Mensagem original
Excerto do capítulo XX de "Salgalhadas na Lusolândia" de José Luís Felix:
Eram 20 horas e iniciavam-se os telejornais. Chegara por fim
a hora das declarações do chefe do governo, ansiosamente aguardadas e
publicitadas ao longo do dia.
“Lusolandas e lusolandos”, começou ele, solenemente
enquadrado por uma bandeira nacional, uma jarra de rosas amarelas e um galo de
Barcelos. “Os adversários da estabilidade, dos mais sacrossantos valores
pátrios e a gente de todas as oposições não tem descanso.
Levantam calúnias e utilizam o embuste como uma arma de
arremesso. Atrevem-se até a insinuar que o nosso governo não tem exercido uma
acção sem paralelo nos últimos anos em toda a Europa, para conseguirmos
enfileirar entre os melhores actores da acção política na União Europeia.
Os exemplos que podem atestar a nossa actividade são inúmeros,
do choque tecnológico ao Programa Acelerex, das Reformas na Função Pública à
construção de novos estádios de futebol e auto-estradas, a melhoria da
produtividade e a modernização do tecido empresarial lusolando. Todas estas
acções se inserem numa estratégia devidamente definida. Nós não nos deixamos
arrastar pela demagogia, pelo discurso fácil. Podemos assegurar que só com o
esforço de hoje será possível o aumento da riqueza do país e, no futuro, a
melhora das condições de vida de todos nós. Principalmente dos menos
favorecidos pela sorte, sempre presentes nos nossos corações.
Por isso mesmo posso desde já anunciar-vos duas novas
medidas para apoiar os nossos idosos mais desfavorecidos, aqueles que auferem
uma pensão inferior a 200 euros. Assim, daqui a 3 meses, todos eles irão
beneficiar de um aumento extraordinário de 4 euros mensais.
Além disso todos irão também usufruir de uma medida
excepcional da Segurança Social. A cada um será oferecido mensalmente um quilo
de arroz e uma asa de frango. O nosso governo está atento às dificuldades
sentidas pelos mais desfavorecidos dos nossos concidadãos.
Estas dificuldades resultam, é bom realçar, da conjuntura
internacional e do aumento dos preços da energia. Convém recordar que tal
situação foi recentemente agravada com a tentativa de realização maciça de
shows de sexo ao vivo na Arábia Saudita, o que originou graves inquietações
entre os crentes daquele país e o consequente aumento do preço do petróleo.
Também a crise dos mercados financeiros, uma verdadeira hecatombe
diabólica, cujo entendimento só está ao alcance das mentes mais capacitadas da
complexa ciência económica, não nos deixou de lado.
No entanto, a nossa economia é sólida e resistente a todas
as procelas, estejam descansados. Os grandes especuladores, essa gente de maus
instintos, que se aproveitam do idealismo dos governantes, não têm cabimento
nem entrada na nossa Lusolândia. Tranquilizem-se que o governo está
permanentemente atento!
Posso assegurar-vos no entanto que, apesar destes factores
negativos provenientes do estrangeiro, não esquecemos aqueles que mais se
ressentem da crise dos mercados mundiais. As nossas crianças também serão
contempladas com uma medida extraordinária. Cada uma delas terá, já a partir do
próximo ano lectivo, uma cesta de fruta todas as semanas, contendo uma laranja,
uma banana e um cacho de uvas.
Isto revela o empenhamento do meu governo, apesar das graves
dificuldades orçamentais herdadas que, desde a primeira hora, temos combatido.
Passado tão pouco tempo já conseguimos alcançar um défice bem inferior à meta
dos 3% que as normas comunitárias nos impõem, um facto único na história
orçamental da Europa, conseguido em tão pouco tempo. Tudo isto sem esquecer os
mais desfavorecidos, como todas as medidas de carácter social que temos tomado
bem demonstram, reforçadas agora com as decisões anunciadas.
Quanto ao tema da segurança, tantas vezes invocado pelas
oposições da forma mais despudorada, como ainda hoje se viu na Assembleia, num
espectáculo indigno dos mais altos valores democráticos que nos norteiam,
trata-se de uma falsa questão. A Lusolândia é já um dos países mais seguros do
mundo e as medidas que irei anunciar irão consolidar ainda mais a nossa posição
no ranking dos países seguros.
Todas as nossas forças policiais colocadas no terreno irão
receber novos equipamentos, nomeadamente couraças de couro e aço, cassetetes de
grande alcance e armas de raios imobilizantes.
Por outro lado o Governo vai fazer um enorme esforço
financeiro e serão abertos imediatamente concursos para a admissão de 6.000
novos polícias nos diversos serviços policiais nacionais.
A investigação e repressão também conhecerão um novo impulso
com a entrada em vigor do sistema de outsourcing nos serviços policiais. Toda a
actividade administrativa, auxiliar e de guarda das instalações passará a ser
executadas por uma empresa multinacional devidamente credenciada nesta área, a
Brutal Police, que também nos fornecerá o mais moderno know-how e técnicas
avançadas de ataque e investigação da criminalidade. Nesta mesma perspectiva se
insere a construção de 5 novas super-prisões, a serem geridas pela Brutal
Police, que permitirão alojar 10.000 presos e vender as prisões situadas dentro
das maiores cidades do país.
(...)
Foi por esse espírito de missão pelo interesse geral que eu,
assim como todos os membros do meu governo, decidimos abraçar a causa pública.
Para o bem da nossa Pátria, de uma Lusolândia mais feliz, de acordo com os
valores que nos foram transmitidos pelos nossos heróis ao longo da história.
A Pátria não se discute, não permitiremos que os mais
sagrados valores da democracia sejam postos em causa por uma dúzia de
indivíduos que, certamente mal avisados, decidiram colocar em causa a honrada
actividade da política. Não é demais lembrar que, sem acção dos responsáveis
políticos, sem o empenhamento dos partidos políticos, sem os garantes da
democracia, a existência da nossa civilização não seria possível. Se déssemos
ouvidos ao canto de sereia da ignorância, dentro de pouco tempo mergulharíamos
no caos, no salve-se quem puder, no homem lobo do homem. Nunca permitiremos que
se ponha em causa a grandeza dos partidos políticos, os verdadeiros pilares que
garantem uma relação harmoniosa e democrática entre os povos.
Lutaremos com determinação, mas sempre de forma democrática,
para impedir o regresso à barbárie e garantir as regras da civilização
compreendidas e aceites por toda a sociedade.
(...)”
Todo o restante discurso se pautou pela mesma orientação e o
efeito que as palavras do Aristóteles produziram foi esmagador.
Todos aqueles que o ouviram ficaram sensibilizados com a sua
sensatez e clarividência. Estes eram também os atributos que, a par da sua
condição democrática, os mais encartados comentadores da Lusolândia passaram
imediatamente a salientar. O Aristóteles e o seu partido davam a devida
resposta aos opositores e os diversos politólogos não lhe poupavam elogios. O
velho oráculo professor Fatelo, por exemplo, não se detinha nos encómios e
chegou a propor, “Face a esta atitude que revela um enorme sentido das
responsabilidades, é chegado o momento do TYD, o meu partido, entrar em
negociações com o Arquitecto Aristóteles e o PF para estabelecer um pacto de
regime. A pátria tem de estar acima das rivalidades partidárias”. Também o Dr.
Vitelinho ficou extasiado face à intervenção do líder do governo, “O Arquitecto
Aristóteles Acomodado revela mais uma vez uma enorme capacidade democrática e
elevado sentido de estado”. O próprio Mikel Xosa Tavás, um consumado
independente, assegurou, “O Aristóteles marcou pontos com esta intervenção,
reveladora duma capacidade até aqui insuspeitada, própria de um verdadeiro
homem de estado”.
(...)