sexta-feira, 23 de maio de 2014

Os aviões da bola...

Amanhã, dia 24 de Maio de 2014, ocorrerá em Lisboa um jogo de futebol. O futebol é um jogo onde duas equipas de onze pessoas cada tentam meter uma bola dentro de uma baliza. Por causa disso a cidade será invadida, segundo as notícias desta manhã, por 120.000 pessoas vindas do país do lado.


Essas pessoas chegarão à cidade em carros, comboios, autocarros, barcos, bicicletas, patins e aviões. Segundo as mesmas notícias, só amanhã chegarão ao aeroporto da Portela 740 aviões.

O local do meu trabalho é praticamente contíguo ao aeroporto, e para maior sorte, alinhado com a pista principal. Portanto dou graças a um senhor qualquer por não estar em Lisboa amanhã!... E não será apenas por causa dos aviões!...

Dediquei-me a fazer algumas contas. Com base em informação dispersa na Internet (e não deixa de ser curioso esta informação não estar concentrada, de modo que qualquer cidadão que coloque perguntas a esse respeito encontre respostas claras e rápidas...) tentei calcular quanto é que isso significaria de consumo de combustível só na atmosfera que rodeia as cabeças dos lisboetas.

Os dados seguintes podem e devem ser utilizados para outro tipo de cálculos, portanto penso que são úteis para qualquer pessoa que prefira pensar pelos seus próprios neurónios. Afinal, quase toda a gente sabe que um carro normal consome qualquer coisa como 5 litros de combustível por cada 100 quilómetros, não é verdade?...
  • Um avião de passageiros a jacto, um avião normalíssimo da costa, possui motores com uma capacidade de propulsão máxima de aproximadamente 200 kg por cada passageiro.
  • O consumo de um desses motores é de aproximadamente 0,6 kg de combustível por cada kg de propulsão e por hora, quando à velocidade máxima, e cerca de 0,3 kg quando à velocidade mínima.
Agora façamos as contas, admitindo que os 740 aviões levam em média 200 passageiros cada um e demoram, desde que começam a acelerar para levantar voo até que saem dos céus de Lisboa uns 5 minutos: 740 aviões x 200 passageiros por avião x 200 kg por passageiro x 0,3 kg de combustível por kg por hora x 5 minutos =  740000 kg de combustível.

Se considerarmos que os aviões que descolam também têm de aterrar, vemos que o jogo de futebol vai permitir aos lisboetas respirar os produtos da combustão de mais de um milhão de quilogramas de combustível!...

Mas vá, para que não fiquemos tão alarmados, comparemos isso com o consumo de combustível dos automóveis. Admitindo que há um milhão de automóveis em Lisboa (há mais, podem procurar as estatísticas aqui), que cada um deles anda em média uns 25 km por dia e que consome em média uns 4 kg de combustível por cada 100 km, isso dá precisamente um milhão de kg de combustível por dia.

Portanto os aviões que teremos a mais por causa do jogo de futebol contribuirão tanto para a poluição da cidade como o tráfego automóvel de um dia.

Estes grandes números são assustadores... e devem fazer-nos pensar.

segunda-feira, 19 de maio de 2014

Investimentos públicos em tempo de vacas esqueléticas...

Tenho passado alguns dias nos últimos meses pelas bandas de Matosinhos. Não pude deixar de reparar na colossal picadora 1-2-3 que alguém deixou cair num dos paredões do Porto de Leixões.


Trata-se, vim a saber, de um "terminal" para os muitos milhares de passageiros de paquetes que alguém espera vir a receber no futuro.

Noutro dia, já em Lisboa, deu-me para pensar (erros meus, má fortuna...) sobre o custo daquilo e sobre quem estará a financiar a obra. Ocorreu-me, sabe-se lá porquê, que às tantas era eu mesmo que estava a financiar aquilo!... Fui à procura e descobri que sim, que eu, tu, e muitos outros como nós, andamos a financiar a construção da mega-picadora em betão armado.

"Este projecto, da autoria do Arq. Luís Pedro Silva, com um investimento global na ordem dos 49 milhões de euros, foi financiado pelo Programa Operacional Regional do Norte 2007/2013, no âmbito da Acção Específica de Valorização da Economia do Mar, do Eixo Prioritário II – Valorização Económica de Recursos Específicos, Convite Público para apresentação de Candidaturas – Mar/TC/PCT/1/2009.", conforme se pode ler nesta página do "Porto de Leixões".

Cerca de 50 milhões de euros então, direitinhos dos nossos bolsos e de outros contribuintes da União Europeia. É discutível se precisamos de investimentos deste tipo para podermos viver melhor, se o betão nos torna mais felizes, se os grandes navios a cruzarem os oceanos nos fazem mais saudáveis... O que me parece menos discutível é que no nosso país de hoje em dia obras deste tipo totalmente financiadas com dinheiro dos contribuintes são verdadeiros estandartes das prioridades políticas assumidas pelo nosso governo.

Num país onde falta dinheiro nos hospitais, nas estradas, nas escolas, nas bibliotecas, nas infraestruturas desportivas, nos tribunais, no apoio aos desempregados, aos pensionistas e a sei lá quantas mais pessoas e sei lá quantas mais coisas, num país onde falta tanta coisa essencial, gastam-se milhões e milhões de euros em terminais de luxo para turistas endinheirados?...

Mas há outro aspecto igualmente chocante neste tipo de opções sobre os gastos do dinheiro que é público: é que sistematicamente financiam-se negócios que têm obrigação de ser rentáveis por sua própria conta! É caso para perguntar: o que é que o nosso governo está a fazer?...

Alguns argumentarão que o porto de Leixões é gerido por uma entidade pública e portanto o dinheiro público aí investido irá gerar receitas que também serão públicas. Isto é acreditar que o porto de Leixões irá gerar superavits nos próximos anos que poderão então ser utilizados na protecção social e outras coisas mais prioritárias. Por outras palavras, é acreditar no pai natal!

Não só isso não vai acontecer, como já se está mesmo a ver que a construção irá ser adjudicada à empresa privada tal e tal, depois aquilo irá ser concessionado por 20 anos à empresa privada tal e coiso, para trabalhar em parceria com dezenas de empresas de turismo e restaurantes e bancos e sabe lá mais o quê privado.

Todos os homens de negócios salivam quando há dinheiros públicos a distribuir para o incentivo a isto ou àquilo...


Há menos de meia dúzia de dias o governo anunciou (antigamente tinham vergonha, agora publicitam... é a vantagem de ter uma população bem instruída...) que ia gastar 185 milhões de euros em projectos de 12 empresas para a criação de 401 novos postos de trabalho. Mas reparem como a notícia é transmitida: é o governo que põe o dinheiro, mas são as empresas, em letras garrafais, que investem!... Genial!... Limpeza cerebral em acção!...

E porque é que o governo vai gastar 460 mil euros em cada posto de trabalho dessas 12 empresas?... Reparem que se me dessem a mim 460 mil euros para criar o meu posto de trabalho, eu tinha a vida garantida até à reforma!... O governo vai fazer isso porque, coitadinhas das empresas, elas precisam do apoio do Estado, sem o qual nunca conseguiriam criar os benditos "postos de trabalho"...

Se fosse a mercearia da esquina do Sr. Zé, aí não era preciso qualquer apoio, bem pelo contrário, porque toda a gente sabe que a mercearia do Sr. Zé um potentado económico! Mas como é a coitadinha da Portucel, a pobrezinha da Metal Rolo, SGPS, a indigente Zhejiang Huadong Aço Group, da China, a Sodecia, a Borgwarner Emission e outras que tais, é evidente que o apoio dos contribuintes esfaimados é fundamental!

Mas isso é ainda muito pouco. Que dizer da coitadinha da Autoeuropa? Essa precisa de 677 milhões de euros para criar 500 postos de trabalho. Isso dá para pagar 1000 euros por mês a cada trabalhador durante 112 anos!...

terça-feira, 13 de maio de 2014

A obra e a herança sujas do Passos...

Agora que tudo parece correr bem na relação entre Portugal (o que é isso?) e os mercados financeiros (quem são eles?) é caso para perguntar: e o montante da dívida, afinal diminuiu?...

A resposta:

Querem saber quanto é que está previsto pagarmos nos próximos anos para abater esta dívida? Montantes como 15.000.000.000 € por ano são assustadores? Querem saber o que isso significa no quotidiano de cada um de nós?

Então recomendo fortemente a leitura deste artigo.

Salgalhadas na Lusolândia (4/4)...

Mensagem original


Excerto do capítulo XX de "Salgalhadas na Lusolândia" de José Luís Felix:

Eram 20 horas e iniciavam-se os telejornais. Chegara por fim a hora das declarações do chefe do governo, ansiosamente aguardadas e publicitadas ao longo do dia.
“Lusolandas e lusolandos”, começou ele, solenemente enquadrado por uma bandeira nacional, uma jarra de rosas amarelas e um galo de Barcelos. “Os adversários da estabilidade, dos mais sacrossantos valores pátrios e a gente de todas as oposições não tem descanso.
Levantam calúnias e utilizam o embuste como uma arma de arremesso. Atrevem-se até a insinuar que o nosso governo não tem exercido uma acção sem paralelo nos últimos anos em toda a Europa, para conseguirmos enfileirar entre os melhores actores da acção política na União Europeia.
Os exemplos que podem atestar a nossa actividade são inúmeros, do choque tecnológico ao Programa Acelerex, das Reformas na Função Pública à construção de novos estádios de futebol e auto-estradas, a melhoria da produtividade e a modernização do tecido empresarial lusolando. Todas estas acções se inserem numa estratégia devidamente definida. Nós não nos deixamos arrastar pela demagogia, pelo discurso fácil. Podemos assegurar que só com o esforço de hoje será possível o aumento da riqueza do país e, no futuro, a melhora das condições de vida de todos nós. Principalmente dos menos favorecidos pela sorte, sempre presentes nos nossos corações.
Por isso mesmo posso desde já anunciar-vos duas novas medidas para apoiar os nossos idosos mais desfavorecidos, aqueles que auferem uma pensão inferior a 200 euros. Assim, daqui a 3 meses, todos eles irão beneficiar de um aumento extraordinário de 4 euros mensais.
Além disso todos irão também usufruir de uma medida excepcional da Segurança Social. A cada um será oferecido mensalmente um quilo de arroz e uma asa de frango. O nosso governo está atento às dificuldades sentidas pelos mais desfavorecidos dos nossos concidadãos.
Estas dificuldades resultam, é bom realçar, da conjuntura internacional e do aumento dos preços da energia. Convém recordar que tal situação foi recentemente agravada com a tentativa de realização maciça de shows de sexo ao vivo na Arábia Saudita, o que originou graves inquietações entre os crentes daquele país e o consequente aumento do preço do petróleo.
Também a crise dos mercados financeiros, uma verdadeira hecatombe diabólica, cujo entendimento só está ao alcance das mentes mais capacitadas da complexa ciência económica, não nos deixou de lado.
No entanto, a nossa economia é sólida e resistente a todas as procelas, estejam descansados. Os grandes especuladores, essa gente de maus instintos, que se aproveitam do idealismo dos governantes, não têm cabimento nem entrada na nossa Lusolândia. Tranquilizem-se que o governo está permanentemente atento!
Posso assegurar-vos no entanto que, apesar destes factores negativos provenientes do estrangeiro, não esquecemos aqueles que mais se ressentem da crise dos mercados mundiais. As nossas crianças também serão contempladas com uma medida extraordinária. Cada uma delas terá, já a partir do próximo ano lectivo, uma cesta de fruta todas as semanas, contendo uma laranja, uma banana e um cacho de uvas.
Isto revela o empenhamento do meu governo, apesar das graves dificuldades orçamentais herdadas que, desde a primeira hora, temos combatido. Passado tão pouco tempo já conseguimos alcançar um défice bem inferior à meta dos 3% que as normas comunitárias nos impõem, um facto único na história orçamental da Europa, conseguido em tão pouco tempo. Tudo isto sem esquecer os mais desfavorecidos, como todas as medidas de carácter social que temos tomado bem demonstram, reforçadas agora com as decisões anunciadas.
Quanto ao tema da segurança, tantas vezes invocado pelas oposições da forma mais despudorada, como ainda hoje se viu na Assembleia, num espectáculo indigno dos mais altos valores democráticos que nos norteiam, trata-se de uma falsa questão. A Lusolândia é já um dos países mais seguros do mundo e as medidas que irei anunciar irão consolidar ainda mais a nossa posição no ranking dos países seguros.
Todas as nossas forças policiais colocadas no terreno irão receber novos equipamentos, nomeadamente couraças de couro e aço, cassetetes de grande alcance e armas de raios imobilizantes.
Por outro lado o Governo vai fazer um enorme esforço financeiro e serão abertos imediatamente concursos para a admissão de 6.000 novos polícias nos diversos serviços policiais nacionais.
A investigação e repressão também conhecerão um novo impulso com a entrada em vigor do sistema de outsourcing nos serviços policiais. Toda a actividade administrativa, auxiliar e de guarda das instalações passará a ser executadas por uma empresa multinacional devidamente credenciada nesta área, a Brutal Police, que também nos fornecerá o mais moderno know-how e técnicas avançadas de ataque e investigação da criminalidade. Nesta mesma perspectiva se insere a construção de 5 novas super-prisões, a serem geridas pela Brutal Police, que permitirão alojar 10.000 presos e vender as prisões situadas dentro das maiores cidades do país.
(...)
Foi por esse espírito de missão pelo interesse geral que eu, assim como todos os membros do meu governo, decidimos abraçar a causa pública. Para o bem da nossa Pátria, de uma Lusolândia mais feliz, de acordo com os valores que nos foram transmitidos pelos nossos heróis ao longo da história.
A Pátria não se discute, não permitiremos que os mais sagrados valores da democracia sejam postos em causa por uma dúzia de indivíduos que, certamente mal avisados, decidiram colocar em causa a honrada actividade da política. Não é demais lembrar que, sem acção dos responsáveis políticos, sem o empenhamento dos partidos políticos, sem os garantes da democracia, a existência da nossa civilização não seria possível. Se déssemos ouvidos ao canto de sereia da ignorância, dentro de pouco tempo mergulharíamos no caos, no salve-se quem puder, no homem lobo do homem. Nunca permitiremos que se ponha em causa a grandeza dos partidos políticos, os verdadeiros pilares que garantem uma relação harmoniosa e democrática entre os povos.
Lutaremos com determinação, mas sempre de forma democrática, para impedir o regresso à barbárie e garantir as regras da civilização compreendidas e aceites por toda a sociedade.
(...)”
Todo o restante discurso se pautou pela mesma orientação e o efeito que as palavras do Aristóteles produziram foi esmagador.
Todos aqueles que o ouviram ficaram sensibilizados com a sua sensatez e clarividência. Estes eram também os atributos que, a par da sua condição democrática, os mais encartados comentadores da Lusolândia passaram imediatamente a salientar. O Aristóteles e o seu partido davam a devida resposta aos opositores e os diversos politólogos não lhe poupavam elogios. O velho oráculo professor Fatelo, por exemplo, não se detinha nos encómios e chegou a propor, “Face a esta atitude que revela um enorme sentido das responsabilidades, é chegado o momento do TYD, o meu partido, entrar em negociações com o Arquitecto Aristóteles e o PF para estabelecer um pacto de regime. A pátria tem de estar acima das rivalidades partidárias”. Também o Dr. Vitelinho ficou extasiado face à intervenção do líder do governo, “O Arquitecto Aristóteles Acomodado revela mais uma vez uma enorme capacidade democrática e elevado sentido de estado”. O próprio Mikel Xosa Tavás, um consumado independente, assegurou, “O Aristóteles marcou pontos com esta intervenção, reveladora duma capacidade até aqui insuspeitada, própria de um verdadeiro homem de estado”.
(...)

segunda-feira, 12 de maio de 2014

Salgalhadas na Lusolândia (3/4)...

Mensagem original

Excerto do capítulo XIX de "Salgalhadas na Lusolândia" de José Luís Felix:


(...)
O debate já tinha de facto começado.
No meio de um grande burburinho, discursava na altura o Francisco Matacães, líder do PWD, que a certa altura vociferou, “Os senhores traíram os trabalhadores, estão a criar uma situação insustentável entre vastas massas populares, entre os jovens e os pequenos e médios empresários. Por isso cresce a insegurança, mas esta insegurança é fruto da vossa insensibilidade. Só querem farras e abandonam os valores de Abril. A insegurança alastra e vocês são os responsáveis.
Têm de combater o grande capital e ouvir as aspirações do povo, que estão consubstanciadas nas propostas do nosso Partido. Mas o Arquitecto Aristóteles pratica o autismo em relação aos apelos populares, não lhe interessa a insegurança que grassa entre o nosso povo, não corresponde aos valores da democracia. Não passa de uma marioneta ao sabor dos interesses do grande capital monopolista...”. Nesta altura a confusão estalou e ninguém se entendia.
O Presidente da Assembleia, que se encontrava dormitando confortavelmente, numa atitude beatífica, devidamente acompanhado por mais de uma dezena de confrades das várias colorações partidárias, despertou do seu torpor e, enquanto martelava furiosamente a bancada à sua frente, berrou de forma descomunal, “Silêncio! Silêncio! Silêncio! Silêncio ou mando evacuar a sala. Olhem que eu não estou a brincar, senhores deputados”.
O ambiente serenou e, enquanto os distintos representantes do povo se olhavam assarapantados, o líder do Berloque Sinistro, professor Piscelim, colocando por uma vez fora de acção a sua característica vozinha que parecia provinda do além, berrou, o senhor Aristóteles é uma personagem mefistofélica que persegue os portugueses. O senhor tem de voltar imediatamente para os confins do inferno de onde fugiu para infernizar a vida dos lusolandos!
Esta intervenção lançou o fogo ao capim e os deputados do PF desataram a lançar todos os impropérios do seu vasto arsenal em alta gritaria sobre o chefe do Berloque Sinistro, com a consequente resposta dos seus colegas do Sinistro. Não tardou muito que todos os deputados opostos ao governo se lançassem por sua vez numa barragem de artilharia verbal sobre o chefe do PF. Não podiam de modo algum deixar o protagonismo para o Professor Piscelim, tanto mais que, como bem lembrara o Dr. Picassinos, as televisões estavam a transmitir directamente aquele espectáculo para todo o país.
Esta escalada verbal teve a resposta imediata. Os deputados do PF, convenientemente enquadrados pelo Boneco de Resina, utilizavam os máximos argumentos para desmantelar os adversários, o menor dos quais, berrado em coro por todos eles, proclamava, “Grosseiros! Carroceiros! Grosseiros! Carroceiros!”. O ambiente tornou-se escaldante, todos os deputados berravam e insultavam e, quando o Presidente da Assembleia pediu algum decoro, ninguém o quis ouvir. A gritaria ensandecia completamente as meninges dos representantes do povo e não tardou nada que, contaminados pela febre que se estendia por todo o salão, os visitantes da Assembleia se juntassem a este fervor.
Do alto dos lugares destinados ao público a delegação de desempregados e trabalhadores precários ali presente estendeu uma faixa onde se lia “Queremos viver como gente! Estamos fartos das promessas dos políticos!”, enquanto gritavam “Nem políticos nem capital! Demagogos! Demagogos!” De imediato se lhes juntou uma delegação de representantes da polícia, também sentada naquela tribuna, que, a exemplo dos primeiros, também levantou uma faixa que dizia, “Sem melhores condições não podemos exercer a autoridade”, e berravam em coro perfeito numa forma surpreendentemente afinada, “Sem melhor rendimento a polícia não actua a todo o momento!”, “Sem melhores cacete e couraça a nossa acção não tem graça!”.
A atmosfera tornou-se irrespirável, todos berravam a plenos pulmões e ninguém se entendia. O Presidente da Assembleia martelava com força, mas em vão, até que, também ele de cabeça perdida, assentou o martelo na tábua à sua frente, com a máxima força que as suas banhas ainda podiam desenvolver. Através deste expediente arrancou gigantescos sons audíveis a centenas de metros, uma, duas, três vezes, sem que os antagonistas à sua frente se comovessem, até que, por fim, um embate ainda mais violento teve um resultado inesperado. A força bruta das pancadas deixou-lhe ficar apenas o cabo na mão, enquanto o martelo voava por sobre as cabeças dos membros do governo e realizando uma surpreendente trajectória foi-se abater sobre a bancada parlamentar em frente, a do XDS. Aqui rasou perigosamente o capachinho do Dr. Picassinos e foi repousar no cadeirão da fila de trás. Era o lugar do Engenheiro Eugénio Bacamarte, que felizmente se encontrava ausente na ocasião. O prestigiado parlamentar, figura de proa do XDS, presidente da Marcenaria Democrática, rival da sua homóloga Lusitana, com larga influência nos negócios Palopianos, encontrava-se no Bar. Dirigira-se para lá havia já mais de uma hora, onde na companhia de algumas dúzias de colegas das diferentes bancadas e de umas goladas de whisky velho assistia a um jogo de futebol da selecção portuguesa. O entusiasmo reinante entre os clientes do Bar só tinha equivalente na apologia da selecção nacional, prodigalizada nos anúncios das mais prestigiadas empresas, que não perdiam a ocasião de lembrar à população, através dos mais diversificados meios de informação, que o bom povo português não podia deixar de erguer a bandeira nacional para apoiar esta gesta da equipa nacional de futebol, a “de todos nós”, como relembravam a cada instante.
As maiores empresas a operar no país, como os Hipermercados Incontinente, a Cerveja Sabes, a Caixa Geral de Repolhos, o Banco do Espírito Tonto, a TNT, a petroleira Golp e a Koka-Koka, patrocinavam a façanha que abalava todos os lusolandos.
Com este incidente, o ambiente tornou-se ainda mais pesado. Por sorte o voo do martelo não atingira o velho engenheiro, devido à sua feliz ausência, ou por intervenção divina, “devido a mais um milagre da santa”, como iria assegurar mais tarde o Picassinos, mas as altercações parlamentares cresciam a cada instante e ameaçavam transformar aquele debate parlamentar numa pura agonia.
(...)

sexta-feira, 9 de maio de 2014

Salgalhadas na Lusolândia (2/4)...

Mensagem original

Excerto do capítulo XVI de "Salgalhadas na Lusolândia", de José Luís Felix:


(...)
Com esta revelação gerou-se um alvoroço crescente entre os circunstantes, e com tal rapidez ele crescia, acompanhado, temos de reconhecê-lo, por um temor difuso, inquietante para todos os presentes, que o Aristóteles se sentiu na obrigação de acalmar os espíritos da sua gente, “Calma, Calma! Calma meus amigos e minha amiga!”. Face às suas palavras sucedeu um fenómeno não inédito mas sempre digno de observar. Aquelas doutas criaturas foram abandonando o remexer e o cacarejar que as possuía e, aos poucos, deixaram-se vogar para o paraíso que povoa as mentes e os corações dos poderosos e dos pobres de espírito.
“Temos um plano bem concebido para fazer abortar todas estas veleidades e vamos levá-lo à prática. Com êxito garantido, posso-vos assegurar! Nós temos a coragem indispensável para executar os consertos necessários e meter essa gente na ordem. Bem podem manifestar-se que não iremos desistir, prosseguiremos sem nos perturbarmos, insistiremos com valentia, até atingirmos todos os nossos objectivos. Não daremos um passo atrás, nem mesmo que realizem uma manifestação com cinco milhões de pessoas. Afinal depois destas manifestações regressam todos a casa e acaba-se tudo.
Seguem-se, é verdade, as tradicionais negociações com os chefes da oposição, mas esse é o nosso terreno privilegiado. Não devemos esquecer-nos disso”.

(...)

“Será anunciada publicamente quanto tivermos a nossa reunião de governo em mangas de camisa no Allgarve. Iremos lançar uma obra prodigiosa no domínio dos transportes. O metro do Allgarve, de Vila Real de Santo António a Sagres, que irá resolver os problemas das estradas congestionadas com que se deparam os nossos turistas. Esta será a obra do século, o maior metro do mundo, que muito honrará o nome da Lusolândia”.
A audiência ficou siderada com esta revelação. Boquiabertos olhavam-se uns aos outros e, mudos de espanto, não proferiam palavra. Assim permaneceram largos momentos, baloiçando entre a incredulidade e o divertimento, até que o mais pragmático entre eles, o José Cifrão, Ministro da Aritmética, inquiriu tonitruante, “Mas, se isto é verdade vai custar somas inauditas. Como é possível metermo-nos em semelhante empreendimento, ainda para mais com as finanças públicas depauperadas?”.
Ainda não tinha acabado e já lhe respondia o Aristóteles, com cara de poucos amigos, que as dúvidas nunca lhe agradavam, “Não há nada mais sério do que este projecto. Trata-se de uma operação público-privada, na qual o consórcio que ganhar o concurso ficará concessionário da linha durante 90 anos. Os custos da execução da obra ficarão a cargo das empresas vencedoras com o apoio do estado”.
“Mas, mesmo assim, onde é que essas companhias vão conseguir as somas necessárias para encargos tão vultuosos?”, insistiu o Ministro da Aritmética. “Na banca, naturalmente”, ripostou o outro orgulhoso, “O Governo dará todas as garantias que a banca precisar e adiantará também as quantias relativas às receitas previstas durante os primeiros 30 anos de exploração. Posso ainda adiantar que esperamos que o retorno do investimento seja obtido após os primeiros 20 anos de exploração e que estes investidores estarão isentos de encargos fiscais durante os 40 anos iniciais do investimento. Para assegurar a boa execução de todo o projecto já temos negociações muito adiantadas com o administrador da grande empresa de obras públicas SOBETÃO, o nosso bom amigo dr.Jonas Capitone, bem como com o Engenheiro Verdete, Administrador do Banco dos Crentes.
“Mas assim o Estado é que paga tudo”, atreveu-se o Ministro da Felicidade.
“Deixemo-nos de demagogias também entre nós. Todos sabemos que o Estado não tem vocação para gerir um empreendimento desta natureza. O que se torna importante é encontrar uma empresa de elevado gabarito para um empreendimento desta dimensão”, fulminou o chefe do governo.
Tudo parecia esclarecido, mas o Ministro da Aritmética não pensava assim. Possuído pelo seu espírito de contabilista remoía contas e mais contas no seu íntimo, como o seu olhar abracadabrante denunciava, até que, não conseguindo mais conter-se, explodiu, “E o défice, o défice o que vai acontecer-lhe? Sim, porque assim o Estado vai aumentar enormemente as suas despesas e lá se vão as contas e o tecto dos 3% de défice que a União Europeia nos impõe. É tudo muito bonito, mas não podemos aguentar despesas desta ordem”.
“Mas podemos reduzir noutras despesas para compensar”, garantiu o Aristóteles de sorriso aberto. Já está tudo pensado, agora só faltam os pormenores que de tu próprio irás tratar. Por exemplo, vamos cortar mais com os funcionários públicos. Nos próximos 5 anos teremos de colocar 100.000 deles na rua. Nesse período também iremos reduzir enormemente as despesas com os serviços públicos. Serão abolidas todas as actividades do estado em localidades com menos de 50.000 habitantes, com excepção dos serviços de segurança, claro está. Além disso serão extintos todos os serviços públicos situados nas localidades a mais de 100 quilómetros do mar. Já viram bem o que iremos poupar com estas medidas?”
Semelhante pergunta obteve uma resposta unânime, a alegria manifesta que transparecia no rosto de todos. A boa disposição reinava entre os ministros, com excepção do Ministro da Aritmética que insistiu, “Mas será essa contenção de despesas suficiente? Convinha também obter alguma receita extraordinária”.
O chefe de governo não desarmou e adiantou, “Também já pensámos nisso. Oh Pedro Goulão, tu que participaste em tudo isto, explica lá o que se prevê sobre esta questão”.
O Ministro da Pátria não hesitou e apressou-se a corresponder às instruções do seu líder, “Bem, a solução encontrada é muito simples.
Para obtermos uma arrecadação fiscal considerável teremos de lançar um novo imposto. Por isso admitimos criar o imposto pedonal. Cada indivíduo que ande pelas ruas, em deslocações que não estejam ligadas à sua actividade profissional, terá de pagar um imposto, o imposto pedonal, proporcional à distância percorrida. Todos os pormenores para levar à prática estas inovadoras orientações na área fiscal serão naturalmente do pelouro do Ministério da Aritmética”.
Todos os presentes se mostravam entusiasmados com as palavras do titular da Pátria e os seus olhares dirigiram-se imediatamente na direcção do confrade da Aritmética. O José Cifrão sorriu-se e declarou com a solenidade que o caracterizava, “Caros companheiros é necessário dar os parabéns ao nosso grande líder. Mais uma vez o Arquitecto Aristóteles demonstrou a sua soberba imaginação. Desta vez no domínio da fiscalidade, uma área em que a criatividade se torna cada vez mais necessária e é bem difícil, eu que o diga. Pois muito bem, o Ministro da Aritmética terá o máximo orgulho em contribuir para a implementação deste original projecto. Contem comigo, meus amigos e minha amiga!”.
O ambiente parecia finalmente tranquilo, todos se felicitavam pelas medidas propostas. Apenas a Ludovina Ranholas colocou mais uma vez o dedo e o nariz no ar e advertiu, “Mas os colegas já viram que desse nome, Metropolitano Regional do Allgarve, irá resultar uma sigla horrorosa, que se pode prestar a todo o tipo de trocadilhos. Sim, porque a sigla será MERDAL, nem mais nem menos”.
(...)

quinta-feira, 8 de maio de 2014

Salgalhadas na Lusolândia (José Luís Felix)...

O livro do Zé Luís, companheiro que não cheguei a conhecer tão bem como devia, mas de que conheci o amor à emancipação de todos, no sentido mais profundo que a palavra pode ter.

Este livro, "Salgalhadas na Lusolândia", foi publicado, tanto quanto sei, em 2009. Mas poderia ter sido escrito e publicado em qualquer outro ano. Infelizmente as semelhanças entre o que nele é retratado e as realidades de muitos países e em muitas épocas não é coincidência nenhuma. Felizmente o Zé Luís incita-nos à reflexão através do humor... ou será que somos nós que precisamos desse humor como arma de defesa?...

O título do livro predispõe-nos... Os trocadilhos com o Aristóteles Acomodado e os Hipermercados Incontinente acentuam o carácter humorístico... Mas pergunto-me se o título fosse outro e esses trocadilhos não estivessem lá, se chegaríamos sequer a reparar na enorme quantidade de críticas tão profundas quanto subtis que o Zé Luís nos oferece, como oportunidades para olharmos para a nossa realidade com outros olhos.

Um livro que recomendo, sobretudo se for lido com vontade de questionar tudo, incluindo aquilo que consideramos mais estrutural na nossa sociedade e em nós mesmos, mesmo que o estilo nos faça às vezes querer lê-lo de uma só leva.

Irei deixando aqui, neste e noutros três artigos que se seguirão, excertos de alguns capítulos.

Capítulo XIII

(...)
O Ministro da Felicidade, sem esconder o incómodo com a exigência do seu líder, apressou-se a esclarecer a distinta plateia.
O Acelerex era um programa governamental destinado a aumentar a produtividade do trabalho, numa tentativa de conseguir que os trabalhadores se dedicassem de forma absoluta às suas tarefas, e permitir deste modo o acréscimo do volume de produção em todos os domínios.
Os trabalhadores teriam de se adaptar às necessidades da empresa, trabalhando se necessário 20 horas consecutivas e ficando inactivos dias inteiros sempre que não fossem necessários os seus préstimos.
A remuneração obtida passaria a ser medida pelas horas de trabalho efectuadas.
“Vocês sabem como é difícil persuadir os nossos trabalhadores a entregarem-se de corpo e alma às suas actividades profissionais, a dedicarem a sua vida exclusivamente à empresa.
As dificuldades encontradas são de tal ordem, com protestos, absentismo, falta de entrega completa à actividade e até sabotagens, que me vi forçado a dirigir-me eu próprio ao terreno, com o intuito de persuadir o mundo do trabalho a identificar-se com os nossos objectivos. O Acelerex destina-se principalmente a aumentar a rentabilidade empresarial, que assim, através da obtenção de mais-valias suplementares, poderá, quem sabe, num futuro, vir a melhorar as condições de remuneração do seu pessoal.
(...)”

O que fazer com tudo isto...

 
 
obrigado.
talvez passe.
embora distracções é coisa que nunca falta, e eu nem sequer tenho tempo para sentar e dedilhar o piano, quando na verdade preciso é de parar, deitar na cama sem nada para fazer, nada, nada, nada, nada... olhar para o tecto na esperança de que não tivesse rachas e fosse um branco ainda mais monótono, para depois, por osmose, e já sem a pressão da cor em cima de mim, começar a deixar sair, a tingir, a pintar, poder então olhar para mim e começar a pensar o que fazer com isto tudo.

quarta-feira, 7 de maio de 2014

O dia da mãe...

Por Elaine Wragg, no dia 3 de Maio de 2014, no Retiro da Fraguinha, entre São Pedro do Sul e Arouca.


Entrevista de trabalho...

(sem comentários. fonte)