sexta-feira, 24 de dezembro de 2010

Os operários do Natal



Disco de vinil que os meus pais compraram para mim e para o meu irmão há uma data de anos. Ouvi muitas e muitas vezes. Continuo a ouvir. Tem um pedaço do Natal como eu gostaria que ele fosse (exceptuando a história do lenhador!...). Vale a pena!

As músicas foram retiradas do LP original (original para mim!) e portanto têm muita batata frita, que é como chamo ao ruído característico dos discos de vinil...

1 - Os pais

2 - O lenhador

3 - A costureira

4 - Os carteiros

5 - Os palhaços

6 - O pasteleiro

7 - Os vendedores

8 - Os amigos

terça-feira, 21 de dezembro de 2010

Na senda das desgraças...

...mas a ver se se faz luz!

Mais uma vez a Raquel Freire, que eu não conheço, a dizer coisas que fazem todo o sentido... (Apesar de ter feito o Camões dar umas voltas no túmulo... E ao Zé Mário o que o safa é ele provavelmente não ter reparado!)

Ouçam lá.

terça-feira, 7 de dezembro de 2010

Desigualdades, xenofobias e o que se vai passando no nosso parlamento...

Queria partilhar isto convosco. São 7 minutos de uma conversa, estranhamente interrompida no momento em que as críticas se tornavam mais directas e incómodas (Deus não anda distraído), que ouvi esta manhã na Antena1.

Em particular, gostava de chamar a atenção para esta questão dos impostos sobre os dividendos. Para quem não está ao corrente, o governo aprovou recentemente legislação no sentido de aumentar os impostos sobre os dividendos. A legislação irá entrar em vigor em 2011. Os dividendos, outro nome para os lucros das empresas, são acumulados ao longo do ano e o seu destino é decidido pelos accionistas normalmente no início do ano seguinte. Um dos destinos dos dividendos pode ser o reinvestimento. Outro pode ser a constituição de reservas. Outro ainda pode ser a distribuição pelos accionistas. Se se decidir pela distribuição dos dividendos pelos accionistas, ela ocorre normalmente lá para o segundo trimestre do ano seguinte a que respeitam.

O normal seria então que a nova legislação aumentasse a tributação sobre os dividendos distribuídos em 2011, que teriam sido acumulados pelas empresas ao longo de 2010. Ao saber disto, as grandes empresas trataram logo de antecipar a distribuição desses dividendos. O que normalmente seria distribuído lá para Abril de 2011 vai então ser distribuído agora em Dezembro de 2010, evitando assim o aumento de impostos.

Perante isto, surge uma proposta legislativa do PCP para impedir essa fuga legal aos impostos. E perante essa proposta, o PS, o PSD e o CDS/PP votaram contra, permitindo essa fuga.

Podemos não gostar de impostos. A questão não é essa. A questão é que, por motivos cuja análise seria do maior interesse, o Estado português precisa de arrecadar dinheiro e de conter os gastos. E num contexto em que quase todos apertam os cintos, os grandes accionistas, que fazem dinheiro a falar ao telefone, a carregar em botões ou a fazer simplesmente nada, podem refastelar-se com as suas gordas maquias pagando muito menos que todos os outros.

O caso é notável porque não são assim tão comuns as vezes em que os rabos de fora desses três partidos - PS, PSD e CDS/PP - são tão evidentes. Eles protegem, desta forma escandalosa, os interesses dos mais favorecidos, e a população adormecida vai dizendo que está bem, está bem...

Acordai!

quinta-feira, 11 de novembro de 2010

Inside Job...



(é melhor ver o trailer no site do filme)

Recomendo vivamente. É um documentário sobre a roubalheira financeira nos estados unidos e um pouco do seu impacto nos outros países. Para quem viu o "capitalismo" do michael moore, este está muito melhor.

A mensagem final do filme é: cuidado, que os senhores que fizeram estas parvalheiras continuam aí, nos mesmíssimos sítios, prontos para mais...

No entanto, há uma coisa importante que falta a todos estes filmes sobre a famigerada crise: a ligação entre eles e nós. Nos filmes as coisas são sempre um pouco simplificadas. A responsabilidade fica sempre com uns bacanos que são os maus e que fazem as coisas más. Resta saber como é que nós partilhamos dessa responsabilidade. Porque partilhamos!

Como é que nós permitimos que coisas destas acontecessem? Como é que continuamos a permitir que aconteçam?... Quantos de nós gostaríamos de ter estado do lado dos espertalhões que se safaram com alguns ou muitos milhões?... Como é que isto poderia ou pode, porque é ainda perigosamente actual, ser de outra forma?

Sem dúvida, há que olhar para o mundo e para os outros com olhos de ver, mas se calhar também devíamos focar esses mesmos olhos, mais aguçados talvez, no nosso próprio umbigo. Numa das tiras do Calvin de que mais gosto ele dizia: não há problema que seja tão mau que não possa ficar ainda pior com um pouco de culpa.

É fundamental encontrar a raiz das coisas. Sem isso, estaremos sempre a discutir paliativos. A descoberta de que a raiz de um problema está (no todo ou em parte) no nosso umbigo devia alegrar-nos, porque isso significa que a solução para ele, a existir, também nos pertence.

quarta-feira, 3 de novembro de 2010

Magia: como fazer gato-sapato das pessoas...



Tal e qual! :)

sexta-feira, 29 de outubro de 2010

Cartaz da câmara de Lisboa no Campo Grande...

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Isto foi há uns três quinze dias.

Há quatro anos era assim...

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2006.

32 anos.

E a mesma sensação de vazio.

Esta mesma sensação de estar só.

Nem amigo, nem companheiro, nem camarada.

Nem quem nos compreenda, nos aceite e nos apoie,

nem mestre que nos guie nesta falta de sentido.

Segui, pelos meus próprios passos

e pela minha própria vontade

o meu próprio caminho.

Ninguém me disse para vir por aqui.

Ninguém me mandou para longe.

Bem pelo contrário.

Fui eu que quis vir.

Porquê?

Olho em volta. É escuro.

É escuro por cima e a toda a volta.

A lama que me prende os pés é também escura e fria.

Nela estou de pé, descalço, perdido e só.

Cheguei aqui caminhando confiante

de peito feito e cabeça levantada,

certo de descobrir novos caminhos,

certo de fazer novos caminhos,

de os deixar para quem vier.

Conduziram-me sempre os meus sonhos

e a esperança de chegar ao outro lado.

Dizia bem alto para todos ouvirem

que o caminho podia ser duro,

mas só aceitando o sofrimento se podia chegar ao outro lado.

E dizia que no outro lado a vida era melhor.

E agora é tudo escuro.

Quando paro e olho em volta

é tudo escuro e frio.

E estou só.

Nem as minhas pegadas as posso ver

que a lama já as recobriu.

Não há mesmo caminho.

Nem para trás, nem para diante.

Ninguém veio comigo.

E agora já ninguém pode seguir as minhas pegadas.

Aqui onde me encontro,

só eu mesmo me posso preencher.

A fonte imensa que sempre senti em mim

e que julgava ser para os outros, para todos,

não é afinal para mais ninguém,

a corrente imensa que de mim brota

e que me faz mover nesta existência autista.

Às vezes voo para longe. Voo. Vou para longe do meu corpo

e deste lamaçal. Vou à procura.

O desperdício da corrente que de mim brota

directamente para a lama,

a água cristalina que num instante se torna suja,

dá-me às vezes forças de procurar quem a queira.

Vou à procura de quem dela queira, de quem dela necessite.

E voo para o dia. E encontro gente atarefada.

Gente que parece saber bem o que quer e como o conseguir.

Correm daqui para acolá, são sérios, fazem coisas importantes

e assumem as suas responsabilidades. Vestem-se a rigor, acordam a horas,

fazem como é suposto e garantem que os outros também fazem como eles supõem.

Conhecem os perigos da subida do preço do petróleo,

das flutuações nos mercados de futuros,

da baixa taxa de natalidade,

da imigração clandestina,

do défice orçamental,

dos incêndios,

da falta de qualificação,

da sustentabilidade do sistema de saúde público,

da queda de granizo e dos acidentes de viação.

Protegem-se bem. Casam. Trabalham. Têm filhos. Trabalham. Investem.

Protegem-se com seguros, airbags, pprs, portas blindadas, currículos fantásticos.

E aparentemente estão bem.

Não fosse eu ver bem para lá das aparências

e tudo o resto me surpreenderia.

Surpreender-me-ia como me querem

quando suspeitam o que cá dentro tenho para lhes dar.

Como querem o meu ombro, o meu ouvido,

o meu braço forte e o afago da minha mão.

Como querem a minha corrida de um lado para o outro,

como me querem dentro da sua corrida

e a correr ao seu lado.

Mas não me surpreende.

E dou. Dou-me a quem mais me quer.

O ombro, o ouvido, o braço forte.

E quando depois do meu esforço,

quantas vezes exausto,

me retiro,

o que fica para quem fica é apenas a minha retirada.

Do que dei, daquilo que sentia dentro de mim a querer sair,

do esforço do meu voo, da minha procura e da minha entrega,

o que fica é um pouco da muita água antes cristalina

agora protegida com E-224

dos medos de quem a guarda.

E quando me retiro, cansado,

todos perguntam “porquê?”, “para onde?”…

Para dentro de mim. Para os meus sonhos.

Para o caminho que sozinho construo.

Querem vir?...

Não, não querem.

Zangam-se comigo por os deixar.

Olho em volta.

Tudo escuro e frio.

Ninguém.

Olho para o chão.

A água outrora límpida agora barrenta e misturada com a lama.

“Que diferença faz?” – pergunto a mim mesmo.

Aqui ao menos é livre.

Mas não é como eu a queria.

Nem aqui nem lá, por onde às vezes voo.

Eu queria a minha fonte ininterrupta

a matar a sede num mundo mais justo

a correr nos regatos de um mundo mais calmo

a mover os moinhos dum mundo mais limpo

a encher de energia um mundo mais alegre

a repartir-se nos regos dum mundo mais solidário

a encher os lagos dum mundo mais belo

e

nas suas superfícies espelhadas

a reflectir caras de pessoas mais fortes.

“Que diferença faz?... Ao menos aqui é livre…”

32 anos. E a mesma sensação de vazio.

Vou embora!

Estou farto!

Levanto voo como posso e vou.

Vou à procura de outro eu.

Compro um cachecol da selecção das quinas,

vou até à beira mar,

vejo televisão,

como pizza,

acelero na estrada,

durmo pouco,

e trabalho,

e bebo,

e trabalho,

e vou aos encontros,

e cumprimento as pessoas

no trabalho,

e vou às compras

e cumprimento as pessoas

que trabalham.

A minha roupa, cuidado! O meu cabelo, a minha pele… Cuidado com o bronzeado à trolha! O meu carro, sujo?... O curso em cinco anos, se faz favor!

Ignoro as bombas na palestina,

ignoro quem me insulta no trânsito,

ignoro quem me conta como foge aos impostos

e vibro com a selecção,

grito “Viva Portugal!”

e corro atrás das promoções

gasto dinheiro,

ganho dinheiro

gasto dinheiro,

ganho dinheiro,

troco o meu tempo por coisas e coisinhas,

troco o meu esforço pelo mundo dos outros,

vendo-me, com tudo o que tenho, por um pedaço de nada.

Vazio?...

Prefiro gostar de mim.

Na minha lama tenho mais tempo. E gosto mais de mim.

Sofro, é certo.

Mas de que me adianta voar, se eu mesmo

nunca deixarei de me acompanhar nos meus próprios voos?


AWF, Valongo, 4 de Julho de 2006

quarta-feira, 27 de outubro de 2010

Descubra o erro...

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O que é bom para a economia é bom para nós.

A competitividade é boa para a economia.

A redução de salários aumenta a competitividade.

Logo a redução de salários é boa para nós.

terça-feira, 19 de outubro de 2010

A felicidade...

Na semana passada, num contexto que para este contexto não interessa, vi escrita uma frase em inglês que dizia algo como:

"...não aprecio grandemente fazer as coisas de que mais me orgulho."

Acho que deve ser a primeira frase neste blogue que ponho assim com letra maior. Porque é mesmo para ler duas ou três vezes e matutar...

Afinal, essas coisas a que o sujeito se referia, trazem-lhe felicidade ou não? Bom, pela leitura da sua frase pode concluir-se que sim e não. E uma resposta mais completa só pode ser dada quando se compreender que quando falamos de felicidade falamos de muitas coisas que não são todas iguais. Orgulharmo-nos daquilo que fazemos é uma forma de sermos felizes. Termos prazer naquilo que fazemos é outra forma de sermos felizes.

Há duas diferenças que me parecem mais assinaláveis entre estas duas formas de nos fazermos felizes. A primeira diferença ocorre no interior do sujeito e tem a ver com a evolução das sensações ao longo do tempo. É possível ser-se incrivelmente feliz num instante, durante uma determinada actividade, e no instante seguinte entrar em depressão, logo que essa actividade acaba. Por outro lado, é possível transportar no interior sensações de bem-estar que perduram durante meses ou anos após o término da actividade que lhes deu origem.

A segunda diferença ocorre no exterior do sujeito, naquilo que eu gostaria de poder chamar de comunidade, e tem a ver com o impacto que as nossas actividades têm nos outros. Porque inevitavelmente a sensação de orgulho só pode existir por referência aos padrões individuais sobre o que é correcto e o que não é correcto fazer-se. Uma pessoa sente orgulho quando pensa e sente que fez a coisa correcta, mesmo que outra pessoa tenha uma opinião diferente sobre o assunto. E eu quero acreditar que, na generalidade, as pessoas têm opiniões razoavelmente coincidentes sobre o que está certo e o que está errado.

Aquela frase é proferida por alguém que claramente abre mão do prazer imediato, adia a recompensa, e esforça-se, com perseverança, por alcançar aquilo que pensa que é correcto.

Constitui assim, de acordo com o meu pensamento, um exemplo perfeito do melhor modo ao nosso dispor para nos sentirmos bem connosco, com os outros e com o mundo. Porque, digo eu:

a felicidade, quando existe, é o que perdura para lá dos momentos felizes.

Hino dos mineiros...



O hino dos mineiros, aqui cantado pelos próprios mineiros de Aljustrel. Não precisava de vir a propósito dos desastres com final feliz ou infeliz que se passam noutros países. Também cá temos as nossas realidades para as quais é necessário estar atento. Chamou-nos a atenção para esta música, e logo para esta realidade, e para as outras realidades aqui descritas, a Celina, que nos pôs todos a cantar na festa em casa da Anabela neste último sábado. Obrigado Celina. Obrigado às pessoas que cantam "companheiro".

quinta-feira, 14 de outubro de 2010

Sobre o Outono e outras coisas... mas no fundo, sobre os afectos.

(retirado sem autorização daqui)

[...no último sábado...]

Hoje é sábado. O dia... é sábado! Acordei com mais vagar, comi com mais vagar, lavei-me com mais vagar, com mais vagar e mais despreocupação me vesti. Não fui ao Porto. Não fui passear. Fui ao supermercado. Queria pão, fruta, aquelas coisas do costume que costumam acabar depressa nas casas das pessoas.

Escolhia fruta. As escolhas do costume: as maçãs mais pequeninas são mais baratas, as pêras, as uvas mais feias, que ainda têm aspecto de ser uvas normais... E de repente, mesmo em frente dos meus olhos, uma grande travessa cromada com diospiros a desfazerem-se em pasta vermelha e doce, aquilo que eles são quando estão bem maduros e que os torna atractivos para quem deles gosta e repugnantes para os demais.

Desfaziam-se de maduros, e eram quatro vezes mais caros que as pêras ou as maçãs... mas tinha de levar uns quantos. Há coisas que têm de ser. E para mim têm de ser estes pequenos pormenores que, mesmo com alguma artificialidade propositadamente esquecida, me fazem sentir que ainda estou minimamente ligado à terra, às plantas e aos bichos, às estações, ao fluir cíclico, cíclico e não linear, do tempo. Tinha de comprar os diospiros. O Outono está deveras aí! E teria sido esse o primeiro sinal, se não fossem a chuvada e a ventania dos últimos dias... e as romãs.

As romãs também são uma marca das estações, um símbolo do Outono. Também têm de ser. Mas comparar diospiros a romãs é como comparar papoilas a proteas. A romã é dura, resistente. O diospiro é daqueles frutos que exige uma grande bandeja cromada para recolher os pingos doces que vão caindo... Que quando está verde é intragável e quando está maduro desfaz-se logo. E depois, saco dentro, balança, caixa registadora, transporte, casa, abre-se o saco, e já estão todos desfigurados dos maus-tratos que sofreram. Os diospiros, tal como as papoilas, fazem-se respeitar!

Peguei num diospiro moribundo, passei-o rapidamente num fio de água, levei-o à boca. Os diospiros maduros sorvem-se. Comer diospiro sem nos lambuzarmos é como olharmos para flores através da vidraça. E no momento em que ia tocar no diospiro lembrei-me da minha tia.

A minha tia morreu há quatro anos. Quando era bebé ela ajudou a tratar de mim. Quando já andava, ela tratou de mim. Quando já andava na escola, ela ainda tratava de mim. Não teve filhos, e tratou de mim como se fora seu filho, até à idade em que somos adultos, e nos sentimos inibidos de dizer que precisamos de alguém que trate de nós. Como ela própria também precisava que tratassem dela. Mas só percebi isso mais tarde. E então comecei a tratar dela também. Devagarinho para começar e aos poucos com mais vagar.

Até que um dia começou a falhar-lhe a memória e eu comecei a ouvir as mesmas histórias uma e outra vez. Até que perdi a conta às vezes que ouvia as mesmas coisas. Até que ela começou a esquecer-se do vocabulário mais complexo, e começou a ter dificuldade em pronunciar as palavras com mais sílabas. Até que tudo o resto, num decrescendo constante que lhe tirou a capacidade de se compreender a si própria. Até ao fim.

E eu, que durante tantos anos recebi dela os seus cuidados, passei a ser actor de outros cuidados. Nunca tantos como o meu tio. Eu estava com ela algumas horas por semana. Ele viveu a vida toda, toda mesmo, ao seu lado. E ele, que recebia dela tantos mimos que o impediam de saber tratar de si, aprendeu a gerir o seu próprio dinheiro e a comprar os medicamentos para ela, aprendeu a cozinhar e a alimentá-la diariamente, aprendeu a ser dono e senhor da sua própria vida e da sua companheira. Tanta coisa mudou nele. E ele a mudar coisas. Vendeu a roulotte, comprou um carro mais alto, no qual a minha tia entrasse e saísse mais facilmente. Trocou a banheira por um grande duche sem o inconveniente de ter de saltar o muro para entrar lá dentro. Fez o que sentia que tinha de fazer. Eu fiz o que senti que podia fazer.

Ouvi-lhe as histórias com paciência. Com vagar. Uma e outra vez, bem mais do que uma e outra história. À medida que o tempo e a doença iam consumindo as suas ideias, as histórias foram sendo filtradas. Foram sobrando algumas histórias. Podemos dizer que sobraram as mais importantes, sem saber no entanto o que estamos a dizer. Seria preciso compreender o cérebro e a memória como ninguém compreende para saber porque umas coisas marcam ou perduram mais do que outras. Mas à falta de melhor, ficam-nos os factos e as interpretações que cada um pode fazer deles.

Todas as histórias eram do seu passado, da forma como os acontecimentos da sua vida a tinham marcado. Ouvi muitas vezes a história de como ela trabalhava a entregar chapéus, daqueles chapéus que se faziam antigamente, por medida, e que eram depois entregues ao seu novo dono numa caixa toda bonita com o formato externo do chapéu. De como um dia foi atropelada e as caixas e os chapéus voaram todos pelo ar, e de como o seu patrão lhe deu um copo de água com açúcar para a reconfortar. E como aquele copo de água com açúcar e aquele gesto tão simples lhe ficaram gravados na memória!...

Ouvi tantas vezes a história de como ela tinha de tratar da limpeza da casa dos pais, onde vivia, juntamente com os dois irmãos. E de como também limpava a casa de uma tia dela. E de como um dia essa tia lhe permitiu que tomasse um banho de imersão na banheira lá de casa. E que bem que lhe soube esse simples banho de água quente numa banheira digna, apropriada. E como nunca mais se esqueceu disso.

Ouvi-lhe muitas outras histórias. De coisas boas e más. E é difícil dizer se eram mais as coisas boas ou as más, porque em todas as histórias más parecia haver sempre um pormenor bom que transformava tudo.

Uma das histórias que ouvi mais vezes foi a de como um dia o seu pai, que sempre foi muito negligente, e que sempre a negligenciou mais a ela do que a outras pessoas, sabendo que ela gostava, lhe levou diospiros. E como ela descrevia a delícia que foi para ela receber aquele embrulho de jornal, com diospiros dentro!... Quantas vezes lhe ouvi dizer, sempre com a mesma emoção “ai, que bem que me soube!”.

E assim, tal como nunca me esquecerei da minha avó materna a mostrar-me as flores a explicar-me como a cor verde, ao contrário do que julgamos, liga bem com todas as outras cores, também nunca me esquecerei da minha tia, todos os Outonos, na época dos diospiros maduros. E nunca me esquecerei de como até ao fim, pela senilidade mais profunda adentro, lhe ficaram sempre as memórias destas coisas tão simples, destes simples gestos de afecto que todos podemos ter a qualquer instante por alguém e que podem transformar a sua vida de uma forma mais radical do que suporíamos.

(...porque o quadrado da hipotenusa
é igual a já não sei quê dos catetos.
A traça do passado é tão confusa,
mas tão límpida a lembrança dos afectos...

Sérgio Godinho)

As ciclovias e as opiniões...


(foto retirada sem autorização daqui)


Em Lisboa constroem-se ciclovias sobre os passeios.

Os peões consideram que as ciclovias são mais agradáveis que os próprios passeios e utilizam-nas para andar a pé.

Os ciclistas não se queixam dos peões nas ciclovias.

Os automobilistas, que raramente são peões, queixam-se do espaço que as ciclovias ocupam nos passeios.

(e esta, hein?)

quinta-feira, 7 de outubro de 2010

Os touros e os macacos - a saga continua, a saga contínua...

Vejo-me obrigado, apesar de ninguém me obrigar, a voltar a este assunto. Várias pessoas me manifestaram opiniões diversas a respeito do assunto em epígrafe. O que é óptimo! Seria bom se fosse sempre assim. Uma nota mais então, embora sucinta.

Uma opinião comum é a de que as actividades com touros em que não há sangue não pertencem à mesma classe das actividades com touros em que há sangue. Coloca-se a ênfase no sofrimento do touro, se ele sofre muito, se sofre pouco, se lhe faz bem, se lhe faz mal...

A razão da minha crítica não vem do sofrimento do touro. O problema, como o vejo, não está no touro, mas em nós, seres humanos. É uma questão subtil, que apela a uma sensibilidade um pouco mais fina. Sendo mais radical, isto é, indo à raiz do problema, ela está em sermos capazes de retirar gozo da utilização, do usufruto, em proveito próprio, de outros seres mais vulneráveis do que nós. A importância disso, cada um julgará por si.

Que o ser humano o faça, não me supreende. Como me poderia surpreender algo que é feito em nauseabunda abundância todos os dias por quase todos? Rimo-nos do sujeito que escorrega e cai no passeio. Mas também gostamos de ter os pássaros presos na gaiola. E gostamos que os nossos filhos cresçam à nossa imagem. E no trabalho então... Somos bichos que gostamos do poder. Como dizia o outro, mesmo sendo os poderosos, tão fracos e gulosos, que precisam do poder...

Poderosos a divertirem-se à custa de mais frágeis é algo em que eu tenho alguma dificuldade em encontrar beleza. Mas tudo bem. Algum dia perguntaremos ao touro se pretende inverter os papéis. E ele, na sua brutalidade, irá possivelmente dar meia volta e irá pastar para o campo. Este tipo de divertimentos macabros é, tanta ironia, exclusivo dos inteligentes.

sexta-feira, 1 de outubro de 2010

Os touros e os macacos...


Os touros e os macacos sempre se deram muito bem, diz o senhor Moita Flores. Desde tempos imemoriais, aliás! E que continua a ser assim temos aí essa bela foto, onde não falta o telemóvel, a ferramenta indispensável do macaco pelado do século XXI. Uga buga, já tombou mais um!

E é a isto que se chama amor pela natureza e respeito pelos direitos dos animais! É, é!

(será que o telemóvel dá para grelhar bifes de touro mal morto?...)

Pois na realidade o macaco pelado é um animal omnívoro. E que assim não fosse, teria de comer alguma coisa, e esse alguma coisa teria de ser um ser vivo. Nós não podemos existir sem matar. E isso é ponto assente. E significa que para existirmos temos sempre de colocar a nossa própria existência acima da existência dos outros seres.

Como consequência, nós, macacos pelados, não só matamos para comer, mas também matamos quando isso é necessário à nossa sobrevivência, como é o caso quando um leão está prestes a comer-nos. Mas se repararmos bem, esse não será o único caso em que a nossa sobrevivência está em risco. O macaco pelado é um bicho muito medroso, para além de merdoso, e tem medo que a sua sobrevivência esteja em causa quando é mordido por um mosquito – e zás, lá se foi o mosquito – quando há cobras a menos de cem metros de distância – e zás, lá se foi a cobra – quando há aranhas no tecto – e zás, lá se foi a aranha – quando há osgas nas paredes do escritório – e zás lá se foi a osga – quando falta um móvel requintado lá na sala – e zás, lá se foi a árvore que levou centenas de anos a crescer no solo de uma floresta tropical qualquer em extinção.

O macaco pelado é um bicho de infinitas necessidades, lá ensina a teoria económica. E finitos recursos. Finitos agressores e infinitos medos. Finita inteligência, infinita estupidez, e um número indeterminado de telemóveis com máquina fotográfica.

E passando para um tom mais sério, eu não estou muito preocupado com o touro que foi morto no passado dia 11 de Setembro em Monsaraz. Por diversos motivos. Em primeiro lugar porque é passado, e preocupar-me com o passado é algo que tento não fazer, porque também a minha atenção é finita e é bem precisa para os assuntos do presente. Em segundo lugar porque, em termos relativos, foi apenas um touro, num universo de sei lá quantos milhões de animais e plantas que morrem às mãos dos homens a cada segundo neste nosso planeta. Em terceiro lugar porque presumo, mesmo sem fundamento, que o seu cadáver tenha tido um fim útil.

O que é deveras preocupante, isso sim, é constatar o quanto o macaco pelado é semelhante aos outros macacos. Em geral, insinuar sequer essa semelhança é algo que o choca profundamente. Defende-se ele da comparação com uma lista de argumentos pré-ordenada e trabalhada desde há séculos: que o homem isto, que aquilo e ainda aquilo. E no entanto...

O macaco pelado mata por prazer. A tourada de morte é apenas um dos eventos onde isso acontece. Há muitos outros. Em tempos faziam-se touradas de morte com seres humanos. Eram hominadas de morte. Coisa tão gira! E qual será então a diferença fundamental entre ver um ser humano a morrer às mãos de outros ou ver um touro? E vem de lá a resposta: é que um ser humano é um ser humano e um touro é um touro. E já está. Coisas que vivem em universos completamente distintos! O macaco pelado escuda-se de novo. A verdade é que não tem muito por onde fugir, porque o macaco pelado continua a matar elementos da própria espécie por razões difíceis de explicar em muitos países do mundo todos os dias.



Enfim, resumindo a questão. Existe uma lei, que proíbe determinados actos excepto em locais onde esses actos sejam tradição. Esta lei, e só para rimar, é uma aberração! Por essa ordem de ideias seria difícil mudar o que quer que fosse num país. É tradição é tradição... já dizia o dux-sei-lá-quantos da praxe académica, uma espécie de macaco pelado que é preto, mas usualmente tem a cara e as mãos brancas. Por essa ordem de ideias também é proibido o homem bater na mulher, excepto em locais onde se comprove que isso já é feito há mais de 50 anos! Chiça!... As coisas que o macaco pelado inventa!

Mas bom, essa lei existe. E calha que a excepção nela prevista não se aplica à vila de Monsaraz. Calha também que o macaco pelado não quer saber disso para nada. Calha, finalmente, que os macacos pelados que têm por função fazer cumprir a lei também não querem saber disso para nada. É caso para perguntar: então porquê a lei?

Até faz lembrar outras coisas, sei lá... algumas leis que andam por aí que não são cumpridas e que ninguém quer saber disso para nada... conhecem alguma?... Ou será que agora não podem pensar muito nisso porque estão a falar no instrumento preferido do macaco pelado, com ou sem câmara fotográfica, a 140 quilómetros horários?...

E bom, a festa fez-se, para regozijo do macaco pelado. E tudo voltou à tranquilidade... Para o ano há mais!

As touradas são importantes. Muito importantes. Sem as touradas eram os direitos dos animais que ficavam em causa (dos animais divertirem-se à conta de outros, entenda-se), tal como os direitos dos homens, e a própria vida rural ficaria ameaçada! Uma autêntica catástrofe!

Moita Flores, preocupado com a possibilidade dessa catástrofe, lançou na internet um abaixo-assinado. A sua petição pode, e deve, mesmo, ser lida na íntegra aqui. Não se trata de uma farsa. O fenómeno foi noticiado em diversos jornais nacionais no dia 7 de Setembro. E vale mesmo a pena ler.

Da leitura do texto dessa petição aprende-se que andam aí uns “talibãs”, uma horde de analfabetos, que estão empenhados em destruir “os ritos, os mitos, os valores, os símbolos que durante séculos consolidaram Portugal, lhe deram identidade e o afirmaram como Língua, como Povo, como Pátria, como Território”, apenas porque isso está na moda e é giro! Moita Flores, pai de três filhos e avô de três netos, sabe muito bem o que diz!

Ele gosta de touradas por causa de “uma pulsão emotiva que não sabia explicar”, o que também é natural porque o macaco pelado chamado Moita também sente fome e não sabe bem explicar... Coisas de macaco! Eu, outro macaco pelado, também sinto fome e não sei explicar! E até o João Pinto sentiu uma estranha vontade de esmurrar o árbitro na barriga e veja-se como foi depois para tentar explicar!...

Enfim...

Já agora, se quiserem saber o que defende essa horde de analfabetos, podem ler o texto da respectiva petição, que também aconselho, aqui.

quinta-feira, 30 de setembro de 2010

Das viagens e dos aviões e de perder países...

O livro “ponto azul claro” de Carl Sagan, livro que recomendo vivamente, começa com uma frase que diz qualquer coisa como: nós fomos deambulantes desde o início (“wanderers”, palavra que tenho dificuldade em traduzir, sendo que o mais próximo me parece ser “vagabundo”, sem a conotação pejorativa que a nossa moral lhe costuma anexar).

Pois fomos. E continuamos a ser. Se não o somos a uma escala, somos a outra. A humanidade, ao longo das décadas e dos séculos, nunca deixou de deambular, fisicamente e não só. Há qualquer coisa em nós que nos impele a procurar. A erva é mais verde do outro lado da montanha. E só estamos bem onde não estamos. E assim lá vamos nós.

À escala de uma pessoa e uma vida, a sua, a viagem, que pode ter muitas causas, permite o contacto com realidades distintas daquela que é a nossa. Presumo que possuímos uma realidade à qual podemos chamar nossa, mesmo que na realidade não seja mesmo nossa e mesmo que por vezes possa não ser esse o caso. Em geral acredito que essa é a principal causa para as viagens físicas que as pessoas fazem: o contacto com realidades diferentes. Quão diferentes serão essas realidades é algo que fica ao critério do freguês. Há quem dê meia volta ao mundo para rapidamente, à chegada ao seu destino, procurar um restaurante com comida do país de origem. Há quem se sinta reconfortado com a presença de símbolos que podemos adjectivar de globais e que em geral pertencem a grandes empresas multinacionais.

Aliás, só um aparte acerca desta coisa das “multinacionais”: penso que já não faz sentido dizer que uma grande empresa é multinacional. É uma grande empresa, pronto! O que é que as “nações” têm a ver com isto? Se já tiveram no passado, e por muito que eu ache certo ou errado, já não têm no presente.

Bom, há quem viaje então para reencontrar as mesmas coisas mas noutro lugar. É claro que também há quem viaje na maionese, na esperança de encontrar coisas diferentes no mesmo lugar! Há quem faça questão de ir do verão para o inverno ou vice-versa. Há quem goste de ir para sítios completamente diferentes onde não ouça nenhuma língua conhecida e não se coma nada parecido com salsichas e arroz e hamburgueres e assim.

As razões para procurar a diferença também variam, embora me pareça que resultam sempre de uma combinação com mais ou menos destes dois ingredientes: escape a uma realidade da qual se está cansado e procura de sensações novas. A viagem para um hotel tropical à beira-mar é um exemplo que talvez combine bem estes dois ingredientes, embora olhando bem à diversidade de coisas que há no mundo, para além do que passa na tv, eu diria que esse é um caso com pouca dose de inovação.

Mas descanso é algo que pode ser alcançado por muitas vias. Não é necessário viajar muito para descansar. Se calhar, na maior parte das vezes, até não é necessário viajar nada para descansar. Se calhar o que é necessário é simplesmente que as razões que conduzem ao cansaço se alterem. Muda-se o emprego, ou simplesmente não se vai trabalhar. Muda-se de sogra ou até de companheiro. Muda-se de casa. Desliga-se a televisão. Liga-se ou desliga-se a música. Pára-se o carro. Pedala-se. Pode-se fazer muita coisa para conseguir descansar sem ser necessário viajar, e estar aqui a listar essas coisas parece-me um pouco ridículo.

Para mim, o grande benefício das viagens é acima de tudo o conhecimento que delas se pode retirar. Diga-se que isto é como tudo na vida: vai dos sentidos e da cabeça de cada um. É tão fácil viver décadas sem saber o que é um choupo, mesmo passando todos os dias ao lado de um, como é ir à China e não ouvir chinês, sobretudo agora com a moda do mp3. Mas se se tiver a cabeça e os sentidos bem alerta, é possível aprender muito nas viagens. Sobre os outros, sobre a nossa própria realidade, e sobre nós mesmos. E ainda sobre os mais ou menos ténues fios que unem isso tudo.

Há mar e mar, há viajar e viajar. Para tudo é preciso tempo. E conhecimento é talvez das coisas que exija mais tempo. Para mim, que considero o conhecimento a maior recompensa da viajem (e não, por exemplo, a diversão, que muitas vezes trata aproximadamente do contrário, isto é, do adormecimento da cabeça), não fazem sentido as viagens curtas. Uma viajem deve ser longa. Quanto mais longa melhor. Quanto mais longo o tempo passado fora da nossa realidade, mais claros ficam os nossos olhos ao olhar para ela. Quanto mais longo o tempo passado junto de outra realidade, mais sábia fica a nossa mente ao pensá-la. Contraditório?...

As melhores viagens, para mim, são precisamente as que se fazem deambulando. Aquelas que não são episódicas, mas que fazem parte do nosso percurso. Que no final não têm voltar, mas sim continuar mais para diante.

Há coisas que nos prendem e nos impedem de fazer assim. E depois há opções. Porque como tudo na vida, nem tudo nas viagens são rosas.

Fernando Pessoa dizia que viajar é perder países. Pois é, pois é... Viajar é mesmo perder países. De cada vez que partimos, deixamos algo para trás. E se para mim o conhecimento é o que de melhor se tira da viajem, e se para adquiri-lo é necessário tempo, saltitar de um local para o outro é correr o risco de deixar tudo muito bem fragmentadinho e baralhadinho nas nossas cabeças. Vamos a Pequim e quando voltamos já podemos falar sobre a China inteira. Vamos a Bogotá e já conhecemos a América Latina. Vamos ao México e divertimo-nos imenso, e vamos a Londres tirar uma foto ao lado do guarda de chapéu esquisito e depois subimos à torre de Paris e atiramos uma pedrinha na torre de Pisa e perseguimos leopardos em África do Sul e subimos ao Empire State Building com pena de não poder subir às Torres Gémeas... E quando voltamos a Portugal descobrimos que já demos quase uma volta ao mundo, que depressa demais esgotámos tudo o que havia para ver e ficamos angustiados... Raramente, no entanto, ficamos angustiados pela principal razão que nos deveria deixar angustiados: que enquanto andámos a saltitar de um lado para o outro, perdemos Portugal, perdemos o nosso próprio país.

Perder países é perder conhecimentos profundos. E perder o nosso próprio país é perder as nossas próprias raízes.

Quando se olha para o mundo através dos óculos da física, pode-se regular a escala de acordo com o número inteiro que serve de expoente ao 10 e que precede a unidade internacionalmente aceite de comprimento que é o metro. 10 elevado a 0 e temos a escala do metro. 10 elevado a -3 e temos a escala do milímetro. Eh pá, acho que já preciso de óculos. 10 elevado a -6 e temos a escala do micrómetro. Bom, agora de repente já nem um microscópio normal dá bem conta do recado. 10 elevado a -9 e atingimos a escala do nanómetro e por esta altura já estamos muito próximo da escala do átomo, que é a do angstrom, 10 elevado a -10. 10 elevado a -12 é o picómetro. Em geral, tudo o que nos interessa passa-se em escalas superiores a essa, pelo que podemos parar aqui.

Se formos para o outro lado da escala, 10 elevado a 3 é o quilómetro. A esta escala podemos explorar as cidades. 10 elevado a 6 são 1000 quilómetros. Já estamos na escala dos países e dos continentes. 10 elevado a 9 é um milhão de quilómetros. Já estamos para lá da lua, na escala do sistema solar. A escala das viagens estelares atinge-se a 10 elevado a 12 metros. Por curiosidade, o universo conhecido terá uma extensão cuja ordem de grandeza andará nos 10 elevado a 24 metros.

Ao contrário do que intuitivamente se possa pensar, os mundos das escalas grandes e os mundos das escalas pequenas não funcionam do mesmo modo. Por exemplo, enquanto é fácil imaginar um fotão a passar muito rapidamente de um átomo para o outro, é impossível pôr uma nave espacial a passar rapidamente de uma estrela para outra. Mesmo se tivéssemos uma nave espacial que viajasse à velocidade da luz, levaríamos anos de viagem ininterrupta para chegarmos à estrela mais próxima! Outro exemplo: enquanto compreendemos bem que um calhau sólido a embater noutro calhau sólido possa fazer ricochete, à escala dos planetas a noção de “sólido” e de “ricochete” não faz muito sentido!

Bom, ao nível das viagens passam-se coisas semelhantes. Nós temos bem a mania de nos enfiarmos na nave espacial e irmos por aí fora à procura de estrelas novas. Quanto mais longe melhor! E depois de muito viajarmos pela galáxia, começamos a ficar constrangidos com a sensação de que não há mais nada para ver. No entanto não nos detivemos nas estrelas por onde passámos e não exploramos os seus sistemas planetários. Não nos detivemos nesses planetas e não analisámos a sua atmosfera, a sua litosfera ou os seus seres vivos. Acima de tudo, não nos detivemos tanto quanto poderíamos no nosso próprio planeta. Muito menos no nosso país, na nossa região, na nossa vila, aldeia ou cidade, nos nossos vizinhos e amigos e nas famílias deles, nos ribeiros e cantares e manjares lá da terra e nas verrugas da Dona Miquinhas! Viajar é perder planetas!

Isto são as viagens.

Quanto aos aviões, são bichos metálicos que andam no ar (segundo um amigo só o fazem por sugestão) quando se lhes dá o alimento correcto e o devido espaço para correr. Fazem muito barulho. Levam pessoas e coisas lá dentro. Às vezes caem e as pessoas morrem. As coisas não morrem, mas ficam espalhadas e com muito mau aspecto. Mas normalmente não caem. Levam as pessoas e as coisas muito depressa para sítios muito distantes. Como são bichos que comem, também deitam os seus dejectos, chamados fumo. O fumo dos aviões tem coisas más lá dentro e essas coisas más dão cabo do ar.

Os aviões têm de facto um grande impacto no ambiente. Não quero entrar em grandes discussões acerca disto, também porque não gosto de falar de coisas que não sei. Sei que fazem um barulho do caraças. Para os aviões comerciais normais esse barulho é sempre audível no solo que lhe fica imediatamente em baixo, não importa a altitude a que ele voe. Quando lá vai a 11 quilómetros de altitude é apenas uma nota inestética numa paisagem de resto silenciosa. Quando está prestes a aterrar, como é o caso sistemático com os aviões que passam ao lado do sítio onde trabalho, chegam a fazer vibrar os edifícios.

Mas também sei outras coisas acerca de aviões. E uma das coisas que sei é que queimam combustível que é um derivado do petróleo, não muito diferente da gasolina dos automóveis, e que o produto dessa combustão, tal como nos automóveis, dá de facto cabo do ar. Sei também, ou julgo saber, porque não pude investigar directamente este assunto, que um avião comercial consome por passageiro qualquer coisa como 5 litros de combustível por cada 100 km. Aproximadamente o mesmo que um automóvel. É claro que esse valor depende do curso da viagem, do tipo de avião, do número de passageiros que transporta, etc, mas os 5 litros aos 100 km são um valor médio aproximado.

Finalmente, sei o que toda a gente sabe, nomeadamente que para viajar para longas distâncias o avião não tem rival, pelas velocidades médias que permite alcançar. E como o nosso estilo de vida é sempre bastante ávido de tempo, o avião é essencial para em meia dúzia de horas nos transportar para destinos longínquos, destinos que nem numa semana inteira de viagem de automóvel ousaríamos alcançar!

Quando os aviões comerciais surgiram os voos eram caros e viajar de avião era considerado um serviço de luxo. Com o passar do tempo o serviço banalizou-se e foi-se tornando acessível a um número cada vez maior de pessoas. Finalmente, há poucos anos, o “boom” das “low cost”, isto é, a explosão das companhias de baixo custo, fez com que as viagens de avião se tornassem mesmo mais baratas que viagens noutros meios de transporte, mesmo para distâncias relativamente curtas.

De repente, em Portugal, e à imagem do que se passou numa data de outros países, toda a gente começou a viajar de avião a torto e a direito. Para os urbanitas, férias sem viagem de avião passou a ter o mesmo sabor que bolo de chocolate sem chocolate! É interessante pensar como quando eu era miúdo, as férias de sonho da malta lá do Porto eram qualquer coisa como ir ao Algarve ou, para os mais exóticos, ir a Paris, e isso só se fazia muito de vez em quando... e quase nunca de avião... e hoje férias sem avião, é o que se sabe!

O lado bom desta maior acessibilidade dos voos é relativamente evidente. O lado mau é que é geralmente mais difícil de ver. E infelizmente cá vou eu de novo ter de chamar a atenção para um aspecto negativo que não é tão evidente. Mas eu vejo-o, e claramente gostaria de não ser o único a vê-lo, porque me preocupa.

Preocupa-me aquilo a que se chama de globalização que estes aviões todos vieram permitir. Mas essa é uma conversa longa que vou deixar para outras calendas de outros calendários.

Preocupa-me o vício que isso causa nas pessoas. Eu defino vício do seguinte modo: é um vício aquilo cuja presença causa bem-estar, mas cuja ausência causa mal-estar. Podem divertir-se a classificar arbitrariamente uma grande quantidade de coisas ou atitudes como vícios usando esta definição. Mas uso-a para distinguir o que é viciante daquelas outras coisas cuja presença causa bem-estar, mas cuja ausência não provoca mal-estar. No caso das viagens de avião, parece-me que a tendência é para elas caírem cada vez mais na minha definição de vício. E isso preocupa-me.

Finalmente preocupa-me também o impacto ambiental que as viagens de avião provocam, sobretudo ao nível dos produtos da combustão que libertam para a atmosfera. Claramente, como consumidores de combustíveis fósseis, não poderão manter-se eternamente. Já pensaram como será no momento em que o petróleo acabar? Certamente não será para daqui a pouco, mas igualmente certo é que esse momento, aconteça o que acontecer, há-de chegar. Que farão então os viciados em viagens de avião?... Irão a nado?... Suicidar-se-ão?... Ou passarão a tricotar à lareira? Lareira de feixes iónicos abastecida a electricidade produzida a partir de energia solar e eólica, porque por essa altura já não haverá lenha para queimar, porventura nem moveis de madeira sobrarão, e a fusão nuclear continuará a ser uma miragem.

Mas entretanto, enquanto continuamos a retirar petróleo das profundezas da crosta e a espalhar metade dele pelos oceanos, petróleo esse de que somos todos responsáveis, os aviões continuam a poluir a atmosfera e a aquecer o planeta.

Façamos umas contas breves: se eu andar 50 km de carro por dia, todos os dias, ao fim de um ano terei andado 18250 km. Imaginemos que esse carro até gasta pouco, qualquer coisa como 5 litros por cada 100 km. Imaginemos agora que nas minhas férias eu opto por uma viagem de avião a Macau. Sei lá a quantos quilómetros fica Macau do sítio onde vocês se encontram a esta hora, mas se for a mais de 9000 km então vocês gastarão mais combustível na vossa viagem anual para espairecer a moleirinha do que num ano inteiro para trás e para diante em engarrafamentos!

E isto deveria fazer-nos pensar...

E se quisermos pensar um pouco mais, tentemos imaginar o que aconteceria se todas as pessoas do planeta também fizessem a sua viagenzinha anual para espairecer o miolo... Se quisermos sentir-nos ainda pior, pensemos que essas pessoas, ao saberem que nós andamos para aqui a saltitar de lugar em lugar sentados em aviões a jacto, ficam deveras com vontade de fazer o mesmo ou ainda mais, e que só não o fazem porque não têm o mesmo dinheiro que nós... Porque se o tivessem!...

Que legitimidade temos nós, portanto, de andar para aqui a fazer isto, com os narizes empinados, todos cientes dos nossos direitos, sobretudo depois de um ano inteiro de trabalho e ainda para mais quando todos os nossos amigos também o fazem? Que raio de legitimidade temos nós?... Mas que espécie de deus julgamos que somos?...

Bom, o que fazer então?

O consumo de viagens de avião não é diferente de todo o restante consumo, seja ele de latas de refrigerante, de viagens de automóvel, de camisolas, de horas na sauna, de lavagens ao cabelo, de livros, de tudo e mais alguma coisa: tudo o que consumimos tem um impacto no ambiente.

Claramente o que devemos fazer é deixarmos de nos preocuparmos com o ambiente! E já está! :)

Bom, eu estava a brincar, mas a verdade é que há muita gente que toma precisamente essa opção! E agora podemos discutir aqui se temos ou não o direito, ou o dever, ou a legitimidade para lhes chamar a atenção para o assunto (pode ser através de açoites ou de outro método moderno qualquer).

Se tudo o que consumimos tem um impacto no ambiente e se somos muitos, claramente vamos causar um impacto brutal. A questão não é necessariamente reduzir esse impacto a zero e deixar de viver. A questão é saber se esse impacto é suportável pelo meio ambiente ou não. E isto remete para os estudos sobre a capacidade de carga (ou lá como se traduz “carrying capacity”) da natureza e do planeta relativamente à nossa actividade. Claramente esta capacidade de carga variará consoante os critérios que forem adoptados.

Munidos de valores para aquilo que o meio ambiente é capaz de suportar, temos depois de proceder à repartição dessas capacidades poluidoras pelas pessoas do planeta. Isto pode parecer evidente, mas é tudo menos evidente. Pode-se pensar (e é sem dúvida aquilo em que acredito e que defendo) que a repartição mais justa seria feita através da divisão em partes iguais a cada habitante deste planeta. No entanto, as teses defendidas pelos maiores detentores da riqueza são bastante desiguais e, quem diria, tendem a atribuir a si próprios uma maior capacidade poluidora que aos demais. Mercados de carbono e princípios de poluidores-pagadores e quotas com base em registos históricos e o diabo-a-sete são todas formas de implementar essa repartição desigual.

Finalmente, depois de feita a repartição e de sabermos quanto é que podemos poluir, só temos de fazer um esforço por não poluir mais do que o montante que nos foi atribuído. Deixo à consciência, ao interesse e ao conhecimento de cada um as análises e as contas que lhes permitirão saber quanto é que é justo poluir. Mas não duvido nada que viagens de avião de milhares de quilómetros tivessem de passar a ser feitas apenas uma vez por década, ou menos!

Significa isso que teremos de deixar de viajar? Não, de forma alguma. Significa, a meu ver, que deveríamos deixar de ser os consumistas frenéticos que somos, crentes que a nossa felicidade não pode ser atingida de outro modo. Temos de aprender a viajar de outro modo. Se fizermos as coisas com mais vagar, se calhar até viajamos mais, aprendemos mais e, quem sabe, se calhar até nem perdemos países!

Sou como um rio...

Sou como um rio
Que corre ao contrário
Do todo ao nada
Na procura de mim,
do meu eu solitário

Subo contra a corrente
e a cada afluência
me aparto
de um bocado que sou.

Aperta-se o caminho
e aperta-me a angústia
de não saber se é certeiro
este frio ribeiro
que percorro sozinho.

Meu deus,
por onde vou?

E salto e mergulho
e pulo falésias
ascendente
e me aparto e liberto
e me vejo mais claro
cada vez mais claro
a cada afluente
e mais limpo e mais puro
e mais transparente
e porém...

A cada acalmia
a razão indaga
e o coração sente,
a questão recorrente
de uma alma
olhando-se ao espelho
perguntando
se é esta água fria
o sumo de onde veio.
E assim...


Permanentemente
batalho o tempo
e percorro o espaço
à procura de mim.
E salto e mergulho
e pulo falésias
cada vez mais claro
e contorno penedos
e perco afluentes
cada vez mais puro
e mais transparente
e procuro...
e batalho...
onde estou?
quem sou eu?...

E quando fatigado
finalmente paro,
deito-me em mim,
em mim me lavo.
Descanso-me.
Refaço-me.
Daquilo que sou
bebo força e alento.
E já saciado
levanto-me,
enfrento-me,
e descubro de novo
o que me faz correr
como um rio ao contrário:
que a sensação de ser quem sou
é só um acaso temporário.

AWF, Lisboa e Aveiro, 28 Setembro 2010