponto de acreditar, como muitos, que o problema do mundo é a "falta de educação" das pessoas. A ingenuidade vem da crença, porventura inconsciente, de que "educação" é uma coisa universal, e é sempre boa, seja ela o que for.

O que os autores nos dizem, no entanto, é que para que a escola cumpra a sua função primordial, ela tem de ser subvertida. Por um lado, a subversão tem de existir face ao que era, e infelizmente ainda é, a realidade das escolas. Mas por outro lado é o próprio método subversivo que tem de ser fomentado nos alunos. Fomentado e não criado, porque todas as pessoas têm à partida um método subversivo que faz parte das suas funções inatas. E o que as escolas da época, e infelizmente ainda as actuais, melhor fazem é precisamente matar esse espírito subversivo...

O fomento do método subversivo nas pessoas concretiza-se na construção de um "crap detector", um detector de tretas, à la Hemingway, do qual aliás já aqui falei no passado.

Os autores abordam com alguma ênfase a ideia de que "the medium is the message", isto é, de que o conteúdo do que se transmite está intimamente ligado à forma como se transmite, e que esta última altera o modo como o conteúdo é percepcionado pelo receptor. Por exemplo, quando numa sala de aula se transmitem conhecimentos assumindo uma autoridade que não deve ser questionada, a mensagem que está verdadeiramente a ser transmitida é precisamente a de que existem autoridades de conhecimento que não devem ser questionadas. Noutro exemplo, as palavras que utilizamos para formular uma ideia, elas próprias servem para formatar e conter essa ideia. O mesmo é dizer que as palavras que utilizamos condicionam o nosso pensamento. Por isso mesmo os autores também dedicam um capítulo deste livro ao linguajar ("languaging"), dizendo-nos, por exemplo, que aquilo que dizemos que uma coisa é, ela não é, no sentido em que a verdade objectiva nunca é perfeitamente captada pelas nossas ideias, mas também aquilo que dizemos que uma coisa é, ela é mesmo, no sentido de que a verdade subjectiva acerca da realidade que nos envolve se molda às palavras que utilizamos para a definir. Assim, quando dizemos a um aluno que ele é inteligente, ele passa a percepcionar-se a si próprio como inteligente e isso pode efectiva e objectivamente torná-lo mais inteligente (embora não necessariamente). Assim também, e agora noutro contexto, quando dizemos que as instituições bancárias são fundamentais para o funcionamento da economia, elas passam mesmo a ser fundamentais, na nossa percepção, mesmo que nem sequer saibamos bem o que é ou como funciona uma "instituição bancária" ou uma "economia".

Mas os três capítulos que para mim assumem a maior importância neste livro são: "pursuing relevance", "what's worth knowing?" e "meaning making".

No fundo, esses três capítulos abordam a questão da consequência, do propósito, do sabermos o que andamos aqui a fazer. E essas são, a meu ver, as questões fundamentais de toda a nossa existência, que subjazem a tudo aquilo que fazemos ao longo das nossas vidas e que, portanto, devem mesmo ser levantadas ao virar de cada esquina, e mesmo no meio de cada recta, para nos assegurarmos de que vamos no bom caminho.

Desde há muitos anos que tenho esta imagem da humanidade como a tripulação de uma nave espacial, o planeta Terra, a deambular pelo espaço... A humanidade esforça-se muito por fazer com que a nave funcione bem. É assim que as pessoas se empenham nas suas tarefas do dia-a-dia e é daí que acabam por extrair o sentido das suas vidas. No entanto, ninguém sabe para onde a nave vai, e aparentemente ninguém se preocupa muito com isso!...

Na analogia dos autores deste livro, a humanidade age como alguém que conduz um automóvel olhando apenas através dos espelhos retrovisores. Ou seja, a humanidade não sabe para onde vai, apenas altera o seu comportamento consoante aquilo que são as suas interpretações do passado. Não obstante, a humanidade, entusiasmada por aquilo que considera ser o "progresso", carrega cada vez mais no acelerador... Os autores, com o que me parece ser alguma sensatez, dizem que não devemos esperar nada de bom se continuarmos a agir assim.

Também eu, em diversos momentos no passado, chamei a atenção para esta nossa ideia feita do "don't stand there, do something", ou seja, de que agir é o melhor que podemos fazer, mesmo que não tenhamos pensado muito no assunto e não saibamos muito bem o que é que efectivamente estamos a fazer. Somos uma sociedade de acção e acreditamos que para a frente é que é o caminho e que muita agitação (de preferência mental) é o que nos vai resolver os problemas. É assim, por exemplo, que acreditamos que a solução dos problemas económicos se atinge sempre com mais crescimento económico...

No entanto, é precisamente esta ideia feita que acaba por perpetuar e agravar uma série de problemas. O problema fundamental será precisamente o do nosso bem-estar, colectivo e individual, e da sua consequência no meio que nos envolve e no futuro bem-estar de outros. Procurar a felicidade de uma forma frenética, sem parar para pensar bem no que se está a fazer, pode ter consequências desastrosas...

É também assim que todos colocámos os nossos filhos nas escolas, para que aprendam, mas nunca nos perguntámos seriamente: o que é que é importante aprender?... Porquê?... Para quê?...

O importante a aprender será precisamente um método para aprender. Ou seja, é mais importante aprender a encontrar respostas às questões que nós próprios levantamos do que aprender uma colecção de dados que para nós não tem significado. Mas mais importante do que isso é saber formular as questões certas!

Por exemplo: eu vejo muitas pessoas à minha volta preocupadas com a questão de saber como hão-de conseguir ganhar mais dinheiro. Mas será essa a questão mais pertinente para essas pessoas?... Terão essas pessoas esquecido outras questões mais pertinentes?... Terão essas pessoas atrofiado a sua capacidade de questionar?...

Os autores dão-nos uma lista de perguntas que eles consideram ser relevantes (a tradução é minha):


  • o que é que te preocupa mais?
  • quais são as causas das tuas preocupações?
  • pode alguma das tuas preocupações ser eliminada? como?
  • qual das tuas preocupações abordarias primeiro? como podes decidir isso?
  • há outras pessoas com os mesmos problemas? como podes saber isso? como podes descobrir?
  • se tivesses uma ideia importante que quererias dar a conhecer a toda a gente do mundo, como farias para o conseguir?
  • o que é que te preocupa mais nos adultos? porquê?
  • de que forma queres ser semelhante ou diferente dos adultos que conheces quando cresceres?
  • achas que existe algo pelo qual valha a pena morrer? o quê?
  • como é que começaste a acreditar nisso?
  • o que é que achas que faz com que valha a pena viver?
  • como é que começaste a acreditar nisso?
  • actualmente, o que é que gostarias mais de ser, ou de ser capaz de fazer? porquê? o que é que precisarias de saber para atingires isso? o que é que terias de fazer para atingir esse conhecimento?
  • como é que podes distinguir os "tipos bons" dos "tipos maus"?
  • como é que o "bom" pode ser distinguido do "mau"?
  • que tipo de pessoa é que gostarias mais de ser? como é que podes conseguir vir a ser esse tipo de pessoa?
  • actualmente, o que é que gostarias mais de estar a fazer? e daqui a cinco anos? e daqui a dez anos? porquê? o que é que terias de fazer para concretizar essas expectativas? do que é que terias de desistir para conseguires fazer algumas ou todas essas coisas?
  • quando ouves ou lês ou observas algo, como é que sabes o que significa?
  • de onde vem o significado?
  • o que é que significa "significado"?
  • como é que podes saber o que uma coisa "é"?
  • de onde vêm as palavras?
  • de onde vêm os símbolos?
  • porque é que os símbolos mudam?
  • de onde vem o conhecimento?
  • quais é que achas que são as ideias mais importantes da humanidade? de onde é que elas surgiram? porquê? como? e agora o que faremos com elas?
  • o que é uma "boa ideia"?
  • como é que podes saber se uma ideia boa ou viva se torna numa ideia má ou morta?
  • que ideias da humanidade seria melhor esquecer? como é que decides?
  • o que é o "progresso"?
  • o que é a "mudança"?
  • quais são as causas mais evidentes da mudança? quais são as causas menos evidentes? que condições são necessárias para que haja mudança?
  • que tipos de mudança é que estão a acontecer neste preciso momento? quais são importantes? como é que elas são semelhantes ou diferentes de outras mudanças que já ocorreram?
  • quais são as relações entre novas ideias e mudança?
  • de onde vêm as ideias novas? como? e depois?
  • se quiseres parar uma mudança que está a ocorrer agora mesmo, escolhe uma, como é que farias? que consequências deverias considerar?
  • das mudanças importantes que agora estão a decorrer na nossa sociedade, quais deveriam ser fomentadas e quais deveriam ser restringidas? porquê? como?
  • quais são as mudanças mais importantes que ocorreram nos últimos dez anos? vinte anos? cinquenta anos? no último ano? nos últimos seis meses? no último mês? qual será a mudança mais importante no próximo mês? no próximo ano? na próxima década? como é que podes dizer? e daí?
  • o que é que mudarias se pudesses? como é que o conseguirias? das mudanças que irão ocorrer, quais é que impedirias se conseguisses? porquê? como? e daí?
  • quem é que tu pensas que tem as coisas mais importantes para dizer hoje em dia? a quem? como? porquê?
  • quais são as ideias mais estúpidas e perigosas que são populares hoje em dia? porque é que pensas isso? de onde vieram essas ideias?
  • quais são as condições necessárias para manter a vida? plantas? animais? humanos?
  • quais dessas condições são necessárias para todas as formas de vida?
  • quais para as plantas? quais para os animais? quais para os humanos?
  • quais são as maiores ameaças para todas as formas de vida? para plantas? para animais? para humanos?
  • quais são as estratégias que os seres vivos utilizam para sobreviver? quais são únicas das plantas? quais são únicas dos animais? quais são únicas dos homens?
  • que tipos de estratégia de sobrevivência humana são (1) semelhantes às estratégias das plantas ou dos animais e (2) diferentes das estratégias das plantas ou dos animais?
  • que estratégias de sobrevivência a linguagem humana permite desenvolver que os animais não consigam?
  • como é que as estratégias de sobrevivência humana seriam diferentes se ele não tivesse linguagem?
  • que outros tipos de linguagem os humanos possuem para além dos que consistem em palavras?
  • que funções é que estas linguagem têm? como e porque é que se criaram? podes inventar uma linguagem nova? como é que começarias?
  • o que é que aconteceria, que diferença faria, o que é que a humanidade não poderia fazer se não tivesse linguagens numéricas (matemáticas)?
  • quantos sistemas simbólicos a humanidade possui? como é que se chegou aí? e daí?
  • quais são alguns exemplos de símbolos bons? e maus?
  • que bons símbolos poderíamos usar mas que ainda não temos?
  • que maus símbolos temos e que viveríamos melhor sem eles?
  • o que é que vale a pena saber? como é que decides? quais são algumas maneiras de conseguir saber aquilo que vale a pena saber?
Vale a pena pensar, digo eu, no modo como as nossas escolas actuais dão ou não resposta a questões deste tipo. Vale a pena nós próprios pensarmos em como nós próprios pensamos ou não em questões deste tipo. Vale a pena nós próprios pararmos para reflectirmos e tentarmos dar resposta a questões deste tipo.

Vale a pena sabermos para que é que queremos o dinheiro, antes de nos matarmos para o conseguir. Vale a pena saber para que é que vamos ler livros, antes de lermos tudo o que nos aparecer à frente. Vale a pena saber o que é que andamos a fazer na vida...

Mas, como é que poderemos saber o que andamos aqui a fazer, e como é que poderemos decidir o que fazer?...

Para isso precisamos das nossas percepções e dos significados que lhes atribuímos. Baseados nos trabalhos de outros autores, os deste livro afirmam então:
  1. As nossas percepções não vêm das coisas à nossa volta, vêm de dentro de nós. Isso não significa que a realidade não tenha uma existência objectiva, mas que nós só lhe podemos chegar através do nosso sistema nervoso.
  2. As nossas percepções são uma função das nossas experiências passadas, dos nossos pressupostos e dos nossos objectivos. Ou seja, em geral nós apercebemo-nos das coisas como queremos e precisamos de as perceber.
  3. Em geral só ficamos disponíveis para mudar as nossas percepções quando somos frustrados no intento de fazer algo baseado nelas. Se as nossas percepções nos permitem atingir os nossos objectivos, não as vamos mudar, por mais que nos digam que elas estão "erradas" (para nós não estão).
  4. As percepções são únicas a cada um de nós. A comunicação com outras pessoas só se torna possível quando somos capazes de partilhar objectivos, pressupostos e experiências, isto é, quando somos capazes de "ver" o ponto de vista dos outros.
  5. As nossas percepções dependem dos nossos sistemas de classificação e categorização, os quais dependem da nossa linguagem. Nós vemos com a nossa linguagem.
  6. O significado de uma percepção é o modo como ela nos leva a agir.
Enfim, um livro que recomendo vivamente, e que está disponível online, por exemplo aqui.

"Remember: in order for a perception to change one must be frustrated in one's actions or change one's purpose. Remember too, that no one can force anyone else to change his perception."

quinta-feira, 19 de março de 2015

O submarino irrevogável...




terça-feira, 17 de março de 2015

A direita e as reformas estruturais - o paradoxo fundamental do liberalismo económico...


O liberalismo económico, qualquer que seja a sua modalidade, é um modo de interpretar e de fazer funcionar a economia com o mínimo de intervenção do Estado ou outras instituições colectivas.

Mas, o que é isso de "economia"? Bom, economia é o conjunto de pessoas e respectivas actividades que se destinam à satisfação das necessidades das pessoas. Se pensarem no assunto, compreenderão que economia é praticamente tudo o que as pessoas fazem, mesmo enquanto estão a dormir! Por isso mesmo, tudo o que afecta a economia, afecta a vida das pessoas e afecta tudo o resto que se passa na sociedade. E por isso mesmo Marx dizia que a economia era a infraestrutura social, isto é, aquilo que subjaz e que molda tudo o resto, incluindo as ideias das pessoas. A mim não me restam dúvidas que uma pessoa que nasce e cresce num ambiente abastado tem tendência a ter ideias económicas, políticas... até morais, diferentes de uma pessoa que nasce e cresce num ambiente depauperado.

E o que é isso de "Estado ou outras instituições colectivas"? Bom, na verdade isto não está bem escrito. Porque as empresas são instituições colectivas, e o liberalismo é todo acerca da promoção das empresas. As instituições colectivas a que nos referimos nesta definição de liberalismo são as instituições que são democráticas, isto é, cujo poder é exercido directa ou indirectamente pela maioria das pessoas, e em que cada pessoa tem o mesmo poder que qualquer outra. Uma cooperativa em que cada cooperante tem um voto de igual valor a todos os outros, é uma instituição colectiva deste tipo, ao contrário de uma empresa, onde só os accionistas têm poder, e têm-no de forma desigual, de acordo com o dinheiro que investiram na empresa. O Estado será a instituição colectiva de uma nação inteira e, portanto, do ponto de vista do liberalismo, o alvo preferencial a abater.

A ideia que os defensores do liberalismo tentam transmitir às pessoas é que o abandono das questões sociais à livre iniciativa de cada um, sem a intervenção dessas tais instituições colectivas (a que agora já sabemos que podemos chamar de democráticas), é a melhor forma da sociedade atingir o seu bem-estar máximo. Quanto mais o Estado intervier na economia, isto é, na vida de cada um, mais problemas irão surgir e mais dificilmente maximizaremos o bem-estar de todos.

Baseados nessa premissa, os liberalistas defendem a desregulamentação da economia.

É possível que as pessoas não se sintam muito atraídas pela ideia de uma economia "desregulada"... Isso pode fazê-los pensar em qualquer coisa como "a lei da selva" ou assim... Portanto os liberalistas não afirmam as coisas deste modo. Em vez disso falam-nos em flexibilização. Já não falam de desregulamentação, mas sim de flexibilização, de desburocratização, de incentivos à iniciativa de cada um... enfim, uma data de eufemismos que as pessoas costumam digerir muito melhor e que muitas delas até acabam por ficar convencidas que é mesmo daquilo que gostam.

E para implementarem a sua flexibilização, os liberalistas defendem "reformas estruturais".

E o qual é o conteúdo destas "reformas estruturais"? Bom, é tudo aquilo que conduza à desregulamentação da economia, isto é, tudo o que conduza à supremacia da inciativa individual sobre as decisões colectivas. Assim, as reformas estruturais dos liberalistas (ou liberais... não quero guerras de palavras) incluem, por exemplo:
  • privatização de todas as empresas e instituições detidas pelo Estado. Em Portugal estas reformas têm andado bastante bem. Desde o período "revolucionário" que se seguiu ao 25 de Abril, no qual se procedeu à nacionalização de uma série de instituições, as reformas têm conseguido reprivatizar tudo e mais alguma coisa: transportes, comunicações, energia, saúde, educação, etc.
  • limitação do poder (e se possível extinção... mas isso ainda não conseguiram chegar lá) das estruturas colectivas de representação dos trabalhadores, isto é, dos sindicatos
  • no mesmo sentido, alteração da legislação que regulamenta o trabalho (actualmente o código do trabalho, a lei geral do trabalho em funções públicas e normas acessórias) de modo a isolar os agentes económicos, isto é, as pessoas, no contexto do mercado de trabalho. Ou seja, tudo o que houver para negociar em questões de trabalho é cada vez mais deixado à negociação entre o empregador e o empregado, isolados e sem terem de obedecer a outras regras. Tudo fica entregue à liberdade de cada pessoa... é a imagem que tentam deixar passar. Mas como é que se exerce a liberdade individual quando não há regras e a diferença de poder original é abissal?
  • desmantelamento de instrumentos de política económica de modo que os Estados deixem de ser capazes de intervir nas respectivas economias e tudo passe a depender da soma das vontades individuais condicionadas pelo respectivo poder económico. Incluem-se aqui as integrações em organismos supra-nacionais como a União Europeia, a abertura das fronteiras económicas (e com isso a aniquilação da política alfandegária), a liberalização dos fluxos de capitais, a adesão a moedas únicas (e com isso a aniquilação da política cambial), a adopção de regras de emissão monetária independente da vontade política (como é o caso com o Banco Central Europeu, e com isso a aniquilação da política monetária), o deslize para e a aceitação de sistemas de agiotagem como o que engloba as dívidas públicas soberanas (e com isso a aniquilação da política orçamental), etc.
  • descredibilização dos órgãos máximos do Estado, fazendo as pessoas acreditar que os políticos são todos iguais, que não há alternativas, que os governos não têm poder nenhum sobre nada porque tudo depende da conjuntura económica internacional, da vontade dos EUA, do preço do petróleo, das decisões da União Europeia, etc.
  • afastamento dos centros de decisão das pessoas, concentrando e transferindo o poder das instituições colectivas, como o Estado, para instituições supra-nacionais que a maioria das pessoas não faz ideia do que sejam.
  • etc.
O paradoxo do liberalismo económico é precisamente que todas estas "reformas estruturais" têm de ser implementadas, à força, contra a vontade das populações, para que consigamos atingir finalmente o tão desejado (por alguns!) liberalismo económico!

Os liberais e as pessoas de direita fazem-nos acreditar que o liberalismo é um sistema "natural", um sistema sem imposições, onde as regras que vigoram são apenas as regras que qualquer sociedade, abandonada a si própria, e pela iniciativa de cada pessoa, acabaria por desenvolver. E que esse é o melhor modo de gerir uma economia.

No entanto, isso é redondamente falso! Todas as sociedades humanas, quando abandonadas a si próprias, desenvolvem regras de convivência em sociedade. E em todas essas sociedades, essas regras de convivência em sociedade incluem regras que limitam o poder dos mais poderosos, que incluem elementos de justiça, que são integradoras, que incluem estruturas colectivas democráticas, etc.

Pelo contrário, os sistemas económicos liberais que nos apregoam como sendo naturais são apenas e só o produto das tais "reformas estruturais" que políticos com mão de ferro, como a senhora Thatcher (uma besta de ferro, isso sim, que infelizmente as pessoas continuam a achar admirável) e todos os políticos de direita deste mundo "ocidentalizado", têm implementado, com grandes sacrifícios sociais, desde os anos 70 do século passado. Aqui em Portugal, os responsáveis pela implementação de tal pacote são os que sempre estiveram no governo desde o 25 de Abril: PSD e PS.

(E depois ainda nos querem fazer acreditar que o PS é um partido de esquerda?... Enfim, se perceberam o que disse acerca da descredibilização do sistema político como uma das facetas destas "reformas estruturais", então talvez entendam porque lhes é tão importante manter um partido como o PS a fazer de conta que é "socialista")

Bom... para já continuamos simplesmente com mais do mesmo... porque hoje mesmo, os "media" anunciam que o FMI quer melhores gestores nas empresas portuguesas!...

E como é que pretendem chegar lá, senhores excelsos arautos do liberalismo económico?... Com mais reformas estruturais?... Não seria bom, por uma vez, serem coerentes?... Se defendem o liberalismo, então deixem o liberalismo funcionar!

(Tive de interromper a escrita deste artigo para ir ao hospital. O meu pai teve consulta de pneumologia oncológica de manhã e à tarde terá sessão de hemodiálise. As duas coisas são em pavilhões separados. O meu pai não tem saúde para se deslocar pelos seus meios de um pavilhão para o outro. E, num momento em que hospitais privados equipados com o melhor que há em termos de material crescem que nem cogumelos por todo o lado, este hospital público acaba de anunciar que já não faz o transporte de doentes entre pavilhões!... Obrigado pelas vossas reformas estruturais, filhos da puta da direita económica liberal portuguesa, europeia e mundial!...)

Porque eu também defendo reformas estruturais, sim senhor. Só que ao menos sou coerente, e não defendo liberalismo nenhum! Quando se ama, não se deixa as coisas ao deus-dará! Ou acham que os filhos tornam-se melhores pessoas se abandonadas a si próprias?... As reformas estruturais que eu defendo seriam para criar melhores gestores, sim, mas sobretudo para criar melhores pessoas, que não precisassem de ninguém para as gerir!

segunda-feira, 9 de março de 2015

Tanto mar...

Uma música linda, do Chico Buarque, composta em 1975 para celebrar a revolução (diz que foi!) do 25 de Abril de 1974.



A letra da música foi censurada no Brasil (até 1978), que vivia à época uma ditadura militar. O próprio Chico a falar do assunto, em 1978:


Conforme ele diz, em 1978 "a revolução portuguesa já não é..." Deixou de ser uma revolução, para ser um conjunto de reformazinhas e a preparação de um longo caminho para voltar a pôr tudo como dantes (que, aliás, foi atingido com muito sucesso, conforme podemos verificar hoje em dia, com tudo o que era do Estado privatizado, a lei do mais forte, perdão, do mercado em força, hospitais privados que nem cogumelos, e por aí). Daí a mudança, para a segunda versão deste último vídeo.

Manda novamente algum cheirinho de alecrim!...
:)

Em termos musicais, quero salientar aqui as palmas finais desta segunda versão da música. Se tentarem acompanhar, irão reparar que há algumas mudanças a meio que são difíceis de acompanhar para quem não é experiente em ritmos (como é o meu caso). O tempo é claramente ternário. A questão é que no início das palmas temos duas batidas nos dois primeiros tempos do compasso e depois uma pausa, mas depois passa a uma pausa seguida de duas batidas nos dois últimos tempos do compasso. Representando com O palmas e com _ uma pausa, o que acontece na música é isto:

OO_
OO_
OO_
OO_

OO_
OO_
OO_
O_O

_OO
_OO
_OO
_OO

_OO
_OO
_OO
_O_

OO_
OO_
OO_
OO_

OO_
OO_
OO_
O_O

_OO
_OO
_OO
_OO

_OO
_OO
_OO
_O_

OO_
OO_
...

Tentem ouvir a música a olhar para as bolinhas e tracinhos e acompanhar com palmas nos momentos certos. Podem reparar que a mudança acontece a cada oitavo compasso. Se sentirem isto dentro de vós, ou se souberem contar até 8, e se praticarem um bocadito, poderão acompanhar as palmas sem a ajuda das bolinhas. E é uma sensação porreira acertar com elas nos sítios certos, de cor! :)


De resto, em relação a esta questão de mar, mar, mar e mar... há mar e mar, e há também isto:



Mar

mar...
cheira a mar
mar...
quero o mar
e se as costas me doem
é porque daqui não vejo peixe no mar
daqui não vejo o mar
tanto mar
mar...

sinto o vento a vir
e no mar crescem ondas ...grandes ondas
sinto o vento a vir
o vento a vir do mar

no outro dia,
do mar já não vem nada
é que aqui não se passa nada

e “mar”
já não me diz nada.

---

:) muito bom!...

(mais de TV Rural aqui)

domingo, 1 de março de 2015

Gentes da Terceira, uma vista de olhos...

Os dados apresentados aqui são os que resultam dos Censos de 2011 realizados pelo INE.

A ilha Terceira tinha nesse ano 56437 pessoas. A esse nível, equipara-se a uma cidade como Faro, Guimarães, Évora, Leiria, Viseu ou Aveiro. A ilha está dividida em 30 freguesias conforme a próxima imagem ilustra. As 11 freguesias a Nordeste pertencem ao concelho da Praia da Vitória e as 19 freguesias a Sudoeste pertencem ao concelho de Angra do Heroísmo. Como curiosidade, diga-se que "vitória" e "heroísmo" foram epítetos atribuídos por carta régia de 1837, em reconhecimento do papel que estes locais tiveram na luta entre liberais (de D.Pedro IV) e absolutistas (de D.Miguel) uns anos antes.

A densidade populacional média da ilha é de 138 habitantes por km2. Quando analisamos a densidade populacional por freguesia destacam-se facilmente dois conjuntos de freguesias com maior densidade: um conjunto englobando a cidade de Praia da Vitória e a planície do Ramo Grande e outro conjunto englobando a cidade de Angra do Heroísmo e "arredores".

Esta imagem em cima apresenta um mapa da pluviosidade da ilha Terceira. A imagem anterior apresentava um mapa da altitude. Podemos constatar que existe uma forte correlação entre a altitude e a precipitação. Esta forte correlação estende-se à humidade e à temperatura média anual, conforme as imagens seguintes atestam.

A densidade populacional máxima na Terceira regista-se na freguesia de Santa Luzia (Angra do Heroísmo), com 2296 habitantes por km2. Este valor pode ser comparado com as densidades populacionais mais elevadas do Continente: Amadora - 7363 hab/km2, Lisboa 6446 hab/km2 e Porto 5736 hab/km2.

A densidade populacional mínima regista-se na freguesia da Serreta, com 23 habitantes por km2. Por comparação, as densidades populacionais mínimas no Continente registam-se em grande parte do Alentejo e nas zonas raianas das beiras e Trás-os-Montes, com valores abaixo dos 10 hab/km2.

Conclui-se, portanto, que apesar das concentrações da população em torno dos dois núcleos urbanos da ilha, a população encontra-se distribuída de modo muito mais homogéneo que no Continente.

A idade média da população da Terceira é de 39,3 anos, relativamente mais jovem do que no Continente (42,3 anos). As freguesias com idade média mais elevada são Sé (47,2), Santa Luzia (44,7) e Nossa Senhora da Conceição (43,3), todas de Angra do Heroísmo.

As freguesias com idade média mais baixa são São Mateus da Calheta (35,1), Terra Chã (35,1) e São Bartolomeu de Regatos (35,9). Uma inspecção visual das pirâmides etárias destas três freguesias revela que todas apresentam o mesmo padrão marcado: uma menor quantidade de habitantes com mais de 70 anos, uma "barriga" nas classes etárias entre os 30 e os 39 e muitos jovens com menos de 10 anos de idade. Estes dados permitem especular que as freguesias sofreram um acréscimo populacional significativo nas últimas décadas e que a grande quantidade de crianças resulta da descendência dos adultos em "idade fértil".

Em termos da razão entre homens e mulheres, em toda a ilha existem em média 96 homens para cada 100 mulheres. A maior proporção de mulheres explica-se quase exclusivamente pela sua maior longevidade. Aliás, aproveito para salientar aquilo que é um mito que encontro com bastante frequência: o de que no mundo, ou em Portugal, ou em algum país ou região do planeta, existem muitos mais homens ou muitas mais mulheres... Isso não é verdadeiro, mas em geral é ainda muito menos verdadeiro aquilo que se apresenta como justificação para esse facto. Existem efectivamente alguns locais no planeta onde há algum desequilíbrio. As razões para estes desequilíbrios significativos são todas artificiais: guerras que têm homens como as principais vítimas, infanticídio de mulheres para selecção de filhos homens, etc. No entanto, estes fenómenos são muito localizados. Na esmagadora maioria do planeta Terra, o equilíbrio natural de 1 homem para 1 mulher existe, aproximadamente, e o desequilíbrio que se verifica nos países com esperança média de vida mais elevada resulta simplesmente da maior longevidade das mulheres.

Também na ilha Terceira o desequilíbrio entre homens e mulheres é mais acentuado precisamente nas freguesias com habitantes mais idosos, atingindo o máximo de 82 homens para cada 100 mulheres na freguesia da Sé. A freguesia das Doze Ribeiras, apesar de ter uma população com idade média elevada (42,8 anos) tem um rácio de um homem para cada mulher. Isso resulta de nas classes etárias entre os 35 e os 65 anos de idade existirem consistentemente mais homens que mulheres, uma situação curiosa, para a qual não possuo explicação. Na freguesia dos Altares verifica-se uma situação fora do comum: a idade média dos homens é 2,8 anos superior à idade média das mulheres, muito ao contrário do que acontece em todas as outras freguesias e do que seria expectável. Quando se analisam as respectivas classes etárias, verifica-se que existem idosos dos dois sexos em igual quantidade e que existem muito mais mulheres do que homens na classe etária com menos de 10 anos de idade. Um capricho da natureza?...

Em termos de escolarização, o número médio de anos de escolaridade da população da Terceira é de 7,1. No Continente este valor é de 7,7 anos. Conforme o gráfico anterior mostra, existem grandes disparidades na escolaridade média nas diferentes freguesias. As freguesias com maior escolaridade são São Pedro e Sé que se destacam das demais com 9,4 e 9,3 anos de escolaridade média. Das 8 freguesias com maior escolaridade média 7 são da cidade de Angra do Heroísmo ou arredores, sendo a única excepção a freguesia de Porto Martins.

O gráfico anterior também mostra que a escolaridade média das mulheres é superior à dos homens em quase todas as freguesias da ilha. Se atentarmos ao que se passa a nível do ensino superior, considerando os dois níveis de ensino mais representativos (licenciaturas e mestrados), a diferença entre sexos é ainda maior, existindo 3260 mulheres para apenas 1872 homens com cursos concluídos ou em frequência.

É também possível constatar no penúltimo gráfico que as freguesias com maior proporção de habitantes a frequentar um qualquer nível de ensino são Vila Nova (27,2%), Terra Chã (26%) e Posto Santo (25,2%). Em toda a ilha, este valor é de 20,4%, que compara com 18,8% do Continente. Estes são sinais claros de uma verdadeira revolução cultural que irá necessariamente aumentar muito a escolaridade média de toda a população no futuro, mas que, como qualquer revolução, pode ter efeitos secundários. Neste caso específico penso nas enormes diferenças entre gerações, com avós que muitas vezes não sabem ler ou escrever e netos que são universitários.

Apesar disso, a ilha Terceira ainda está uns pontos abaixo do que se passa no Continente, que provavelmente nem sequer é um bom padrão de referência. De facto, 43,5% da população da Terceira tem no máximo a 4ªclasse, contra 40,8% no Continente, e apenas 10,1% frequentam ou frequentaram o ensino superior, contra 15,4% no Continente.

Se considerarmos a população com cursos superiores concluídos (bacharelatos, licenciaturas, mestrados e doutoramentos) as diferenças entre freguesias tornam-se muito mais evidentes. De tal modo que é possível afirmar que estas diferenças são responsáveis por quase toda a variabilidade entre freguesias no que respeita à escolaridade média.

A presença do polo universitário em Angra do Heroísmo (São Pedro) é certamente uma das causas desta disparidade. No entanto, o último gráfico foi construído com a população que já concluiu cursos superiores, não considerando, portanto, os estudantes. Especulo, assim, que a grande disparidade entre freguesias deve ser também o resultado da disponibilidade de empregos adequados a habilitações superiores, posicionando-se as empresas geradoras dessas oportunidades em torno da cidade de Angra do Heroísmo e ficando a restante ilha relativamente desfalcada.

Discordo veementemente da ligação directa que por todo o lado se tenta fazer entre formação e emprego. Mas sabendo que os próprios jovens fazem essa ligação, suspeito que a ilha da Terceira pode não ter capacidade de reter os jovens recém-formados de agora e dos próximos anos. A ver que outras revoluções nos esperam a esse nível...